12.28.2012

O burguês, por Hermann Hesse


"O “burguês”, como um estado sempre presente da vida humana, não é outra coisa senão a tentativa de uma transigência, a tentativa de um equilibrado meio-termo entre os inumeráveis extremos e pares de opostos da conduta humana. Tomemos, por exemplo, qualquer dessas dualidades, como o santo e o libertino, e nossa comparação se esclarecerá em seguida. O homem tem a possibilidade de entregar-se por completo ao espiritual, à tentativa de aproximar-se de Deus, ao ideal de santidade. Também tem, por outro lado, a possibilidade de entregar-se inteiramente à vida dos instintos, aos anseios da carne, e dirigir seus esforços no sentido de satisfazer seus prazeres momentâneos. Um dos caminhos conduz à santidade, ao martírio do espírito, à entrega a Deus. O outro caminho conduz à libertinagem, ao martírio da carne, à entrega, à corrupção. O burguês tentará caminhar entre ambos, no meio do caminho. Nunca se entregará nem se abandonará à embriaguez ou ao ascetismo; nunca será mártir nem consentirá em sua destruição, mas, ao contrário, seu ideal não é a entrega, mas a conservação de seu eu, seu esforço não significa nem santidade nem libertinagem, o absoluto lhe é insuportável, quer certamente servir a Deus, mas também entregar-se ao êxtase, quer ser virtuoso, mas quer igualmente passar bem e viver comodamente sobre a terra. Em resumo, tenta plantar-se em meio aos dois extremos, numa zona temperada e vantajosa, sem grandes tempestades ou borrascas, e o consegue ainda que à custa daquela intensidade de vida e de sentimentos que uma existência extremada e sem reservas permite. Viver intensamente só se consegue à custa do eu. Mas o burguês não aprecia nada tanto quanto o seu eu (um eu na verdade rudimentarmente desenvolvido). À custa da intensidade consegue, pois, a subsistência e a segurança; em lugar da posse de Deus cultiva a tranqüilidade da consciência; em lugar dos ardores mortais, uma temperatura agradável. O burguês é, pois, segundo sua natureza, uma criatura de impulsos vitais muito débeis e angustiosos, temerosa de qualquer entrega de si mesma, fácil de governar. Por isso colocou em lugar do poder a maioria, em lugar da autoridade a lei, em lugar da responsabilidade as eleições."

Trecho de "O lobo da estepe", do Hermann Hesse.

12.21.2012

Fim do mundo


Escrevo isso nos momentos que antecedem o Fim do Mundo, o 21/12/2012, que todos sabem que não irá acontecer mas ficam alardeando, com o cinismo fanfarrão que é a insígnia  máxima da cultura moderna [o período anterior é completamente contraditório e assim permanecerá, como prova de que a doença cínica contamina a todos, e não me excluo do séquito dos enfermos]. O ano, pesado, arrasta-se ao seu final e, como quase todo mundo, proponho-me a fazer um balanço do ano dois mil e doze de Nosso Senhor.

Nas leituras, gastei boa parte do meu tempo em 2012 com René Guénon. Ainda estou nos princípios da extensa obra dele, seguindo as instruções de leitura contidas neste guia do Instituto René Guénon de Estudos Tradicionais . Resolvi empreender a leitura completa das obras de Guénon por um motivo: o crescimento de pessoas, editoras, encontros e grupos que levantam a bandeira da Tradição Primordial mesclando-a com política, ativismo e outras tendências da Via da Ação, muitas vezes com claro interesse beligerante, e que consideram a obra de Guénon um "atraso", um "erro", "passiva" demais em um mundo que pede, a todos os momentos, que se passe da contemplação para o campo de batalha. Só o tom imperativo de tais discursos, onde defende-se que estamos nos momentos extremados do Fim dos Tempos, onde em breve o mundo vai acabar, me dá uma espécie de nojo misturado com cansaço: parece que estou ouvindo as mesmas ladainhas apocalípticas daqueles crentes fanáticos que pregam na Praça da Sé, com suas Bíblias cheirando a axilas mal lavadas. Publiquei muitos textos do Alexander Dugin aqui no blog, autor pelo qual nutri bastante interesse nos últimos meses, e que é um dos que se enquadram muito bem na rubrica daqueles que defendem a "Tradição" com um tom propagandístico, partidário e político. Entretanto, após ler dois livros dele, a conclusão que chego é que pouquíssimo da Tradição encontrei em seus escritos, praticamente nada de "verdadeiramente espiritual", mas em contrapartida encontrei um tipo de pensamento que coloca no liquidificador uma série de fontes das mais contraditórias, embeleza com uma verborragia carregada de termos apocalípticos e põe na prateleira das idéias prontas para o consumo de jovens que, cansados da democracia, buscam uma nova utopia salvadora, e de preferência que tenha cheiro de mísseis e marchas militares antigas. Cansado que estou das utopias, e desde há muitos anos, passo adiante e deixo os delírios de Dugin e companhia para quem tenha interesse na loucura de acreditar em um mundo melhor, e fico com o "atrasado" René Guénon.

Na música consegui, finalmente, voltar a ter uma "rotina" com ensaios em uma banda, o que não fazia desde 2009 com o fim do Life is a Lie (que esteja repousando eternamente). Digo "rotina" assim, entre aspas, pois os ensaios foram esporádicos, até porque não se trata exatamente de uma banda no sentido tradicional do termo. Gravamos as músicas, ou pelos 99% delas, na sala da casa de um dos integrantes, graças ao maravilhoso ser humano Steve Jobs e sua empresa Apple. É incrível como um Macbook pode fazer gravações com qualidade e facilidade impressionantes. E o melhor: com custo zero, praticamente. Possibilidades enormes, sem dúvida, mas ainda confesso que é bem estranho fazer música sem estar no clima de estúdio, rodeado de amplificadores, instrumentos, etc. Creio que no primeiro semestre de 2013, finalmente, lançaremos as músicas que produzimos ao longo do ano [como em todas as bandas da qual participei, o processo de composição é bem lento, quase penoso; nunca serei um "músico produtivo", daqueles que lançam dezenas de lançamentos ao longo do ano, todos excelentes; essa afirmação, contudo, jamais tirará do meu altar de ídolos o hiper produtivo Mikko Aspa, o homem que nunca dorme e participou/é as bandas Noise Waste, Grunt, Nicole 12, Clandestine Blaze, Deathspell Omega, Bizarre Uproar, Stabat Matter (deve ter outras quinhentas) e também administra uma gravadora, uma revista, um fórum de discussões (onde sempre participa com posts gigantescos) e uma produtora de filmes pornôs]. Não ouvi muita música nova esse ano, pelo menos não na quantidade dos anos anteriores (claro reflexo de um ano agitado onde trabalhei mais do que nunca). Os que mais me chamaram a atenção foram os seguintes:

- Blood of the Black Owl - "Light the fires!"
- Preterite - "Pillar of winds"
- Aluk Todolo - "Occult rock"
- Ianva - "La mano di gloria"
- Abuse Patterns - Reproducing the Pathology

O restante do que ouvi ou é antigo ou é rock, como Madball, que me peguei ouvindo novamente tempos atrás, ou Cwill, que é velho demais e eu escutei com a vivacidade de uma recém-descoberta pois a memória abandona-me mais e mais. Entretanto, o que mais me interessa ouvir atualmente é completamente distante de música; ruídos, experimentações, elementos desconexos me animam mais que melodias. Talvez porque proporcionem um escudo sonoro mais eficaz contra o mundo exterior, isolando-me do som nauseantes das conversas no metrô. Aliás, desenvolvi esse ano uma quase-fobia, que é a de entrar no metrô sem meu MP3 player. O trajeto deixa-me sufocado: as nuvens sonoras de conversas odiosas, o som das risadas desgraçadamente agudas de algumas mulheres, os filhos da puta que gritam nos celulares e tornam públicas suas discussões sobre NADA. Uso, então, meus fones de ouvido como um casulo de onde saio somente quando cruzo a porta de minha casa.

No campo da escrita, consegui desenvolver uma parte de um novo livro - um romance, para ser mais exato. Tem pelo menos dois cadernos com um monte de folhas anotadas, rascunhos de rascunhos, que precisam de uma ordem ainda. Não é algo que eu tenha deixado morrer, mas claramente releguei a um segundo plano, seja por compromissos profissionais, seja por ver em boa parte dos escritos uma vaidade enorme, que me fez ter muita vergonha de existir. No final das contas, muito da literatura é feito sobre vaidade, ou pelo menos a vaidade é a mola propulsora do escritor, que deseja publicar e ver seu nome "imortalizado" em uma folha de papel. Declarada ou não, ela sempre está. Mas acho que exagerei em muitas partes, e a meta é reescrever tudo o que foi feito, com o firme propósito de tornar minha sensibilidade quase nula em tudo o que virá. Nada do que sentimos, é importante; o mundo passa muito bem sem nossas queixas, nossas alegrias, nossas esperanças. Isso é tão claro para mim que chega a ser desonroso publicar qualquer linha que exceda o justo limite de uma vaidade controlada com férrea disciplina. Justamente por isso, a tendência é escrever menos e menos, até extinguir-me. 

Em relação à vida pessoal, este ano consegui solidificar laços muito importantes, tanto amoroso quanto de amizade. Foi excelente a convivência que tive com poucas mas valorosas pessoas, que não necessito nomear aqui. Conquistei, também, alguns novos amigos, pessoas com as quais aprendi muitas coisas e mantenho uma relação que desejo aprofundar no novo ano. Ao mesmo tempo, foi possível ver com mais clareza ainda o que me distancia de um monte de outras pessoas, o que me distancia de suas paixões e ambições, de suas perturbadas maneiras de existir e relacionar-se com os demais. Envoltas em um maremoto de contradições, anseios descontrolados e atitudes irresponsáveis, a maioria das pessoas me deixa com uma sensação de enorme preguiça. Considero-me, de certo modo, bastante diferente delas; não comungo de seus sonhos, de seus "problemas", de suas rotinas. Coloco-me o direito, apenas, de manter-me distante de tudo aquilo que não considero saudável, assim como de empurrar com um gesto, violento se necessário, qualquer ameaça ao meu círculo de convivência. É muito trabalhoso ter muitos amigos, e na verdade ter muitos amigos é no fim das contas não ter nenhum amigo de verdade. Por isso é melhor ter sempre cada vez menos e assim acumular mais - uma matemática estranha que parece saída de um livro de auto-ajuda, mas é o que a vida tem me mostrado na base do exemplo.

Para dar o clima de tensão necessário para a entrada de um novo ano, uma bela canção para encerrar o post:

9.11.2012

A mercantilização do livro: o "manifesto dos 451"


Livros são um excelente negócio. Por mais tenebrosas que sejam as estatísticas mostrando que o brasileiro lê menos de dois livros por ano, o mercado editorial cresce (ainda que timidamente). Em números absolutos, foram produzidos no ano passado 499.796.286 unidades de livros que correspondem a 58.192 títulos (entre inéditos e reimpressões): uma oferta quase infinita de possibilidades de leituras, que transforma as livrarias em verdadeiros shopping centers, elevando algumas ao pomposo status de atração cultural de algumas cidades - é o caso da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, na capital paulista. 

Amantes de livros, e de literatura em especial, tenderiam a ver esse cenário como positivo. Afinal, melhor ter  essa abundância de livros do que não alguns poucos e mirrados lançamentos. Entretanto, o que estaria nos bastidores dessa opulência editorial, fenômeno que não é restrito ao Brasil? Como a produção de e-books e  e-readers estimula esse crescimento? Que interesses ocultos (perversos?) estão presentes nos preços fabulosos oferecidos pela Amazon? As sociedades estão de fato se beneficiando desses processos? Ou tudo não passa de um sintoma da decadência cada vez mais acelerada, onde a cultura é tão somente mais um aspecto da vida a se degradar?

São questionamentos como esses que motivou a criação do grupo "Les 451", em Paris, que lançou o seu manifesto no último dia 5 de setembro nesse site e assinado por 451 profissionais do mercado livreiro (revisores, editores, escritores, bibliotecários, etc). Entre seus signatários, o filósofo italiano Giorgio Agamben, autor que já tive a oportunidade de ler/comentar alguns textos e que foi um dos motivos a colocar aqui uma tradução do manifesto, publicado de modo inédito em língua portuguesa graças à iniciativa de Bolívar Torres e Juliana Fausto. Fica aqui meu agradecimento a ambos.

Sem mais delongas, o manifesto.

O livro e a armadilha da mercadorização
Nós, o coletivo de 451 profissionais da cadeia de negócios do livro, começamos a nos reunir há algum tempo para discutir a situação presente e futura de nossas atividades. Tomados em uma organização social que separa as tarefas, a partir de um sentimento comum – fundado em experiências diversas – de uma degradação acelerada das maneiras de ler, produzir, compartilhar e vender livros, consideramos que hoje a questão não se limita ao setor, e procuramos soluções coletivas para uma situação social que nos recusamos a aceitar.

A indústria do livro vive em grande parte graças à precariedade que aceitam muitos de seus trabalhadores, seja por necessidade, paixão ou engajamento político. Enquanto estes tentam difundir ideias ou imagens capazes de mudar nossos pontos de vista sobre o mundo, outros têm entendido que o livro é sobretudo uma mercadoria com a qual é possível conseguir lucros substanciais

Sabendo tanto como se apropriar dos grandes princípios de independência ou de democracia cultural quanto praticar a avalanche publicitária, a exploração salarial e a diversidade do monopólio, as Leclerc, Fnac, Amazon, Lagardère e outros grandes grupos financeiros querem nos fazer perder de vista uma das dimensões essenciais do livro: um elo, um encontro.

Enquanto isso, quer se trate de profissionais simbolicamente reconhecidos ou de pequenos serviços indispensáveis à toda cadeia econômica, cultural e social, as profissões ligadas ao livro são desqualificadas e substituídas por operações técnicas nas quais tomar tempo se torna inconcebível.

A indústria do livro não tem de fato necessidade senão de consumidores impulsivos, de networkers de opinião e de outros temporários maleáveis? Muitos de nós se encontram então presos às lógicas do mercado, desprovidos de qualquer pensamento coletivo ou de perspectivas de emancipação social – hoje em dia terrivelmente ausentes do espaço público.

Enfraquecida pelo critério do sucesso, a produção de ensaios, de literatura ou de poesia se empobrece, os recursos de livrarias ou de bibliotecas se esgotam. O valor de um livro se dá em função de seus números de venda e não de seu conteúdo. Não será mais possível ler senão o que é bem-sucedido. Ora, enquanto o CEO da Amazon, Jeff Bezos, declara que “atualmente as únicas pessoas necessárias para a edição são o leitor e o escritor”, certas pessoas continuam a trabalhar com livros, livrarias, gráficas, bibliotecas ou em editoras em escala humana. Apesar de nossa vontade de resistir, nós somos, como a imensa maioria, cercados pela informática, pelas lógicas gerenciais e pelos finais de mês difíceis.

Embarcamos igualmente em uma pseudodemocratização da cultura, que continua a se nivelar por baixo, e se reduzir ao empobrecimento e uniformização das ideias e dos imaginários, para corresponder ao mercado e à sua racionalidade. Atônitos, tentamos nos manter atualizados: nos viramos com os programas, as encomendas on-line, os corretores automáticos, as deslocalizações, a avalanche de novidades rasas, as ameaças dos bancos, a alta dos aluguéis e as digitalizações selvagens.

Todavia, não podemos resolver reduzir o livro e seu conteúdo a um fluxo de informações digitais e clicáveis ad nauseam; o que nós produzimos, compartilhamos e vendemos é antes de tudo um objeto social, político e poético. Mesmo em seu aspecto mais modesto, de divertimento ou de prazer, fazemos questão de que permaneça cercado por seres humanos.  

Rejeitamos claramente o modelo de sociedade que nos está sendo proposto, alguma parte entre a tela e a grande superfície, com seus bip-bips, seus néons e seus fones crepitantes, e que tende a conquistar todas as profissões. Pois, pensando na atualidade das profissões, nós pensamos igualmente em todos que vivem situações similares demais para serem anedóticas.

Dessa maneira, os médicos segmentam seus atos para melhor contabilizar, os trabalhadores se esgotam preenchendo tabelas de avaliação, os carpinteiros já não podem plantar um prego que não seja ordenado por um computador, os pastores são  convocados a equipar suas ovelhas com chips eletrônicos, os mecânicos obedecem às suas ferramentas informatizadas e a mochila eletrônica nas escolas é para daqui a pouco.  

A lista é tão longa que é preciso se agrupar para parar esta máquina cega de progresso. Em vez de esperar a próxima medida europeia de rigor ou o enésimo ataque do ministério da cultura contra a cadeia de profissões do livro, preferimos nos organizar desde já.

Por exemplo, encontrando alternativas, criando cooperativas mútuas de compra, unindo-nos por melhores condições salariais, ou ainda inventando lugares e práticas que convêm melhor à nossa visão de mundo e à sociedade em que desejamos viver.

É justamente porque tomamos a medida do desastre atual que estamos otimistas: tudo está para ser construído. Antes de mais nada, queremos parar de jogar eternamente a culpa uns nos outros e cortar na raiz a resignação e o derrotismo ambientes. Lançamos então um chamado a todos aqueles e todas aquelas que se sentem interessados a se encontrar com o objetivo de compartilhar nossas dificuldades e necessidades, nossos desejos e projetos.  


Versão original em http://les451.noblogs.org/

9.01.2012

3ADFZPA


Foi lançada a convocatória para o 3º Anuário de Fanzines, Zines e Publicações Alternativas (3ADFZPA) dos mecenas do underground, a Ugra Press. Desta vez estendemos o convite aos editores de todos os países ibero-americanos.

Você pode ver mais informações sobre o projeto nesse link: http://ugrapress.wordpress.com/3adfzpa-3o-anuario-de-fanzines-zines-e-publicacoes-alternativas/

A participação é totalmente gratuita. Se você tem um zine, uma revista ou qualquer outro tipo de publicação alternativa impressa, está mais do que obrigado a participar.

8.29.2012

Livros insignificantes: resenha de "Devastação", de René Barvajel


Sebos são grandes depósitos de lixo cultural. Isso não significa que tudo o que neles encontramos é ruim - pelo contrário, encontrei alguns dos meus livros mais significativos nesses apaixonantes lugares. Chamo-os assim por neles ficar estocado tudo o que nossa cultura considerou supérfluo: vasculhe o leitor as prateleiras de literatura de um sebo e, entre autores assaz conhecidos, serão encontrados incontáveis nomes que nunca figurarão nos livros escolares, nas revistas especializadas, nos debates acalorados da boêmia letrada de uma cidade qualquer. E isso assim será para todo o sempre, e não apenas na literatura: música, cinema, poesia, todas as disciplinas. A cultura forma o seu cânone através de um processo seletivo que condena ao anonimato das prateleiras dos sebos tudo aquilo que ela considerou supérfluo.

Um dia propus a mim mesmo um peripatético roteiro pelos sebos do gloriosamente imundo centro velho de São Paulo. Ali há muitos deles, concentrados entre o espaço que vai da Praça da Sé até a República. O único objetivo em mente era vasculhar, justamente, as prateleiras mais esquecidas de literatura e, no lixo supérfluo ali encontrado, quem sabe descobrir algo que fosse curioso/desconcertante/enigmático. Tendo como pressuposto que as escolhas das gerações anteriores depuraram a imensa produção literária - depuração esta que foi um processo coletivo envolvendo os modismos do momento, a análise dos críticos, as resenhas nos jornais, a escola, o departamento de publicidade das editoras e (impossível não considerar) uma certa dose de acaso - a minha busca estava repleta de dificuldades. Diante de meus olhos, centenas de livros dos quais nunca ouvi falar, legiões de autores que sequer sabia de onde eram. 

Graças a tal andança, surgiu a idéia de uma série de posts (sem periodicidade, como sempre) sobre livros que são insignificantes. Livros que ninguém comenta, de autores que ninguém cita, que nunca virarão estampas de camisetas como aquelas do Bukowski, que palermas utilizam na esperança (perdida) de mascarar a própria ignorância. Mas mesmo que existissem camisetas desses autores supérfluos, não importaria absolutamente nada porque, afinal, nunca ninguém se importou com eles - e talvez exista muitos bons motivos para isso.

Ok, introdução feita. Agora, a resenha sobre o primeiro livro da série.

"Devastação (ou a volta à Natureza)" é um livro do francês René Barjavel. Lançado em 1943 com o título "Ravage", foi editado aqui no Brasil pela lendária Círculo do Livro em 1976 (as capas dessa editora eram sempre geniais, e até hoje exalam uma cafonice que me encanta). Encontrei-o em um sebo bem ruim ali na avenida São João, perto do Rei do Mate. O título logo me despertou a atenção; a partir dele era fácil imaginar o que o livro apresentaria: explosões, queda, ruína, cenários apocalípticos, entropia anticivilização, etc. Por mim estava OK (sou daqueles que esperam ansiosamente a estréia de filmes hollywoodianos sobre catástrofes climáticas, cometas que colidem com a Terra, etc), ainda mais pela bagatela de 4 reais.

Cheguei em casa e fui na Wikipedia procurar mais informações sobre o autor. Eis o que encontrei por lá:
René Barjavel (January 24, 1911 – November 24, 1985) was a French author, journalist and critic who may have been the first to think of the grandfather paradox in time travel. He was born in Nyons, a town in the Drôme department in southeastern France. He is best known as a science fiction author, whose work often involved the fall of civilisation due totechnocratic hubris and the madness of war, but who also favoured themes emphasising the durability of love.
René Barjavel wrote several novels with these themes, such as Ravage (translated as Ashes, ashes), Le Grand SecretLa Nuit des temps (translated as The Ice People), and Une rose au paradis. His writing is poetic, dreamy and sometimes philosophical. Some of his works have their roots in an empirical and poetic questioning of the existence of God(notably La Faim du tigre). He was also interested in the environmental heritage which we leave to future generations. Whilst his works are rarely taught in French schools, his books are very popular in France.
Bom, já tinha uma idéia, ainda que meramente protocolar, sobre o livro que tinha em minhas mãos. E por ser o primeiro livro dessa série, creio que tive muita sorte, pois em "Devastação" encontrei passagens dotadas de uma beleza muito específica, que é a de descrever catástrofes. Descrições estas que sempre são acompanhadas de um discurso extremamente crítico em relação ao mito do progresso e, mais do que isso, à civilização como um todo. Hoje isso pode ser familiar a qualquer um que se interesse por temas filosóficos e sociais: até mesmo em jornais diários é possível encontrar textos que discutem os limites estruturais da civilização ocidental e os impactos indubitavelmente destrutivos que o nosso modo de vida causa ao planeta. Porém, em 1943, quando o livro foi lançado, acredito que tal discurso não era algo assim tão popular (um olhar desconfiado perante a sociedade capitalista e seus caminhos obviamente já existia desde o século XIX, mas entre criticar o capitalismo até condenar a civilização há um passo que acredito ser gigantesco). Não sei dizer se o romance gerou algum impacto no momento em que foi lançado, até mesmo porque o mundo girava em uma roda de fogo naqueles anos e prestar atenção a livros soaria como uma bobagem. Mas como Barjavel aparece, pelo menos nos links que visitei, como um autor de ficção científica, deve ter sido de imediato relacionado àquele tipo de literatura que se lê "para passar o tempo", como literatura de entretenimento para quem gosta de robôs, demônios, viagens no espaço e outras bobagens nessa linha. Imediatamente assim relacionado a esse tipo de literatura, o potencial efeito questionador do livro ficou, assim, um tanto quanto obscurecido.

o sebo onde comprei o livro, ali na Avenida São João, próximo ao Largo do Paiçandu.
Resumindo o livro da maneira mais simples possível: estamos no ano 2052 e o mundo alcançou um nível tal de desenvolvimento tecnológico que viagens intercontinentais podem ser realizadas através de trens velocíssimos; carnes de todos os tipos são produzidas em laboratório, e a matança de animais não é mais necessária; telefones projetam imagens tridimensionais dos falantes, como se fossem reais; os carros voam; as cidades crescem sobre outras cidades, e vemos uma Paris (cidade onde se passa o romance) como uma imensa megalópole que guarda a antiguada arquitetura do século XX debaixo das estruturas da Cidade Elevada, posicionada vertiginosamente a mais de 500 andares do solo; estufas enormes mantém a produção de vegetais e frutas de modo constante: não há mais intervalos das colheitas, o solo produz o tempo todo sem a necessidade dos antiquados ciclos naturais; até mesmo a morte parece ter sido vencida: os cemitérios foram extintos, e em todas as casas existe uma espécie de mortuário onde os entes que se foram permanecem empalhados, em dimensões reduzidas, geração após geração - revitalizando o antiqüíssimo culto ao gens em uma roupagem sofisticada. Nesse mundo de maravilhas tecnológicas sem precedentes, subitamente a energia elétrica perde sua propriedade de se transmitir por fibras metálicas. Sem eletricidade, a vida torna-se impossível, iniciam-se distúrbios e saques, a barbárie irrompe - é desse ponto crítico que a saga dos personagens François e Blanchete começa, na busca por um único objetivo: fugir da cidade enlouquecida pela destruição e ir rumo ao campo, onde estariam a salvo.

Um enredo simples, banal ao extremo, e até mesmo bastante previsível. Entretanto, ele convence justamente por isso: a vida atual é impossível sem eletricidade. Imaginemos que, de uma hora para outra, acabasse a energia em toda uma cidade. No começo, as pessoas esperariam, resignadas que são, com suas velas a postos. Mas imaginemos que a espera se alongasse por um dia inteiro, e depois por outro, e por muitos outros mais até perder-se a conta: Barvajel imaginou esse mundo, e ao fazer isso tocou no ponto mais frágil da civilização, no elemento invisível que funciona como o sangue desse complexo organismo de relações sociais/políticas/econômicas que se instaurou mundialmente e determina o modo de vida de bilhões de seres - esse sangue invisível chamado Eletricidade. Citando um trecho do livro:

Mas a eletricidade não desapareceu, meu jovem amigo. Se ela tivesse desaparecido, nós não existiríamos mais, teríamos retornado ao nada, nós e o universo. Nós, esta mesa, este seixo, tudo isso não são senão combinações maravilhosas de força. A matéria e a energia são uma única coisa. Nada pode desaparecer, ou tudo desaparecerá junto. O que se passa é uma mudança nas manifestações do fluído elétrico. Uma mudança que nos aborrece, que demoliu todo o edifício da ciência que construímos, mas que sem dúvida não tem nem mais nem menos importância para o universo que a batida da asa de uma borboleta. (...) Capricho da Natureza, advertência de Deus? Vivemos num universo que acreditamos imutável porque sempre o vimos obedecer às mesmas leis, mas nada impede que tudo possa bruscamente começar a mudar, que o açúcar se torne amargo, o chumbo leve, e que a pedra voe ao invés de cair quando a mão o solte. Não somos nada, meu jovem amigo, não somos nada...

É o tema anticivilizacional que se faz presente, a desconfiança perante os rumos do "progresso" infinito mediante os esforços da Razão. 

Barvajel também antecipa/flerta com a crítica foucaultiana sobre a biopolítica, isto é, sobre como os poderes  instituem práticas e modalidades de controle dos corpos. Abaixo o trecho:

Em 2026, uma vaga de nervosismo e de pessimismo ameaçou a nação e provocou uma recrudescência enorme de divórcios e suicídios. Avisado pelo Grande Conselho Médico, o governo lançou um decreto urgente. Toda a população passou pela cadeira de choque. (...) O resultado foi tão convincente que uma lei instituiu um exame mental anual obrigatório para todo mundo (...) Os que eram simplesmente nervosos, ansiosos, teimosos, afetados, gagos, tímidos, os que ficavam ruborizados por nada, e os que dormiam em pé, os sem memória, os faladores noturnos, os distraídos, os comedores de mosca, os rangedores de dentes, os medrosos, os pretensiosos, os tagarelas, os taciturnos, os boquiabertos, os excitados, os mudos, os coléricos, os contritos, em poucas palavras, os desarranjados, recebiam apenas uma pequena sacudidela que os repunha no caminho certo do homem médio de que eles tendiam a se desviar.

O que motivou, afinal, o fim da eletricidade? Isso não fica claro no livro: não se sabe se foi um capricho da Natureza, ou o prometido ataque de uma arma secreta do "Imperador Negro" (um déspota de origem africana que governava a América do Sul: esses franceses não perderiam a chance de estigmatizar mais uma vez o continente...). Isso não compromete a história, mas chega-se ao final com a enorme interrogação latejando na mente. Ou talvez fosse esse o objetivo exato de Barvajel: as catástrofes acontecem simplesmente porque acontecem, sem nenhuma razão aparente, sem nenhuma explicação a amenizar nossas dores. 

Catástrofe que não foi sentida por todos igualmente: após um tempo indeterminado fugindo de uma Paris transformada em cenário de violência e fome, o grupo de peregrinos finalmente alcança um povoado rural. Ao encontrar um velho camponês, François, o líder do grupo, os apresenta como sendo "os sobreviventes da catástrofe":

O velho levantou em direção a François seu rosto negro de sujeira e de rugas, abriu a boca, pigarreou, fez um grande  esforço e rangeu:
- Que catástrofe?
Fica clara a mensagem: o mundo que terminara era o mundo da Cidade, o mundo da civilização. O mundo rural, a esfera da Cultura, pouco ou nada sentiu o abalo que aqueles citadinos famintos e machucados deixaram para trás. Lentamente, vão se adaptando ao modo de vida encontrado na região rural, que continuou sua marcha de modo muito mais tranquilo e sem os sobressaltos bárbaros que destruiram Paris (e possivelmente todas as demais cidades do mundo, se é que foi um fenômeno global - a incerteza domina o livro). Nesse mundo rural, gradualmente, vemos o autor caminhando agora em largas descrições, cuja temporalidade se acelera: anos se passam em apenas duas, três páginas. Os eventos, narrados com maior velocidade, mostram como o mundo rural foi se adaptando à nova realidade sem eletricidade; de como pequenas propriedades, por necessidade de garantirem a própria segurança (havia grupos saqueadores, apesar de em menor quantidade quando comparado a Paris), foram se aglutinando em cooperativas; de como essas cooperativas foram aos poucos evoluindo para comunidades mais fortificadas, como pequenos castelos; e de como entre elas existia um pacto de honra e reciprocidade - em suma, o mundo pós-eletricidade vai ganhando contornos cada vez mais feudais. A figura do chefe, cristalizada em François, ganha contornos heróicos e patriarcais, a ponto de que, por necessidade de repovoarem o mundo, é instituída a poligamia (para os homens); novas comunidades surgem, todas sob o mesmo espírito de manter-se fixadas a uma terra, aos costumes frugais, completamente hostis ao mundo da técnica e do progresso, até que nas novas gerações as antigas máquinas se transformam em carcaças de um passado que felizmente jamais retornará.

Convenhamos que se trata de um final um tanto quanto forçado, e que parece ter sido encaixado à narrativa de modo até mesmo arbitrário. Essa sensação de estranhamento deve-se, justamente, à mudança de ritmo que o romance adota em seu final, onde ao grande nível de detalhamento presente na primeira e na segunda partes (a vida em Paris e depois a fuga para o campo) adota-se na terceira e última uma descrição en passant que recobre quase sessenta anos. Além dessa questão formal, a aposta que Barvajel faz de um retorno a um modo de vida feudal não convence nem mesmo o medievalista mais entusiasta em reviver os gloriosos anos da vassalagem. Em suma: trata-se de um final decepcionante, apostando em um otimismo sem reservas que contrasta terrivelmente com o quadro de descrença que o autor pinta sobre a civilização nas primeiras partes do livro, e que termina por tornar opacas as excelentes descrições dos acontecimentos que transformaram Paris em uma cidade completamente enlouquecida após o fim abrupto da eletricidade.

8.20.2012

Ph'nglui mglw'nafh Cthulhu R'lyeh wgah'nagl fhtagn


































Esboço do Cthulhu com data de 1934 feito por seu criador, Howard Phillips Lovecraft (20/08/1890 a 15/03/1937).


8.06.2012

Blue Sabbath Black Cheer




Nascida em Seattle em 2005, extensa produção em K7s, vinil e CDs, "black acid noise doom drone hate", várias (e catárticas) apresentações ao vivo, "the end of the world".

Baixei na sexta os LPs que o Blue Sabbat Black Cheer fez em colaboração com o Irr. App. (Ext.) ("Skeletal Copula Remains", de 2009, e o "Skeletal Imposition, de 2011") e ficou em looping durante toda a madrugada de ontem para hoje. Eu tinha aqui o "Doom mantra" e o "The endless blockade", duas mosntruosidades de perturbação e horror (anti)musical, e esses lançamentos colaborativos reacenderam o interesse pela banda.

Site oficial da banda aqui. Vídeo + fotos  + artes de alguns de seus muitíssimos lançamentos abaixo.









7.29.2012

O horror urbanístico de São Paulo

Foi o espírito de porco de um jacú classe média que transformou São Paulo na cidade horrível de hoje, assim como é esse mesmo espírito que a mantém como uma das metrópoles mais feias que já tive a oportunidade de conhecer. 

É sobre isso que fala o texto a seguir, surrupiado do blog Sorry Periferia, comentando sobre o documentário Entre rios. Ele ajudou a clarear muitos aspectos da cidade, trazendo dados sobre a história urbanística de São Paulo, e ajudando a entender por que uma cidade antes elegantíssima se tornou a vanguarda do mau gosto até chegar no limite da inviabilidade.

Sem mais delongas, eis o texto + o vídeo.
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Nos anos 1920, a encruzilhada urbanística em que São Paulo se perdeu



Em 2007, o chef americano Anthony Bourdain veio a São Paulo e começou seu programa de TV definindo a cidade assim: 

 “São Paulo é feia. Ou melhor: é feia à beça. É como se Los Angeles vomitasse em Nova York”. 

 O comentário causou alguma indignação, ainda mais vindo de um americano de Nova York que, se não é feia, ao menos não é famosa por sua beleza. Mas é impossível negar o fato de São Paulo ser paisagisticamente uma das sucursais do inferno na Terra, embora ela compense em outros fatores (como a gastronomia, elogiada por Bourdain no Sem reservas). 

 Vivo nela há 11 anos e tenho o hábito de me debruçar na janela que dá vista para o Minhocão lá no fundo enquanto penso sobre os descaminhos urbanísticos dessa vida. Eu, que nasci em Jundiaí, uma província cuja única vantagem sobre a capital são o ar respirável e os constantes pontos verdes ao alçance da visão, nunca me acostumei à filosofia paulistana, onde ganhar dinheiro e tolerar o microondas de angústias urbano são a marca registrada (não que eu não goste de ganhar dinheiro, mas essa não pode ser a única filosofia possível de um lugar pra se viver). 

Graças ao amigo Thiago Foresti, conheci um documentário curta-metragem chamado Entre Rios, trabalho produzido pelo coletivo Santa Madeira, que deu várias respostas ao que eu há anos tentava entender.

Resumidamente: a São Paulo de hoje é a confluência da cultura brasileira do “vai do jeito que dá e tem que ser logo”, especulação imobiliária e caipirismo de elite ao estilo “precisamos ser a Europa e os EUA na América do Sul”. 

São Paulo foi surgindo na confluência de vários rios. No início do século 20, as doenças causadas por mosquitos e a especulação imobiliária (sempre ela) fizeram com que o Anhangabaú fosse canalizado, e o Tamanduateí, modificado em seu percurso e tamanho. O Tamanduateí passava onde hoje é a 25 de março, daí a existência da Ladeira Porto Geral – era ali o porto do rio. 

Nos 1920, época de desenvolvimento e de reformulação urbana nas principais cidades do país, houve o embate entre dois nomes da engenharia urbanística. De um lado, Saturnino de Brito, o homem que projetou com sucesso os canais de Santos, viu a metrópole caminhando pra cima dos rios Tietê e Pinheiros e passou a pregar a organização de parques no entorno dos dois rios. Como os rios tinham cheias no verão, a várzea deles seria preservada, ninguém ali construiria e teria-se um enorme cinturão verde em torno deles. Isso faria com que São Paulo fosse brilhantemente verde. 

Do lado oposto de Saturnino de Brito havia Francisco Prestes Maia. Era o jacu classe média/elite tipicamente brasileiro: queria transformar São Paulo numa metrópole americana, com arranhas-céus e carros, e sempre do jeito mais fácil possível. Em vez de desapropriar casas pelo caminho, o projeto dele previa simplesmente canalizar ou encurtar os rios e fazer avenidas sobre eles. Prestes Maia ganhou a queda de braço e ainda tornou-se prefeito entre 1938 e 1945. E assim nasceram a 23 de maio, Consolação, Pacaembu, Ricardo Jafet, 9 de julho, Turiaçu, do Estado, Sumaré, Águas Espraiadas, Cupecê e tantas outras. Não preciso nem lembrar o quanto esse projeto também foi malsucedido socialmente (claro, não só por causa disso): as periferias cresceram sem qualquer ordenamento. 

Hoje não temos mais rios limpos, tampouco navegáveis – e do jeito que São Paulo era interligada por eles, poderíamos ter um complexo hidroviário impressionante nos dias atuais. Assim deu-se a expansão paulistana. O jeitinho brasileiro também deu as caras na arquitetura, que segue padrão nenhum (o padrão quem escolhe são as construtoras), os prédios não fazem sentido no ambiente do bairro ou da cidade, como deveriam fazer. O transporte público até hoje é preterido pelo automóvel, e as novas faixas das marginais estão aí para não me deixar mentir. 

Acima, você pode assistir ao Entre Rios. Tem só 20 minutos, recomendo muito. O documentário me fez lembrar daquele momento no De volta para o futuro em que Marty e o Dr. Brown voltam para 1985, mas tudo estava diferente. A conclusão era que eles pegaram uma outro caminho na linha do tempo que desembocava em uma outra vida em 1985, e que precisariam voltar correndo para a 1985 deles. Esse momento na vida paulista foi entre 1920 e 1940. Infelizmente, na vida real paulistana, não temos muito o que fazer.

7.10.2012

Blood of the Black Owl


Blood of the Black Owl é uma banda de Seattle formada em 2004 por Chet W. Scott. Conhecia dois trabalhos anteriores da banda (os excelentes "A banishing ritual", de 2010, e o split com o Celestial, de 2008); e ontem, através da Hex Magazine, ouvi o seu novo lançamento, o "Light the Fires!", lançado em 3 de julho último pela Bindrune Records - e o sentimento que me assaltou durante a audição foi de completa fascinação.

Musicalmente, Blood of the Black Owl é um monstro que mescla Funeral Doom com densidades etéreas cheias de misticismo e aura ritualística. Aliás, o elemento metal é o que menos comparece em "Light the Fires!", onde a atmosfera xamânica domina praticamente todas as músicas. Ontem, quando comecei a audição, de pronto percebi que não conseguiria fazer nada enquanto estivesse ouvindo o disco. Era necessário apenas ouvi-lo, deixando que as emanações de "Caller of Spirits", a música que abre o disco, controlassem totalmente minha atenção. Daí em diante a experiência foi seguindo por mais seis faixas, todas longuíssimas, que passaram como se fosse um simples abrir e fechar de olhos. Ouça agora:

6.15.2012

In hoc signo vinces - Paul Veyne e o cristianismo


satanismo popular-fudido

29 de outubro do ano 312: na Ponte Mílvia, a cerca de 15 quilômetros de Roma, o exército do general Constantino enfrenta os soldados de Maxêncio pelo controle da metade ocidental do Império. Constantino estava em defasagem numérica: algumas fontes indicam que para cada homem de seu exército, Maxêncio contava com quinze. Mesmo assim, Constantino empreende o ataque – e vence. Sagra-se Imperador de Roma e atribui a vitória não ao valor de seus homens, não a um golpe de sorte, mas a um único e grandioso motivo: a vontade de Deus. É nesse momento que nasce o Cristianismo.

Afirmar que o cristianismo nasce em 29 de outubro de 312 d.C. parece ser um erro conceitual: passados já quase três séculos desde a morte de Jesus, não existiam milhões de cristãos em todo o Império? A Igreja já não era uma instituição respeitada, com homens poderosos em suas fileiras? Os deuses do paganismo não eram encarados, e isso desde Virgílio, como simples mitologia esvaziada de qualquer realidade? Ao menos era mais ou menos isso o que eu sempre tinha ouvido: o cristianismo, evoluindo lentamente, minou as reservas espirituais do paganismo e tornou-se a religião oficial do Império Romano e, por conseqüência, virtualmente de todo o mundo. É justamente essa tese que o historiador francês Paul Veyne contesta e maciçamente destrói no livro “Quando o nosso mundo se tornou cristão”. Esse post é uma tentativa mais do que modesta de comentar alguns pontos da obra lançada em 2007 (tenho a tradução em português de Portugal de 2009).

A tese de Veyne é, em certa medida, bem simples: sem Constantino, o cristianismo teria permanecido uma seita de vanguarda. O Império estava repleto de outras crenças e, nos tempos da batalha da Ponte Mílvia, as perseguições aos cristãos não aconteciam mais.  Ao mesmo tempo, é enganoso imaginar que o cristianismo estava minando as crenças pagãs: em 312 d.C., apenas 5% do território romano estava cristianizado. Contudo, 80 anos depois, o cristianismo tornou-se a religião oficial de todo o Império. Como explicar uma expansão assustadoramente rápida?  

Os fatores são variadíssimos, mas um ponto chave na tese de Veyne é que, com Constantino, o cristianismo não era a religião do Império, mas a religião do imperador: sabendo-se senhor de massas amplamente pagãs (e como todas as massas, contrárias a mudanças bruscas em sua meia vida de homens-gado) o imperador soube usar de sua influência para, gradativamente, ir dotando de cada vez mais poder no sistema imperial a instituição mais longeva de todos os tempos – a Igreja Católica. Apesar de não excluir os pagãos de seu séquito de conselheiros e oficiais, Constantino contava com muitos cristãos para as funções mais importantes dentro das hierarquias imperiais. Em seus (numerosíssimos) éditos, fazia questão de afirmar as vantagens de sua crença e, ainda que indiretamente, instituía mudanças que preparavam o advento do cristianismo como religião de todos. Por exemplo, em 312 ele impôs ao Império a criação do descanso dominical: a vida ainda era pagã, a moral pública e privada ainda era a da Roma vetusta, mas com essa simples instituição de um dia dedicado ao descanso – e simbolicamente o domingo, o Dominus, dia do Senhor – Constantino colocou certo ritmo cristão a um cotidiano que ainda não o era (e pensar que, até hoje, o domingo é o dia do descanso oficial para bilhões de seres humanos, chega a ser espantoso). Constantino parece agir com um espírito engenhoso, visionário até, em sua preparação algo silenciosa de condições para a futura hegemonia cristã.


Mas não foi apenas Constantino o responsável pela vitória do cristianismo: a crença em si mesma possui certas “qualidades competitivas” em relação ao paganismo.  A primeira é a sua atualidade histórica: as histórias de Cristo e seus seguidores eram recentes, eventos passados há cem, duzentos anos. Os mitos do paganismo estavam distantes no tempo, nenhum homem era contemporâneo das façanhas que os deuses desempenhavam em suas visitas ao mundo dos homens, que não aconteciam mais há séculos. Já o cristianismo tinha seus mártires, os milagres de homens santos, o testemunho dos perseguidos que viram maravilhas. Há também a relação amorosa e próxima do cristão com o divino: não basta se dizer cristão, mas é vital proclamar o amor que se tem a Deus, que sempre é um amor em retribuição ao que Ele ofereceu a todos os homens: um pagão poderia muito bem ser um fervoroso adepto de Marte sem nunca dizer que o amava, pelo simples fato de que isso era impensável no paganismo.  E muito menos havia no paganismo a universalidade cristã: o paganismo nunca foi igualitário, e mantinha ritos específicos para aristocratas e outros para a plebe; já o cristianismo tinha o conceito de conversão: todos os que aceitam o Deus Vivo serão salvos. Mas a vantagem competitiva que me parece a mais forte (Veyne também a salienta) é a transcendentalidade para além da narrativa mitológica: o cristão é um indivíduo convicto de que a vida eterna, a Salvação, é uma realidade tão forte quanto o seu próprio corpo. Citando Veyne, com o cristianismo “a nossa existência sobre a terra já não apresentava o absurdo de uma breve passagem entre dois nadas”; na época de Constantino, o debate sobre o que existia após a morte era o grande debate, e nada no paganismo se assemelhava à idéia cristã da “salvação”. Os deuses pagãos pareciam completamente distantes: quando muito favoreciam uma colheita, faziam vencer uma guerra, curavam uma doença; o Deus dos cristãos ouvia as preces de todos, confortava os corações, prometia uma vida de eterno deleite ao seu lado após a morte. Para alguém que estivesse em apuros, desiludido de tudo e todos, ir a uma igreja parecia uma alternativa melhor do que sacrificar uma pomba a Júpiter; na igreja, em comunhão com outros cristãos, todos seus irmãos, suportar o mundo de repente se tornava mais fácil.

Outro ponto onde Veyne investe em polêmica: certo discurso coloca o cristianismo como uma religião monoteísta e, portanto, superior ao politeísmo, colocado como algo mais “arcaico”, menos “civilizado”. Nada mais equivocado: vale lembrar que o Deus Uno cristão é, ao mesmo tempo, três (Pai, Filho e Espírito Santo); que a figura dos santos é imensamente forte no catolicismo, e certas devoções os colocam no mesmo patamar dos pequenos deuses do paganismo; que Maria, mãe de Jesus, que nos evangelhos tem um papel não mais que secundário, ocupando algumas poucas páginas, no catolicismo ganha o epíteto de Mãe de Todos os Homens, em uma espécie de re-significação do culto à Grande Mãe de eras ainda mais afastadas. Não é, portanto, por seu pretenso “monoteísmo” que o cristianismo vence, mas pelos demais elencados. Apesar disso, é certo que a religião de um deus único é, em comparação com a miríade de deuses do paganismo, uma “religião mais forte”. Devido a isso, certa crítica de esquerda coloca o monoteísmo como algo menos “democrático” que o politeísmo; Veyne rebate isso muito bem, ao dizer que “não é o monoteísmo que pode tornar ameaçadora uma religião, mas o imperialismo de sua verdade” (grifo meu). E é aí que está a diferença essencial entre o “monoteísmo cristão” e o paganismo: enquanto que, em um debate qualquer, um devoto de Júpiter poderia falar para um devoto de Vênus que “o meu deus é muito mais poderoso que o seu”, um cristão falaria de modo sutilmente diferente que “o meu Deus é o verdadeiro, e os seus são superstições”. Em uma palavra: no paganismo não se colocava em cheque a existência de outros deuses: todos eram válidos, até mesmo os dos inimigos, e no máximo o que se colocava era uma questão de poder e glória; com o cristianismo, há uma desqualificação da crença do outro, colocada em um patamar de irrealidade, de mentira, e que seus adoradores estão enganados.

Esse imperialismo de crença motivou as ações de Constantino e seus sucessores, até que em 8 de novembro de 392, Teodósio proclama o cristianismo como religião oficial do Império e torna todos os cultos pagãos ilegais. A motivação para isso não foi nada religiosa: era uma foram de esmagar um golpe de Estado orquestrado pela ala pagã resistente nas entranhas do poder. Mas passado isso, essa ala não se levantará mais. O cristianismo tinha se tornado a religião do Império e formada estava uma dinastia que o levava no coração e na alma. O “mundo” já era cristão e as massas, principalmente nas regiões mais urbanizadas, estava nas mãos da estrutura hierárquica da Igreja. Demoraria ainda alguns séculos para todos os resquícios do paganismo serem extintos completamente, principalmente no Oriente, que não vivenciou uma ampla cultura eclesiástica e beata como no lado ocidental do Império.


Paul Veyne, sensualizando
Paul Veyne, nascido em 1930 em um meio popular que ele gosta de definir como “inculto”, é um historiador afeiçoado a teses polêmicas e com certeza o homem mais feio do mundo. Especializado em Roma Antiga, formado pelo Collège de France e atuando lá até hoje como professor honorário, suas obras são amplamente traduzidas no mundo todo.

Compre Quando o nosso mundo se tornou cristão

p.s.: a foto que ilustra o post é o grafite mais genial que já pude ver na minha vida, e é obra do Urso Morto

6.11.2012

Interpretação de sonhos


Dormir no sofá = ter sonhos estranhos. No último que experimentei, eu estava em um hotel antigo, com suas portas pesadas e piso de madeira lustroso, espelhando o andar dos seus poucos hóspedes. Em um determinado momento, tenho que fugir de lá. Ignoro o motivo, apenas tenho a certeza que devo sair daquele hotel o mais rápido possível. Na fuga encontro uma caixa e, em seu interior, um livro: tem encadernação artesanal e muitas páginas marcadas pelo tempo. De repente, me vejo rodeado de muitíssimos outros livros, e tenho que carregar a todos; como são muitos, desisto da tarefa que atrapalharia minha fuga (pois precisava dali fugir, mesmo não ficando claro o motivo) e pego apenas o livro velho que encontrei dentro da caixa. Caminho apressado pelo largos corredores do hotel antigo, que vão ficando mais e mais labirínticos. E sem me recordar de detalhes percebo que carrego, além do livro, um pesado porrete de ferro, e que ao meu lado também corre agora uma pequena menina japonesa aleijada. Chego a uma sala apertada e vazia, aperto o botão de uma máquina estranha e uma quantidade absurda de balas de hortelã são despejadas no chão.Entro em um elevador carregando o livro, o porrete e algumas balas. Aperto o botão para subir para um andar superior, não me recordo qual. No canto do elevador, me observando, a Daniela Cicarelli.

Pergunta: se eu estava fugindo, por que então subi mais andares? 

5.21.2012

O poço e o sorriso


A vida humana é um poço sem fundo feito de decepções e desencontros. Decepção com os outros e com nós mesmos, desencontros com outros e principalmente com nós mesmos. Buscamos o prazer da companhia alheia apenas porque tememos a solidão - não há o amor, o amor que os poetas cantaram é uma ilusão adocicada que nunca existiu. Em outras palavras, o que nos move para os braços uns dos outros é um desejo de se perpetuar, seja com a insanidade do nascimento, seja com a produção do sentimento de saudade - não importa, o substrato é o mesmo, a vontade de continuar existindo, seja no corpo da criança, seja nos pensamentos de alguém que chora. Vaidade das vaidades, estamos sempre ajoelhados frente a algo que nos deixa em polvorosa, em uma contraditória atitude de contemplação feita de uma matéria inquieta, incessante, até que o nosso olhar encontre um deus diferente, que nos faça sentir tédio de ali estar, e não sem esforço - porque a natureza complexa de nosso íntimo mistura ambos os venenos da agitação e do comodismo - levantamos para ir em direção ao templo de um novo deus que faça a nossa vaidade pulsar em um ritmo mais instigante. Somos isso, um amontoado de paixões cruas que não merece sequer uma lágrima quando enfim deixarmos o universo livre de nossa desnecessária presença. Entretanto, gostamos de acreditar na nossa importância que é nenhuma, nos esforçamos para continuamente provar algo que não somos, até chegar ao nível do mais completo ridículo. É esse o ponto em que me encontro agora, com os olhos bem abertos, com esse sorriso falso mostrando ao mundo a alegria que me exigem, para mostrar aos outros que tudo está bem, não se preocupem, se estou rindo é porque afinal não há nada de errado, que me deixem em paz com meu sorriso, nada peço a não ser o vosso perpétuo e imediato virar de costas para meu sorriso, onde observarei o seu corpo indo para cada vez mais longe de mim e então meu sorriso aumentará, será um enorme e vitorioso sorriso, será quase sincero, e já estarei esquecido do motivo que me fazia sorrir falsamente, serei apenas uma vaga lembrança de um ser que perdeu voluntariamente o contato com o mundo, que junto aos homens encontrou apenas um motivo para sorrir, e esse já se foi há tanto tempo que é risível agora lembrar, mas antes eu o estreitava contra meu peito como a coisa mais preciosa de todas, e então me lembro de que eu dizia ser capaz de matar em seu nome, para defender a beleza daquele amor, e percebo agora que o que me movia não era o enganoso sentimento, mas a impossibilidade de concretizar aquela felicidade sempre colocada no futuro - pois no fundo não quero ser feliz, é carregar comigo o sorriso satisfeito do homem comum, a vazia pretensão de pureza que vive em seus corações, a sensação de pertencimento a um nome de família. Por isso meu sorriso é feito de uma matéria enganosa que ludibria até a mim mesmo e me creio - ilusão das ilusões - o mais feliz de todos os homens. Não é motivo para a mais alta das vergonhas confessar isso diante de todos vocês? [Não, quem me ouve não é ninguém a não ser eu mesmo, mas imagino que tenho um público, que falo com alguém, quando na verdade estou sozinho em meu imundo apartamento, sem comer decentemente, rodeado de incertezas tão estúpidas quanto qualquer outro humano que detesto tão veementemente, imerso em meus delírios de falsa grandeza, desejos que são o testemunho de minha infeliz condição subalterna, desnecessária, tola e vulgar. Vejo a vida como um poço sem poço sem fundo porque estou dentro desse poço, regurgitando maldições que jamais serão ouvidas, rezando a deuses para sempre mortos...]

Nota: o texto acima foi escrito para a imagem que ilustra essa postagem. A autoria da imagem é de Guilherme Henrique Frammer Nahes Alonso, membro do grupo musical Sleepwalkers' Maladies e medalha de prata na Olimpíada de Hemp Tycoon. Alguns rabiscos e efeitos adicionais foram inseridos na imagem original por mim, mas devido ao meu estado semi-entorpecido no momento acabei por estragar algumas partes do texto, que ficaram ilegíveis. A postagem é uma tentativa de resgatar o texto original.

4.23.2012

Sempre que possível, fique em casa

 

Ontem à tarde eu tinha desistido da vida social quando amigos me chamaram para ir na exposição sobre o Angeli no Itaú Cultural. Acostumado a ter finais de semana confinados em casa, aceitei o convite. 

Apesar da disposição um pouco apertada do farto material, composto de reproduções e muitos originais, a exposição oferece um amplo panorama sobre o trabalho do cartunista, criador de míticos personagens do imaginário contracultural dos 80 e 90, como Bob Cuspe, Rê Bordosa e Os Skrotinhos. A exposição também dedicou uma sala para obras mais putanheiras, onde algumas das memoráveis fotonovelas da Chiclete com Banana podem ser vistas. Há também obras mais recentes, como a República das Bananas, cuja capacidade crítica reside na construção de tipos ideais de indivíduos cotidianamente banais. 

Entretanto, um alerta é necessário: se possível, não vá à exposição. Não se arrisque a ser um otário como meus amigos e eu fomos e ir ao Itaú Cultural no sábado  às 18h00 - a não ser que o seu objetivo seja ter um contato semi-promíscuo com outros seres humanos em um lugar ridiculamente apertado. De minha parte, gosto de contatos promíscuos desde que com pessoas que EU possa escolher. Do contrário, tudo que ocorrer será experimentado com nojo. Ainda mais em exposições e, especialmente, em  uma exposição sobre um cartunista: a quantidade de designers presentes chega a ser espantosa.

[Como eu sabia que a maioria ali era composta por designers? A resposta é simples: por puro preconceito. Cachecol, óculos de armação grossa, roupas descoladas, barba por fazer, camisetas com frases engraçadas, iPhone, cores em profusão e algumas outras características me ajudam a encontrar designers em meio à multidão.]

Seja como for, a lição que fica é: sempre que possível, veja exposições em casa. Faça de tudo para descobrir uma forma de ver online o que está nas paredes de uma galeria. Não vale a pena arriscar o conforto de seu sofá trocando-o pelo risco de ouvir comentários sobre as obras ditos por pessoas que você teria vontade de aplicar aborto retroativo. Ou pelo menos vá em horários onde poucas pessoas estarão presentes - o que é uma tarefa praticamente impossível em São Paulo. Mas morreremos tentando descobrir que horário é esse. Aí eu posto aqui. 

Ou melhor, não.

A música que resume o estado de espírito pós saída da exposição:




4.13.2012

Sobre a humildade


Captar frases soltas no transporte público, na rua ou em qualquer outro lugar onde a aglomeração de pessoas proporcione ao ouvido atento do cientista social autodidata um rico manancial para análise: um procedimento ao qual me dedico há anos, que já inspirou outros escritos nesse blog e que considero uma da melhores formas de captar a essência da realidade em seus aspectos mais interessantes. Interessantes porque escondidos nos sulcos mais profundos do discurso do homem comum, cuja vida é uma vulgaridade do despertar até a hora  do boa noite, e justamente por estarem ocultos sob uma grossa camada de tradições e hábitos têm aspecto de serem normais, naturais, benéficos até, ou mesmo males incontornáveis. Mas sabemos que discursivamente nada é normal, nem natural, nem benéfico ou maléfico em si: construções antes que dados da realidade, esses aspectos possuem significados que são transparentes para o homem comum, mas o envolvem e influenciam completamente. De modo bastante similar age a pressão atmosférica: não a vemos, mas sem parar um segundo sequer ela exerce seus poderes sobre nós.

Uma palavra que hoje ouvi em uma conversa dessas foi o adjetivo "humilde". Não sei exatamente por que exatamente essa palavra se fixou em minha mente, mas o fato é que ela foi responsável por uma série de anotações mentais que serviram de base para o que segue.

Emprega-se em geral para salientar uma qualidade positiva de um indivíduo perante os demais: diz-se que alguém é humilde por apresentar um misto de amabilidade, educação, cortesia, etc. Mas não é só isso: o humilde é também alguém que, em determinadas situações, tende a mostrar-se como ligeiramente inferior. Todavia, isso não ocorre de modo negativo ou fatalista - o humilde considera-se menor mas com um certo orgulho, em uma captação da benevolência alheia feita com sorrisos que chegam a ser rastejantes.

Há na atitude do humilde muito da etimologia da palavra: o adjetivo vem do latim humus, que significa "terra", "chão", "solo". De humus derivou-se então o adjetivo latino humilis que possuía, para o romano do Período Clássico (séculos II a.C a II d.C.), significados como estes:

  • de estatura baixa, rasteiro;
  • que é de condição baixa;
  • que tem sentimentos baixos;
  • abatido, desanimado;
  • covarde, fraco, mesquinho, vil.
 [acepções retiradas do Novíssimo Dicionário Latino-Português de F.R. dos Santos Saraiva, editado pela Livraria Garnier]


Há inúmeros registros na literatura clássica comprovando que, antes do cristianismo se transformar na religião oficial do Império, em 391 d.C com Teodósio I, a noção de humilis tinha uma carga altamente negativa, no sentido de descrever características contrárias ao ethos romano de virilidade, força e vontade afirmativa perante a vida: Cícero fala de humili animo ferre ("resistir com fraqueza"), Plínio o Jovem de humiles curae ("cuidados mesquinhos"). Com a expansão da religião cristã  principalmente nas classes baixas (o cristianismo sempre foi uma crença "plebéia", no sentido de oferecer aos desgraçados de toda sorte, sem distinção de classe, a idéia da "salvação", conceito praticamente inexistente no paganismo, que tinha cultos diferentes para cada porção da sociedade) o termo foi perdendo esse significado inicial para ganhar aspectos mais positivos. O humilde torna-se, então, um novo paradigma de felicidade e grandeza. Fundamental e termômetro dessa mudança é o Sermão da Montanha, no evangelho de São Mateus capítulo 5, onde Cristo começa dizendo isso:

Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus.

A mudança de acepção do termo é fácil de entender: o termo humilis era comumente empregado para, justamente, fazer referência a essas classes baixas, onde o cristianismo inicialmente se propagou. A mudança de significado é a vitória, no campo semântico, da moral de escravo nietzscheana sobre a dura ética romana da Antigüidade.

De certo modo, o humilde de hoje carrega, na tessitura mais profunda, essa carga de significados inicial que, mesmo após o cristianismo, ele jamais perdeu: o humilde é aquele "que se prostra perante o altar", que "cai de joelhos" defronte Deus, que ajuda os demais em uma atitude totalmente desinteressada onde descuida até mesmo de si. Tudo isso é ser humilde, mas não é só isso: o humilde é, também, um tipo que olha com desconfiança para qualquer altura com um misto de nojo e reprovação. Incapaz de alçar vôos para além de sua "natureza terrena", impregnado de um humus cultural que enxerga valor apenas no que é contingente e facilmente digerível, o humilde é um tipo que acredita na validade da arte apenas quando ela está à serviço do povo ou de uma causa. Conceituando o artista (seja escritor, músico, pintor, cineasta, etc) como um tipo social que deve estar em "conexão com o social", todos os que não se encaixam na regra lhe são tediosos, desnecessários, dignos de seu ódio. Ao mesmo tempo idealiza povo e o alcance de sua arte: o humilde opta por ter uma visão duplamente cega ao invés de uma cegueira simples. 

O vírus da humildade não está apenas presente nos artistas que buscam o "povo": até mesmo em um tipo de arte mais elitizada e que ocupa os salões de exposição freqüentados por branquelos bem-nascidos ele promove seus estragos, sobre a onipresente criação de "instalações interativas". O discurso que está por trás dessas bobagens é essencialmente o mesmo: o artista se nega o papel de mediador cultural definitivo e devolve para as mãos do público a própria construção da obra. Assim, em algumas o artista apenas coloca um, sei lá, amontoado de giz de cêra no chão e pede para que o público rabisque uma parede branca e então pluft!: nasceu a obra de arte, perfeitamente antenada com os tempos "democráticos" e "colaborativos" que vivemos. Não se trata mais de termos artistas que se dediquem a criar um conceito, e a partir dele passem dias em um esforço para transformá-lo em realidade, seja um quadro que instigue intelectualmente o observador, uma escultura que lhe faça reavaliar um dado da realidade ou que simplesmente proporcione um prazer estético que induza a fusão entre fruição estética e reflexão. Tudo isso que dissemos, de certa maneira, pede que tanto artista como público elevem-se a si mesmos para além da mediocridade diária. Difere sensivelmente de uma arte impregnada do senso do humilde, que tenta a todo custo puxar para o solo.

É assim que, tanto nas artes como em outros campos da vida, o humilde atua: pela força rastejante de mediar os homens e suas ações pelo princípio do humus, pela nivelação por baixo. Força afirmativa, desejos de grandeza, impulso para criar e ir além das limitações, medos e bloqueios: nada disso faz parte do espírito humilde. Ele é amigo do status quo, das tradições burras, do cotidiano miserável que mantém milhões em uma existência que pouco tem a ver com Vida - ou seja, da vida entendida não apenas como impulsos orgânicos mas sim realização, luta e superação de si mesmo. 

4.05.2012

Lista de ódios


Sujeita a inclusões - mas jamais a exclusões - de itens:
  • pessoas que ficam em bares todos os dias da semana;
  • crentes;
  • góticos;
  • pessoas que entregam folhetos na rua;
  • cabelos alisados com métodos pouco eficazes;
  • jovens de vinte e poucos anos fã de Beatles;
  • pessoas que andam na rua cantando;
  • pessoas que andam na rua sorrindo;
  • mulheres carregando bolsas enormes;
  • pessoas lentas;
  • pessoas apressadas;
  • carros;
  • crianças mal educadas que falam alto, que correm e esbarram nos outros sem pedir desculpas;
  • pais que batem em filhos mal educados em público, tratando de modo ainda mais errado o erro que colocaram no mundo;
  • escadas rolantes;
  • pessoas que param do lado esquerdo nas escadas rolantes;
  • vozes estridentes;
  • vozes insuportavelmente baixas;
  • vozes lentas e monótonas;
  • pessoas jovens que vivem reclamando de dores e que sempre estão doentes;
  • pessoas gordas que só comem doces e ficam tristes por serem gordas;
  • novelas;
  • entusiastas do futebol e outros esportes coletivos;
  • livrarias com áreas para crianças, que funcionam mais como um irradiador de barulho e confusão em um ambiente que, a princípio, deveria prezar o silêncio;
  • auto-ajuda;
  • pessoas que discutem com seriedade reality shows, novelas, programas de auditório e qualquer outro lixo televisivo;
  • ruas Oscar Freire, Augusta e Teodoro Sampaio;
  • pessoas desconhecidas que puxam papo;
  • pessoas que conversam encostando;
  • telefones celulares;
  • pessoas que ouvem música sem fone no telefone celular;
  • Greenpeace;
  • velhos que insistem em parecer jovens;
  • óculos de armação grossa;
  • combinação de terno com tênis;
  • combinação calça jeans e chinelo;
  • mulheres que vivem falando que nenhum homem presta;
  • axé, samba, pagode, funk, forró, rap, dance music, rock, hardcore melódico, heavy melódico, punk estadunidense e outras bobagens correlatas;
  • hiper-organização;
  • lugares sujos;
  • usuários de cocaína que falam sem parar;
  • mosquitos;
  • favoráveis a pena de morte que são contra o aborto;
  • férias em Miami e Nova York;
  • jeitinho brasileiro;
  • covardia;