4.24.2009

Como ter um dia ruim

A perna latejava no ônibus. A dor não era tanta, mas a sensação do sangue pulsando incomodava. Incomodava também o gosto de estômago vazio na boca. Acordei mais cedo e fui à busca de um banco 24 horas para sacar a grana do aluguel. Consegui num caixa vagabundo do Compre Bem da avenida Liberdade. Corri para casa, corri para a imobiliária, corri para o metrô. O primeiro trem parou sem que pessoa alguma descesse naquela estação. Próximo, então. Algumas pessoas desceram, o espaço deixado por elas lá dentro foi imediatamente preenchido por outros passageiros. Ameacei entrar, alguém se apertou um pouco mais e me chamou. À medida que a outra estação se aproximava, os animais se agitavam e empurravam mais. Estação Vergueiro. A porta se abriu e eu fui espirrada para fora. Ao tentar voltar ao vagão, errei a distância entre o trem e a plataforma. "Cuidado com o vão entre o trem e a plataforma. Evite acidentes." Três pessoas me puxavam em meio ao estouro da manada. Nem estávamos no Paraíso...c alma, né, gente? Resgatada, não pude deixar de imaginar: e se minha perna tivesse ficado presa? e se ninguém tivesse me visto e o trem seguisse seu rumo? Acidentes assim acontecem no metrô, CPTM, no ônibus. Mortes acontecem assim. E a culpa é sua, meu amigo, minha senhora. Você com sua vidinha de merda que precisa correr pois senão perde a outra condução, e dá licença que eu preciso passar, eu preciso empurrar, eu preciso chegar. Estação Ana Rosa, acesso à linha 2, verde. Fila. 677A. Com o corpo aquecido não sentia a dor. Mas a perna latejava. O gosto ruim na boca. Thom berrava em meu ouvido. Take the money and run, take the money and run, take the money and run. Sentia nojo das pessoas. Me esforçava para não encostar na menina que dormia ao meu lado. Em vão. Ao dormir, ela tinha espasmos que faziam seus braços pularem, a cabeça repuxar para o lado. A curva era violenta e o motorista, estúpido. Nojo do cheiro de tempero às 9 da manhã ao passar por algum restaurante. Nojo dos pombos encardidos e seu andar coreografado sobre a grama. Da cor mostarda do livro que tinha nas mãos. Os olhos passeavam pelas letras que, naquela hora, hora errada. Se pudesse, me teletransportava para um bom hospital para, só um pouco, ser o centro das atenções, dos cuidados. Seria tudo pra mim. Eu não teria que resolver nada. Fique deitada aí, descanse um pouco. Tome seu soro. Cubra-se pois está frio. Estão trazendo o cobertor para você. Para mim. Só hoje queria que alguém me perguntasse "precisa de ajuda aí?". Porque o dia começou mal. E tende a terminar mal. E a espera pelo fim é cruel, ingrata. A perna começou a doer.

Esta crônica foi escrita por Gabriela Mori como resposta a um acidentado dia neste enormíssimo acidente que é São Paulo. Seja pelo tema abordado, seja pela forma alucinada da narrativa, a escrita da Gabi encaixa-se perfeitamente à proposta deste blog. Se você quiser comentar o texto diretamente com ela, o e-mail é

4.22.2009

Contaminação

A animação abaixo faz parte do projeto Future Shorts, que desde 2003 promove na Internet produções de novos diretores em curta metragem. O nome do vídeo, "Contamination", é uma espécie de visão de um mundo onde experiências genéticas saíram fora do controle, produzindo um soturno pesadelo antropomórfico.

Chamou-me atenção também a trilha sonora deste curta, bem ao gosto das bandas da Cold Meat Industry , o que só acentua o clima pesado e angustiante.

4.21.2009

"Epifania" em versão impressa no Jornal Hoje


Uma versão impressa do meu texto "Epifania" saiu no Jornal Hoje, que circula diariamente no Grande ABC.

Para moradores do ABC (ou que estejam passando por lá) o Jornal Hoje é distribuído gratuitamente em pontos comerciais da região.

Aos que ainda não leram o post, aproveitem e leiam aqui.

Agradecimentos ao senhor Bruno Cardoso Wolf pelo interesse em publicá-lo.

4.16.2009

Vênus sob o paralelo 23°

Enfim uma mesa vaga, sábado à noite os restaurantes da Grande Cidade invariavelmente ficam assim, repletos e barulhentos. Aqueles que se incomodam com longas esperas e conversas à mesa que mantenham distância dos restaurantes daqui, especialmente do Le Tartine e suas mesas-siamesas-de-tão-próximas, que a M. nunca incomodaram quando nos invernos passados ali vinha jantar com os amigos. Eram animadas conversas entre pratos de sopas borbulhantes, degustadas sem esforços como se estivessem já frias, e depois vinho, e depois gargalhadas e casacos pesados descendo a Consolação sentido centro.
Justificar
Certamente sopa não tomariam, prefeririam pratos mais adequados, mas sobre isso nem M. nem P. pensavam enquanto subiam a estreita escada daquele bistrô francês surrealisticamente implantado nos trópicos, que ocupava discreto um sobradinho antigo em uma rua sem importância. Terminada a escada logo viram a mesa, que ficava aos fundos de uma sala pequena repleta de outras mesas, todas cheias. Mas apesar do barulho e do calor ficaram felizes, pois perceberam a mesa onde jantariam estava ao lado de uma grande janela aberta, uma promessa de um pouco mais de ar e, com sorte, refrescantes brisas.

– A quiche daqui é uma delícia, você vai ver.
– Hum, adoro quiches.

Perderam os olhos no cardápio colorido e então chamaram o garçom. Pedido feito, bastava apenas esperar para saciar a fome. Não demorou muito e logo chegaram as bebidas. Goles que descem vigorosos, sorvidos com paixão, goles de vinho, este veneno de Vênus, que refrescava as gargantas quase secas de M. e P., naquela noite tão somente um casal qualquer de mãos entrelaçadas sobre a toalhinha-toda-detalhes que cobria a rústica mesa. Conversavam já afetados pelo rubor que precede a semi-embriaguez, experimentando a mistura de ardências tropicais com a divina bebida dos Césares. Não era possível saber do que falavam, mas isso não interessa ao leitor, basta saber que da mesma forma que todas as cartas de amor são ridículas [e não seriam cartas de amor se não fossem ridículas] assim também são as conversas dos amantes, e a conversa entre M. e P. não seria nem um pouco diferente de nenhuma outra conversa de namorados que o Le Tartine e seus garçons de sotaque esquisito já foram testemunhas.

As quiches ali são servidas junto com uma salada de rúcula e alface temperada com molho de mostarda e nozes. O neófito, ao ver o prato pela primeira vez, julga-o demasiado pequeno para satisfazer seu apetite. Seja pelos temperos empregados, seja pelo modo de preparação do prato, aquelas aromáticas quiches sempre surpreendem aos desavisados, mesmo os mais famintos, que terminam a última garfada já muito para além de satisfeitos. O prato, embora saborosíssimo, necessita de uma certa dose de esforço para ser consumido até o final. Mas não veja o leitor nisso qualquer espécie de sacrifício: é um esforço que se recompensa a cada nova mordida, verdadeira explosão de sabor e prazer palatal que deixa tanto a Deus quanto a seus anjos profundamente tristes, obrigados a omnipresenciar o pecado da gula pela trilionésima vez, tudo graças aos sibilinos talentos do cuisinier do Le Tartine.

– Gostou?
– Sim, perfeita.
– Quer um pedaço da minha?
– U-hum.

Ele cortou um pedaço de sua quiche de cogumelos e levou o garfo até a boca dela, que abocanhou a fatia vagarosamente, mastigando com olhos semicerrados. Isso causou uma tempestade de pensamentos nada singulares em M., e não é preciso que o leitor seja alertado a respeito de que tipos de pensamentos eram esses, homens em geral são muito previsíveis. Somente é necessário saber que ele gostou da idéia de partilhar os pedaços de sua quiche daquele modo tão próprio dos namorados.

– Quer mais um pedaço?
– Não, obrigada.
– Vamos, deixa eu colocar de novo na sua boca.
– Você tá sendo safado!
– Não, claro que não, quero apenas te dar de comer, só isso.

Um pedaço de quiche não tem absolutamente nenhuma condição erótica, mas a Malícia é capaz de transformar até uma refeição em um torneio de provocações mútuas. E foi assim que P. preferiu se concentrar no próprio prato, com olhos fixos nos olhos de M., e com gestos intensamente femininos cortava os pedaços de sua quiche, para depois passá-los pelo molho de mostarda e nozes da salada, de um lado ao outro, em um movimento ritmado, para subitamente levá-los à boca e mastigá-los decidida, quase feroz.

– Está uma delícia.
– Tô percebendo.

M. enche a sua taça de vinho enquanto fala alguma coisa, não precisamos prestar atenção [as cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas]. Depois pega a taça, a mão enlaçando-a completamente, as regras de etiqueta tão ridículas quanto as cartas dos enamorados repreenderiam este gesto de M., sussurrariam envergonhadas que se deve sempre pegar uma taça pela haste e com a ponta dos dedos, mas ele não daria ouvido a sussurro algum, queria apenas beber tão rapidamente quanto possível, e foi o que fez: a taça levada com delícia aos lábios, o pescoço sustentando a cabeça que se projeta para trás, o veneno de Vênus descendo garganta abaixo, já são ardências romanas que avivam a carne nesta divina bebedeira tropical.

– Quanta sede.
– É só o começo, neném.

Quiches acabadas, pediram a sobremesa. A torta de maçã com sorvete de creme é a suprema opção do restaurante, e seria quase como nunca ter ido lá se M. não fizesse P. prová-la: a torta é servida quente, com generosos pedaços de maçã caramelada, perfeita combinação para um cremoso sorvete-que-derrete, a esta altura Deus e seus anjos já devem ter cansado de chorar as almas perdidas dos clientes do Le Tartine. M. fez questão de, tão logo tenham chegado as deliciosas tortas, levar até a boca de P. um pedaço daquele doce terrível, que soltava fumaças tanto frias quanto quentes, curiosa síntese mal-resolvida.

– Gostou?
– Sim, e quero mais.

O leitor precisa saber: isso foi dito com uma intenção cruel. Só aos homens é possível compreender a vasta dimensão da crueldade de uma mulher dizendo quero mais enquanto passa a língua pelos lábios superiores. E da mesma forma são cruéis as mãos femininas que arrumam os cabelos por nada, são cruéis os atos de se espreguiçar sem estar realmente com preguiça, são cruéis as unhas vermelhas, são cruéis os brincos de argolas enormes e são cruéis muitas coisas que aqui não vou dizer, traição grave aos meus companheiros revelar assim nossas fraquezas. O que resta dizer sobre este jantar é que as cruéis palavras de P. funcionaram como um elemento ativador de todas as potencialidades venusinas do vinho, e de repente não importava mais o infernal calor dos últimos dias, não importava que as mesas estavam todas cheias de pessoas falando sem parar e com suas respirações aumentando ainda mais o calor no Le Tartine, não importavam as quiches nem as tortas de maçã e muito menos saber que só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas: para aqueles dois a única coisa importante era pagar a conta e desesperadamente voltar para casa o mais rápido possível.

4.09.2009

Epifania

Epifania vem do grego Eπιφάνεια, que significa “aparição”. A palavra latinizou-se e entrou para o calendário católico designando o momento da adoração de Jesus pelos Três Reis Magos, vindos do Oriente para contemplar a “aparição” de Deus na terra. Epifania também tem uma acepção secular e significa a apreensão do sentido profundo de uma realidade por meio de algo simples, inesperado ou banal.

Epifania pode ser um bilhete oculto, mas que o descuido de um amante deixou escapar e justamente aqueles olhos que não o deveriam ler o fazem, tomados de espanto (adorei a noite de ontem, espero ansiosa o dia em que poderei enfim tê-lo só para mim, apenas meu e de mais ninguém, assim como eu já sou toda sua). Epifania no formato de um simples pedaço de papel cuja leitura é como um sonho ruim, leitura acompanhada de uma incredulidade amarga, mas que explica as conversas semimudas, os carinhos sem calor, o sexo sem a entrega.

Epifania é também um diagnóstico tardio (O câncer no pulmão já está em metástase por via hematogênica, Explique melhor doutor, Metástase é o processo que espalha as células cancerígenas de um órgão para outros órgãos, por via hematogênica quer dizer que é pelo sangue, o que é o mesmo que dizer que o câncer já se alastrou pelo corpo inteiro, Não há mais nada a fazer então, Não, sinto muito, só nos resta esperar). Diagnóstico que faz lembrar das dores absurdas, do cansaço para coisas que antes não nos cobravam nenhum esforço, dos primeiros sintomas que nunca percebemos mas que o veredicto do médico torna uma realidade pungente, levando cada célula cerebral a trabalhar no limite, vasculhando o passado na busca do impossível que é saber quando se deveria ter ido fazer um check-up, quando se poderia ter descoberto aquele pequeno amontoado de células mortas que crescia silencioso, alimentando a doença em pequenas doses, expandindo lentamente sua massa negra e sem forma que faz apodrecer até os ossos.

Epifania tanto pode ser a respeito do indivíduo (a traição do amante, a doença incurável) como também abranger realidades maiores. Há epifanias que nos revelam aspectos do mundo, da vida em geral. Podem ser experimentadas na solidão de um quarto ou nos bancos de um metrô às dezoito. A janela de um ônibus, por exemplo, ao passear indiferentemente pelas avenidas de uma grande cidade, pode ser canalizadora de epifanias. Como a moldura de um quadro, a janela de um ônibus (algo simples, inesperado ou banal) mostra a cidade como uma paisagem; o efeito em geral é entediante, mas há momentos em que a janela testemunha algo maravilhoso e convida os olhos próximos a compartilhar desta visão. O que daí resulta é problema de cada par de olhos que aceitou o convite.

Uma janela convidou os meus em um fim de tarde, quando o ônibus chegava ao final da avenida P. Olhei para uma praça que ali fica, onde existe um chafariz desativado já há anos; sem água, o chafariz é triste e apenas acentua a decadência daquela pequenina praça circular de bancos sujos e árvores feias. No centro do chafariz há uma estátua de um homem agachado olhando para baixo com a mão direita ameaçadoramente levantada, como que prestes a golpear algo que está no chão. Passavam muitas pessoas por ali naquele final de tarde, como sempre, mas detive os olhos em um casal de namorados: sentados em um dos bancos da praça, em frente ao chafariz desativado e triste, eles se olhavam trocando sorrisos, ela com os braços sobre o pescoço dele, ele com as mãos na cintura dela. Pareciam contentes, talvez apaixonados e, se quisermos exagerar, até mesmo felizes. O fato é que estavam sentados em uma praça e trocavam carinhos, da mesma forma que milhões de outros casais já fizeram, em incontáveis praças pelo mundo. A praça pública, símbolo de recreação e bem-estar, arremedo de natureza entre prédios que só crescem, a praça pública ou, mais precisamente, o namoro em praça pública nos parece, nós filhos dos tempos modernos, um acontecimento remotíssimo e que só pode ter lugar na memória dos velhos e nas páginas de uma literatura que pouco nos interessa. Mas nada disso importava para aquele casal. Era necessário um lugar para sentar e trocar carinhos e ali, naquele banco, eles encontraram esse lugar.

A moldura-janela movia-se (tanto a contemplação do casal como o que aqui segue não durou mais do que segundos) permitindo que o olhar alcançasse um outro ponto do chafariz desativado. Isso revelou que havia algo dentro do chafariz; a princípio não pude definir muito bem, mas então percebi (o bilhete oculto, o diagnóstico tardio) que se tratava de uma mulher: de cócoras, semi-oculta pela borda do chafariz, ela defecava desavergonhadamente, espalhando suas fezes aos pés da estátua central (enorme ironia aquela mão levantada, como prestes a golpear um animal rastejante, um verme). Eram pastosos pedaços de fezes que nasciam para o mundo no chafariz daquela praça suja de árvores feias; e logo ali em frente, sorridentes e estúpidos, um casal de namorados sentado em um banco, gozando da decadente hospitalidade de uma praça pública. Nenhum deles parava de fazer o que estava fazendo pela presença do outro: ela continuava defecando; eles, sentados logo ali em frente, permaneciam com os mesmos gestos e olhares apaixonados. A praça pública atuava como um neutralizador de presenças incômodas, de odores fétidos, de olhares curiosos, abrigando uma cena que já demasiada vulgar, repetida cotidianamente e até mesmo com graus de escatologia ainda maiores. E assim como os amantes que traem e os diagnósticos tardios, a cena que vi pela janela do ônibus (algo simples, inesperado ou banal) já é parte do cotidiano, e mescla-se à paisagem urbana como um item a mais, a necessária peça do quebra-cabeça sem a qual o jogo jamais estará completo. Aquele quadro absolutamente banal –a praça abandonada, a indiferença do casal de namorados, a ausência de pudor da mulher que defecava– funciona como um microcosmo da Cidade, reflexo de suas manias e trejeitos, espelho onde o seu sentido mais profundo se apresenta ofegante, impiedoso, terrível como uma epifania do divino cheia de brutalidade e selvageria, mostrando a mim, nos poucos segundos em que contemplei aquela cena, o sentido profundo de uma cidade enlouquecida e que permite tudo que viole suas próprias regras, infiel até mesmo para as próprias mentiras que conta, regozijante de seu vão glamour subdesenvolvido, sufocada pela hipertrofia desenfreada das banalidades mais chãs e constantemente espancando a todos com o peso hercúleo das avenidas congestionadas, da insegurança supervalorizada pelos jornais que vivem de sangue, da falência de tudo o que é público. E com feridas do tamanho de nossas desilusões –enormes, profundas, antigas– a miséria cotidiana é engolida como um gole de café e mesmo com tantos pontapés nenhuma nova dor parece ser possível.