Captar frases soltas no transporte público, na rua ou em qualquer outro lugar onde a aglomeração de pessoas proporcione ao ouvido atento do cientista social autodidata um rico manancial para análise: um procedimento ao qual me dedico há anos, que já inspirou
outros escritos nesse blog e que considero uma da melhores formas de captar a essência da realidade em seus aspectos mais interessantes. Interessantes porque escondidos nos sulcos mais profundos do discurso do homem comum, cuja vida é uma vulgaridade do despertar até a hora do boa noite, e justamente por estarem ocultos sob uma grossa camada de tradições e hábitos têm aspecto de serem normais, naturais, benéficos até, ou mesmo males incontornáveis. Mas sabemos que discursivamente nada é normal, nem natural, nem benéfico ou maléfico em si:
construções antes que dados da realidade, esses aspectos possuem significados que são transparentes para o homem comum, mas o envolvem e influenciam completamente. De modo bastante similar age a pressão atmosférica: não a vemos, mas sem parar um segundo sequer ela exerce seus poderes sobre nós.
Uma palavra que hoje ouvi em uma conversa dessas foi o adjetivo "humilde". Não sei exatamente por que exatamente essa palavra se fixou
em minha mente, mas o fato é que ela foi responsável por uma série de anotações
mentais que serviram de base para o que segue.
Emprega-se em geral para salientar uma qualidade positiva de um indivíduo perante os demais: diz-se que alguém é humilde por apresentar um misto de amabilidade, educação, cortesia, etc. Mas não é só isso: o humilde é também alguém que, em determinadas situações, tende a mostrar-se como ligeiramente inferior. Todavia, isso não ocorre de modo negativo ou fatalista - o humilde considera-se
menor mas com um certo orgulho, em uma captação da benevolência alheia feita com sorrisos que chegam a ser rastejantes.
Há na atitude do humilde muito da etimologia da palavra: o adjetivo vem do latim humus, que significa "terra", "chão", "solo". De humus derivou-se então o adjetivo latino humilis que possuía, para o romano do Período Clássico (séculos II a.C a II d.C.), significados como estes:
- de estatura baixa, rasteiro;
- que é de condição baixa;
- que tem sentimentos baixos;
- abatido, desanimado;
- covarde, fraco, mesquinho, vil.
[acepções retiradas do Novíssimo Dicionário Latino-Português de F.R. dos Santos Saraiva, editado pela Livraria Garnier]
Há inúmeros registros na literatura clássica comprovando que, antes do cristianismo se transformar na religião oficial do Império, em 391 d.C com Teodósio I, a noção de humilis tinha uma carga altamente negativa, no sentido de descrever características contrárias ao ethos romano de virilidade, força e vontade afirmativa perante a vida: Cícero fala de humili animo ferre ("resistir com fraqueza"), Plínio o Jovem de humiles curae ("cuidados mesquinhos"). Com a expansão da religião cristã principalmente nas classes baixas (o cristianismo sempre foi uma crença "plebéia", no sentido de oferecer aos desgraçados de toda sorte, sem distinção de classe, a idéia da "salvação", conceito praticamente inexistente no paganismo, que tinha cultos diferentes para cada porção da sociedade) o termo foi perdendo esse significado inicial para ganhar aspectos mais positivos. O humilde torna-se, então, um novo paradigma de felicidade e grandeza. Fundamental e termômetro dessa mudança é o Sermão da Montanha, no evangelho de São Mateus capítulo 5, onde Cristo começa dizendo isso:
Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus.
A mudança de acepção do termo é fácil de entender: o termo humilis era comumente empregado para, justamente, fazer referência a essas classes baixas, onde o cristianismo inicialmente se propagou. A mudança de significado é a vitória, no campo semântico, da moral de escravo nietzscheana sobre a dura ética romana da Antigüidade.
De certo modo, o humilde de hoje carrega, na tessitura mais profunda, essa carga de significados inicial que, mesmo após o cristianismo, ele jamais perdeu: o humilde é aquele "que se prostra perante o altar", que "cai de joelhos" defronte Deus, que ajuda os demais em uma atitude totalmente desinteressada onde descuida até mesmo de si. Tudo isso é ser humilde, mas não é só isso: o humilde é, também, um tipo que olha com desconfiança para qualquer altura com um misto de nojo e reprovação. Incapaz de alçar vôos para além de sua "natureza terrena", impregnado de um humus cultural que enxerga valor apenas no que é contingente e facilmente digerível, o humilde é um tipo que acredita na validade da arte apenas quando ela está à serviço do povo ou de uma causa. Conceituando o artista (seja escritor, músico, pintor, cineasta, etc) como um tipo social que deve estar em "conexão com o social", todos os que não se encaixam na regra lhe são tediosos, desnecessários, dignos de seu ódio. Ao mesmo tempo idealiza povo e o alcance de sua arte: o humilde opta por ter uma visão duplamente cega ao invés de uma cegueira simples.
O vírus da humildade não está apenas presente nos artistas que buscam o "povo": até mesmo em um tipo de arte mais elitizada e que ocupa os salões de exposição freqüentados por branquelos bem-nascidos ele promove seus estragos, sobre a onipresente criação de "instalações interativas". O discurso que está por trás dessas bobagens é essencialmente o mesmo: o artista se nega o papel de mediador cultural definitivo e devolve para as mãos do público a própria construção da obra. Assim, em algumas o artista apenas coloca um, sei lá, amontoado de giz de cêra no chão e pede para que o público rabisque uma parede branca e então pluft!: nasceu a obra de arte, perfeitamente antenada com os tempos "democráticos" e "colaborativos" que vivemos. Não se trata mais de termos artistas que se dediquem a criar um conceito, e a partir dele passem dias em um esforço para transformá-lo em realidade, seja um quadro que instigue intelectualmente o observador, uma escultura que lhe faça reavaliar um dado da realidade ou que simplesmente proporcione um prazer estético que induza a fusão entre fruição estética e reflexão. Tudo isso que dissemos, de certa maneira, pede que tanto artista como público elevem-se a si mesmos para além da mediocridade diária. Difere sensivelmente de uma arte impregnada do senso do humilde, que tenta a todo custo puxar para o solo.
É assim que, tanto nas artes como em outros campos da vida, o humilde atua: pela força rastejante de mediar os homens e suas ações pelo princípio do humus, pela nivelação por baixo. Força afirmativa, desejos de grandeza, impulso para criar e ir além das limitações, medos e bloqueios: nada disso faz parte do espírito humilde. Ele é amigo do status quo, das tradições burras, do cotidiano miserável que mantém milhões em uma existência que pouco tem a ver com Vida - ou seja, da vida entendida não apenas como impulsos orgânicos mas sim realização, luta e superação de si mesmo.