Livros são um excelente negócio. Por mais tenebrosas que sejam as estatísticas mostrando que
o brasileiro lê menos de dois livros por ano, o mercado editorial cresce (ainda que timidamente). Em números absolutos, foram produzidos no ano passado 499.796.286 unidades de livros que correspondem a 58.192 títulos (entre inéditos e reimpressões): uma oferta quase infinita de possibilidades de leituras, que transforma as livrarias em verdadeiros shopping centers, elevando algumas ao pomposo status de atração cultural de algumas cidades - é o caso da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, na capital paulista.
Amantes de livros, e de literatura em especial, tenderiam a ver esse cenário como positivo. Afinal, melhor ter essa abundância de livros do que não alguns poucos e mirrados lançamentos. Entretanto, o que estaria nos bastidores dessa opulência editorial, fenômeno que não é restrito ao Brasil? Como a produção de e-books e e-readers estimula esse crescimento? Que interesses ocultos (perversos?) estão presentes nos preços fabulosos oferecidos pela Amazon? As sociedades estão de fato se beneficiando desses processos? Ou tudo não passa de um sintoma da decadência cada vez mais acelerada, onde a cultura é tão somente mais um aspecto da vida a se degradar?
São questionamentos como esses que motivou a criação do grupo "Les 451", em Paris, que lançou o seu manifesto no último dia 5 de setembro nesse site e assinado por 451 profissionais do mercado livreiro (revisores, editores, escritores, bibliotecários, etc). Entre seus signatários, o filósofo italiano Giorgio Agamben, autor que já tive a oportunidade de ler/comentar alguns textos e que foi um dos motivos a colocar aqui uma tradução do manifesto, publicado de modo inédito em língua portuguesa graças à iniciativa de
Bolívar Torres e
Juliana Fausto. Fica aqui meu agradecimento a ambos.
Sem mais delongas, o manifesto.
O livro e a armadilha da mercadorização
Nós, o coletivo de 451 profissionais da cadeia de negócios do livro, começamos a nos reunir há algum tempo para discutir a situação presente e futura de nossas atividades. Tomados em uma organização social que separa as tarefas, a partir de um sentimento comum – fundado em experiências diversas – de uma degradação acelerada das maneiras de ler, produzir, compartilhar e vender livros, consideramos que hoje a questão não se limita ao setor, e procuramos soluções coletivas para uma situação social que nos recusamos a aceitar.
A indústria do livro vive em grande parte graças à precariedade que aceitam muitos de seus trabalhadores, seja por necessidade, paixão ou engajamento político. Enquanto estes tentam difundir ideias ou imagens capazes de mudar nossos pontos de vista sobre o mundo, outros têm entendido que o livro é sobretudo uma mercadoria com a qual é possível conseguir lucros substanciais
Sabendo tanto como se apropriar dos grandes princípios de independência ou de democracia cultural quanto praticar a avalanche publicitária, a exploração salarial e a diversidade do monopólio, as Leclerc, Fnac, Amazon, Lagardère e outros grandes grupos financeiros querem nos fazer perder de vista uma das dimensões essenciais do livro: um elo, um encontro.
Enquanto isso, quer se trate de profissionais simbolicamente reconhecidos ou de pequenos serviços indispensáveis à toda cadeia econômica, cultural e social, as profissões ligadas ao livro são desqualificadas e substituídas por operações técnicas nas quais tomar tempo se torna inconcebível.
A indústria do livro não tem de fato necessidade senão de consumidores impulsivos, de networkers de opinião e de outros temporários maleáveis? Muitos de nós se encontram então presos às lógicas do mercado, desprovidos de qualquer pensamento coletivo ou de perspectivas de emancipação social – hoje em dia terrivelmente ausentes do espaço público.
Enfraquecida pelo critério do sucesso, a produção de ensaios, de literatura ou de poesia se empobrece, os recursos de livrarias ou de bibliotecas se esgotam. O valor de um livro se dá em função de seus números de venda e não de seu conteúdo. Não será mais possível ler senão o que é bem-sucedido. Ora, enquanto o CEO da Amazon, Jeff Bezos, declara que “atualmente as únicas pessoas necessárias para a edição são o leitor e o escritor”, certas pessoas continuam a trabalhar com livros, livrarias, gráficas, bibliotecas ou em editoras em escala humana. Apesar de nossa vontade de resistir, nós somos, como a imensa maioria, cercados pela informática, pelas lógicas gerenciais e pelos finais de mês difíceis.
Embarcamos igualmente em uma pseudodemocratização da cultura, que continua a se nivelar por baixo, e se reduzir ao empobrecimento e uniformização das ideias e dos imaginários, para corresponder ao mercado e à sua racionalidade. Atônitos, tentamos nos manter atualizados: nos viramos com os programas, as encomendas on-line, os corretores automáticos, as deslocalizações, a avalanche de novidades rasas, as ameaças dos bancos, a alta dos aluguéis e as digitalizações selvagens.
Todavia, não podemos resolver reduzir o livro e seu conteúdo a um fluxo de informações digitais e clicáveis ad nauseam; o que nós produzimos, compartilhamos e vendemos é antes de tudo um objeto social, político e poético. Mesmo em seu aspecto mais modesto, de divertimento ou de prazer, fazemos questão de que permaneça cercado por seres humanos.
Rejeitamos claramente o modelo de sociedade que nos está sendo proposto, alguma parte entre a tela e a grande superfície, com seus bip-bips, seus néons e seus fones crepitantes, e que tende a conquistar todas as profissões. Pois, pensando na atualidade das profissões, nós pensamos igualmente em todos que vivem situações similares demais para serem anedóticas.
Dessa maneira, os médicos segmentam seus atos para melhor contabilizar, os trabalhadores se esgotam preenchendo tabelas de avaliação, os carpinteiros já não podem plantar um prego que não seja ordenado por um computador, os pastores são convocados a equipar suas ovelhas com chips eletrônicos, os mecânicos obedecem às suas ferramentas informatizadas e a mochila eletrônica nas escolas é para daqui a pouco.
A lista é tão longa que é preciso se agrupar para parar esta máquina cega de progresso. Em vez de esperar a próxima medida europeia de rigor ou o enésimo ataque do ministério da cultura contra a cadeia de profissões do livro, preferimos nos organizar desde já.
Por exemplo, encontrando alternativas, criando cooperativas mútuas de compra, unindo-nos por melhores condições salariais, ou ainda inventando lugares e práticas que convêm melhor à nossa visão de mundo e à sociedade em que desejamos viver.
É justamente porque tomamos a medida do desastre atual que estamos otimistas: tudo está para ser construído. Antes de mais nada, queremos parar de jogar eternamente a culpa uns nos outros e cortar na raiz a resignação e o derrotismo ambientes. Lançamos então um chamado a todos aqueles e todas aquelas que se sentem interessados a se encontrar com o objetivo de compartilhar nossas dificuldades e necessidades, nossos desejos e projetos.