Chegar neste ponto onde me resta apenas um ano antes de completar trinta é como estar vivendo aqueles momentos trágicos que antecedem a expulsão do Paraíso. Pois agora, dado o distanciamento, percebo que a vida que vivemos é um Paraíso até que alguma forma de desgraça nos force a dividí-la em um antes e em um depois. Eu ainda era um adolescente em corpo e espírito naquela época, inconsciente de tudo, quando este marco divisor aconteceu - e lógico que não precisa ser muito perspicaz para entender que há uma mulher e um amor despedaçado nesta história. A Inconsciência! O Paraíso é isso: um tipo de inconsciência que toma ares de absoluto. Nada perturba os inconscientes, basta termos em mente os ascetas que por anos vivem em suas cavernas de frio isolamento. Quem me dera ter esta tranqüilidade de aço! Mas não: apartado do Paraíso, dele hoje tenho apenas relampejos e memórias gastas. Tive hoje flashes daquele tempo quase imemorial, quando pude ter um tempo a mais a vagar pela Santo André terra natal, e ali, vendo as ruas e os caminhos que percorria eu ainda infante, sem medo, sem nem saber o que é o Saber, apenas um ser que não é sujeito, e lembrei em detalhes de tantas coisas que havia esquecido, e os olhos encontraram prédios onde antes havia apenas casas, encontraram sujeira onde antes só havia brincadeira, e desilusão, e tédio, vamos embora daqui, Memória, vamos para longe, leve-me de volta para aquele pedaço de Paraíso que eu tinha aqui. As décadas passam e as cidades mudam, a paisagem nunca é a mesma, mas a crueldade de um prédio que nasce como um tirano entre escombros de minhas lembranças é algo que não suporto, vamos embora daqui, e agora. São vinte e nove anos, eu pergunto pelas minhas realizações, Deus pergunta pelas minha realizações, diga-me o que fizeste, filho, Pai, pouco fiz de minha vida, andei é espalhando coisas ruins para as pessoas, andei é machucando as mulheres, andei é passando noites em claro e gastando meus dias arquitetando planos de como me vingar de muita gente, até no trabalho fui desonesto, teve uma menina que me pediu perdão e eu neguei, apenas pelo prazer de vê-la triste, já matei animais pequenos, já desejei mal de forma gratuita, traí pessoas que amava e quando recebi o troco achei que eu merecia o sangue delas (ainda penso em matá-las, confesso), todos os meus primos e irmãos tem famílias bem construídas e eu nem sequer tenho uma namorada fixa, eles já deram netos para meus tios, pobre da minha mãe, ela quer tanto um neto, sempre me rejeitei a idéia de ter filhos mas quando vejo a velhice consumindo meus pais eu sinto nojo de mim, da minha incapacidade de ter uma vida decente e de dar a eles um sucessor, um consolo para uma vida de privações, eu mesmo ficaria feliz em ter esposa e filhos agora, é Deus, eu admito, filhos e esposa me alegrariam, me salvariam de mim, havia uma garota que poderia fazer isso, ela me salvava de mim, mas agora já é passado, nada como um dia após o outro, eu ainda gasto dinheiro com pornografia e não me preocupo muito com isso, só há pouco tempo passei a dar mais atenção para minha aparência, tem dias que sinto muita dor de cabeça e pensei em rezar para ver se ajudava, mas este escambo de devoção por cura me pareceu baixo demais, mesmo sabendo que a Sua bondade é infinita eu permaneci com dor de cabeça e teimoso em minha blasfêmia, ainda há muito por confessar, Deus, mas eu não tenho a eternidade que Você tem, prefiro apenas traçar metas mais realistas, todas anotadas em um caderninho diminuto ao lado da escrivaninha, coisas simples que me deixarão feliz neste último ano de vida, pois depois dos trinta o que me resta é apenas o esquecimento, engraçado que sempre achei as histórias dos solitários dignas de admiração, lia Fante e achava Bandini demais, ainda acho, mas a dor de ser solitário às vezes é foda demais, peço perdão pela palavra, mas é que nada há em meu cansado vocabulário de insone algo mais apropriado que foda para explicar a sina da solidão, uma namorada me deixou uma citação de Goethe na escrivaninha, o que desejamos na juventude alcançamos na velhice, sei lá de onde ela tirou isso, mas ainda tenho a citação por lá, este Goethe meio neurolingüístico me parece suspeito, mas ao menos comigo vejo se realizar os desejos juvenis, Goethe filho-da-puta, não se assuste o leitor com mais este termo desajeitado, nem com a indelicadeza de ofender tão nobre escritor, que admiro, Werther foi um corajoso ou um covarde?, só sei que ele está ali, entre os desejos de outrora, e passados vinte e nove anos de vida nem o suicídio é atraente, prefiro é mesmo continuar vivendo, às vezes triste, às vezes alegre, pensando em Deus e em minha existência que é uma vergonha para o Reino dos Céus, desejando a sublime disciplina dos santos todos os dias, e vivendo como um pusilânime amante de tudo o que é rápido, fugaz e fútil, aprendendo que esta vida corrida que há anos não me larga, que me joga de um trabalho para outro, de uma viagem para a outra, de um isolamento para outro, esta vida nunca vai parar, e continuamente vai me dar Prazer e Beleza logo em seguida de noites de Dor e Terror.