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5.02.2013

Rito sacrificial, induzido por D.R. Hooker




Nota: para corretamente ler o que se segue, acione o play na música abaixo. Em seguida, comece a leitura.

Voltava para casa no metrô lotado da Grande Cidade, sempre abarrotado de gente de todos os tipos, tamanhos e graus de educação. E cotidianamente em frente a tantos rostos que nada me dizem, a tantos destinos com os quais não me importo e que, apesar disso, tenho que compartilhar (forçosamente, mas ainda compartilhar) o mesmo ridículo espaço de um vagão de metrô, e isso há tantos anos que é como se todos esses destinos já fizessem parte de minha família, minha enorme família São Paulo lar de todos os imbecis orgulhosos de seus preconceitos e de seus divertimentos baseados em preços altos e longas filas. E então entro no vagão lotado, me esgueiro entre todos e consigo me encostar em uma porta; ligo o MP3 (maravilha tecnológica, escudo a nos proteger do caos das multidões) os primeiros acordes de uma música desconhecida, que nunca tinha antes ouvido; presto atenção na letra, e aos poucos sinto hipertrofiar o meu desacordo em relação ao mundo; foi como uma epifania musicalmente induzida, escancarando perante os meus incrédulos olhos todos os meus pecados, todas as minhas faltas, todas as minhas omissões; e não apenas humilhado graças ao peso fatal de todas essas revelações, que anjos arremessavam sobre mim (pois nesse momento eu já via uma imensa falange de anjos rodopiando sobre mim, sobre todos ali) percebi, refletido no rosto de todos os que forçados compartilhavam aquele vagão comigo,os meus próprios pecados; e misturado ao reflexo de meus pecados misturavam-se os deles também, e estavam todos nós ali imersos em erros, em abominações; e a cada novo acorde daquela maravilhosa música, mais forte em mim se tornava a revelação de que todos somos desgraçados pecadores, que o sacrifício na Cruz jamais nos absolveu, que na verdade a morte de Cristo abriu as portas para uma nova era de crimes. Então eu ouvi, além da música, uma angélica voz sussurrar-me ao ouvido (e era o mais doce som que já ouvi em minha vida) que chegada era a hora, o momento em que toda a minha existência enfim se justificaria, o clímax redentor e definitivo. E como em um filme (mas não era um filme, oh Deus, não era) tudo ficou lento, poeticamente fluindo como em uma romântica seqüência cinematográfica, e naquela metrô cheio fedendo a pecado, lodaçal de todas as depravações, altissonante tocaram dez mil trombetas em honra ao Senhor dos Exércitos, (mas nenhum pecador pode ouvi-las, continuaram em seu impassível estado-zumbi de trabalhadores cansados e insatisfeitos) e compreendi que esse era o aviso final; vi então na minha frente o Arcanjo Miguel com seu olhar incandescente, e aquele olhar não poderia ser mais expressivo, era como uma ordem que dele emanava, e com lágrimas nos meus disse "amém!" e de suas misericordiosas mãos recebi um toque -brevíssimo, casto, como convém aos anjos- e nada mais precisou ser dito, de repente compreendi tudo: retirei da mochila o facão que tinha comprado anos atrás (sem entender o porquê, agora mais cristalino que a glória divina) e iniciei os ritos sacrificiais; o sangue das ovelhas precisava cair, o pecado extirpado para sempre, o advento de um mundo novo e santo. Como foi lindo contemplar os anjos cantando, mãos postas em glória a Ele, e os golpes de facão no pescoço das ovelhas (que antes eram simples pecadores) jorrando o sangue como em chafariz; e já eram incontáveis os gritos e gemidos, os confusos olhares de pavor e perplexidade (tolos, não sabiam que o holocausto que presenciavam era na verdade um ato de renascimento, virginal oferenda de fluidos vitais santificados, limpando o mundo do Pecado). Ouvia o choro das mulheres implorando para que eu parasse, e como aquele choro me enchia de júbilo, um júbilo muito próximo da fúria (pois naqueles choramingos havia apenas o desejo de permanecerem com suas existências de pura luxúria e depravação, essas amaldiçoadas filhas de Eva, tão corruptíveis como sua mãe). Ouvia também o grito dos homens, ou melhor, de rebotalhos de homens, fúteis espécimes masculinos que nada mais tinham da altivez moral dos heróis do passado. Arruinados por uma vida onde o pecado era a regra, não compreendiam (ou compreendiam e se faziam de tolos? Difícil discernir isso agora, os estratagemas do Inimigo são tão ardilosos...) que eu estava ali como o mensageiro da salvação eterna, a eles entregue como um presente de Deus, tendo seus anjos misericordiosos como testemunha. 

O rito sacrificial foi breve, durando tão somente o caminho entre duas estações. Chegando no Trianon, as ovelhas sobreviventes (como queria tê-las matado todas)  correram confusamente para fora do vagão; permaneci ajoelhado entre as ovelhas sacrificadas, mãos estendidas ao alto contemplando as falanges angélicas rodopiando em espiral entre os esplendores dos Nove Céus. Não demorou muito para que os policiais, esses cães do Reino do Anticristo, me imobilizassem com toda a sua costumeira truculência. Eu chorava, e minhas lágrimas eram todas feitas de uma pura e incrível felicidade. O Arcanjo Miguel observava enquanto eu era arrastado para fora do vagão. No seu olhar era notável a serenidade, a beleza, a compaixão. 

6.15.2012

In hoc signo vinces - Paul Veyne e o cristianismo


satanismo popular-fudido

29 de outubro do ano 312: na Ponte Mílvia, a cerca de 15 quilômetros de Roma, o exército do general Constantino enfrenta os soldados de Maxêncio pelo controle da metade ocidental do Império. Constantino estava em defasagem numérica: algumas fontes indicam que para cada homem de seu exército, Maxêncio contava com quinze. Mesmo assim, Constantino empreende o ataque – e vence. Sagra-se Imperador de Roma e atribui a vitória não ao valor de seus homens, não a um golpe de sorte, mas a um único e grandioso motivo: a vontade de Deus. É nesse momento que nasce o Cristianismo.

Afirmar que o cristianismo nasce em 29 de outubro de 312 d.C. parece ser um erro conceitual: passados já quase três séculos desde a morte de Jesus, não existiam milhões de cristãos em todo o Império? A Igreja já não era uma instituição respeitada, com homens poderosos em suas fileiras? Os deuses do paganismo não eram encarados, e isso desde Virgílio, como simples mitologia esvaziada de qualquer realidade? Ao menos era mais ou menos isso o que eu sempre tinha ouvido: o cristianismo, evoluindo lentamente, minou as reservas espirituais do paganismo e tornou-se a religião oficial do Império Romano e, por conseqüência, virtualmente de todo o mundo. É justamente essa tese que o historiador francês Paul Veyne contesta e maciçamente destrói no livro “Quando o nosso mundo se tornou cristão”. Esse post é uma tentativa mais do que modesta de comentar alguns pontos da obra lançada em 2007 (tenho a tradução em português de Portugal de 2009).

A tese de Veyne é, em certa medida, bem simples: sem Constantino, o cristianismo teria permanecido uma seita de vanguarda. O Império estava repleto de outras crenças e, nos tempos da batalha da Ponte Mílvia, as perseguições aos cristãos não aconteciam mais.  Ao mesmo tempo, é enganoso imaginar que o cristianismo estava minando as crenças pagãs: em 312 d.C., apenas 5% do território romano estava cristianizado. Contudo, 80 anos depois, o cristianismo tornou-se a religião oficial de todo o Império. Como explicar uma expansão assustadoramente rápida?  

Os fatores são variadíssimos, mas um ponto chave na tese de Veyne é que, com Constantino, o cristianismo não era a religião do Império, mas a religião do imperador: sabendo-se senhor de massas amplamente pagãs (e como todas as massas, contrárias a mudanças bruscas em sua meia vida de homens-gado) o imperador soube usar de sua influência para, gradativamente, ir dotando de cada vez mais poder no sistema imperial a instituição mais longeva de todos os tempos – a Igreja Católica. Apesar de não excluir os pagãos de seu séquito de conselheiros e oficiais, Constantino contava com muitos cristãos para as funções mais importantes dentro das hierarquias imperiais. Em seus (numerosíssimos) éditos, fazia questão de afirmar as vantagens de sua crença e, ainda que indiretamente, instituía mudanças que preparavam o advento do cristianismo como religião de todos. Por exemplo, em 312 ele impôs ao Império a criação do descanso dominical: a vida ainda era pagã, a moral pública e privada ainda era a da Roma vetusta, mas com essa simples instituição de um dia dedicado ao descanso – e simbolicamente o domingo, o Dominus, dia do Senhor – Constantino colocou certo ritmo cristão a um cotidiano que ainda não o era (e pensar que, até hoje, o domingo é o dia do descanso oficial para bilhões de seres humanos, chega a ser espantoso). Constantino parece agir com um espírito engenhoso, visionário até, em sua preparação algo silenciosa de condições para a futura hegemonia cristã.


Mas não foi apenas Constantino o responsável pela vitória do cristianismo: a crença em si mesma possui certas “qualidades competitivas” em relação ao paganismo.  A primeira é a sua atualidade histórica: as histórias de Cristo e seus seguidores eram recentes, eventos passados há cem, duzentos anos. Os mitos do paganismo estavam distantes no tempo, nenhum homem era contemporâneo das façanhas que os deuses desempenhavam em suas visitas ao mundo dos homens, que não aconteciam mais há séculos. Já o cristianismo tinha seus mártires, os milagres de homens santos, o testemunho dos perseguidos que viram maravilhas. Há também a relação amorosa e próxima do cristão com o divino: não basta se dizer cristão, mas é vital proclamar o amor que se tem a Deus, que sempre é um amor em retribuição ao que Ele ofereceu a todos os homens: um pagão poderia muito bem ser um fervoroso adepto de Marte sem nunca dizer que o amava, pelo simples fato de que isso era impensável no paganismo.  E muito menos havia no paganismo a universalidade cristã: o paganismo nunca foi igualitário, e mantinha ritos específicos para aristocratas e outros para a plebe; já o cristianismo tinha o conceito de conversão: todos os que aceitam o Deus Vivo serão salvos. Mas a vantagem competitiva que me parece a mais forte (Veyne também a salienta) é a transcendentalidade para além da narrativa mitológica: o cristão é um indivíduo convicto de que a vida eterna, a Salvação, é uma realidade tão forte quanto o seu próprio corpo. Citando Veyne, com o cristianismo “a nossa existência sobre a terra já não apresentava o absurdo de uma breve passagem entre dois nadas”; na época de Constantino, o debate sobre o que existia após a morte era o grande debate, e nada no paganismo se assemelhava à idéia cristã da “salvação”. Os deuses pagãos pareciam completamente distantes: quando muito favoreciam uma colheita, faziam vencer uma guerra, curavam uma doença; o Deus dos cristãos ouvia as preces de todos, confortava os corações, prometia uma vida de eterno deleite ao seu lado após a morte. Para alguém que estivesse em apuros, desiludido de tudo e todos, ir a uma igreja parecia uma alternativa melhor do que sacrificar uma pomba a Júpiter; na igreja, em comunhão com outros cristãos, todos seus irmãos, suportar o mundo de repente se tornava mais fácil.

Outro ponto onde Veyne investe em polêmica: certo discurso coloca o cristianismo como uma religião monoteísta e, portanto, superior ao politeísmo, colocado como algo mais “arcaico”, menos “civilizado”. Nada mais equivocado: vale lembrar que o Deus Uno cristão é, ao mesmo tempo, três (Pai, Filho e Espírito Santo); que a figura dos santos é imensamente forte no catolicismo, e certas devoções os colocam no mesmo patamar dos pequenos deuses do paganismo; que Maria, mãe de Jesus, que nos evangelhos tem um papel não mais que secundário, ocupando algumas poucas páginas, no catolicismo ganha o epíteto de Mãe de Todos os Homens, em uma espécie de re-significação do culto à Grande Mãe de eras ainda mais afastadas. Não é, portanto, por seu pretenso “monoteísmo” que o cristianismo vence, mas pelos demais elencados. Apesar disso, é certo que a religião de um deus único é, em comparação com a miríade de deuses do paganismo, uma “religião mais forte”. Devido a isso, certa crítica de esquerda coloca o monoteísmo como algo menos “democrático” que o politeísmo; Veyne rebate isso muito bem, ao dizer que “não é o monoteísmo que pode tornar ameaçadora uma religião, mas o imperialismo de sua verdade” (grifo meu). E é aí que está a diferença essencial entre o “monoteísmo cristão” e o paganismo: enquanto que, em um debate qualquer, um devoto de Júpiter poderia falar para um devoto de Vênus que “o meu deus é muito mais poderoso que o seu”, um cristão falaria de modo sutilmente diferente que “o meu Deus é o verdadeiro, e os seus são superstições”. Em uma palavra: no paganismo não se colocava em cheque a existência de outros deuses: todos eram válidos, até mesmo os dos inimigos, e no máximo o que se colocava era uma questão de poder e glória; com o cristianismo, há uma desqualificação da crença do outro, colocada em um patamar de irrealidade, de mentira, e que seus adoradores estão enganados.

Esse imperialismo de crença motivou as ações de Constantino e seus sucessores, até que em 8 de novembro de 392, Teodósio proclama o cristianismo como religião oficial do Império e torna todos os cultos pagãos ilegais. A motivação para isso não foi nada religiosa: era uma foram de esmagar um golpe de Estado orquestrado pela ala pagã resistente nas entranhas do poder. Mas passado isso, essa ala não se levantará mais. O cristianismo tinha se tornado a religião do Império e formada estava uma dinastia que o levava no coração e na alma. O “mundo” já era cristão e as massas, principalmente nas regiões mais urbanizadas, estava nas mãos da estrutura hierárquica da Igreja. Demoraria ainda alguns séculos para todos os resquícios do paganismo serem extintos completamente, principalmente no Oriente, que não vivenciou uma ampla cultura eclesiástica e beata como no lado ocidental do Império.


Paul Veyne, sensualizando
Paul Veyne, nascido em 1930 em um meio popular que ele gosta de definir como “inculto”, é um historiador afeiçoado a teses polêmicas e com certeza o homem mais feio do mundo. Especializado em Roma Antiga, formado pelo Collège de France e atuando lá até hoje como professor honorário, suas obras são amplamente traduzidas no mundo todo.

Compre Quando o nosso mundo se tornou cristão

p.s.: a foto que ilustra o post é o grafite mais genial que já pude ver na minha vida, e é obra do Urso Morto

4.13.2012

Sobre a humildade


Captar frases soltas no transporte público, na rua ou em qualquer outro lugar onde a aglomeração de pessoas proporcione ao ouvido atento do cientista social autodidata um rico manancial para análise: um procedimento ao qual me dedico há anos, que já inspirou outros escritos nesse blog e que considero uma da melhores formas de captar a essência da realidade em seus aspectos mais interessantes. Interessantes porque escondidos nos sulcos mais profundos do discurso do homem comum, cuja vida é uma vulgaridade do despertar até a hora  do boa noite, e justamente por estarem ocultos sob uma grossa camada de tradições e hábitos têm aspecto de serem normais, naturais, benéficos até, ou mesmo males incontornáveis. Mas sabemos que discursivamente nada é normal, nem natural, nem benéfico ou maléfico em si: construções antes que dados da realidade, esses aspectos possuem significados que são transparentes para o homem comum, mas o envolvem e influenciam completamente. De modo bastante similar age a pressão atmosférica: não a vemos, mas sem parar um segundo sequer ela exerce seus poderes sobre nós.

Uma palavra que hoje ouvi em uma conversa dessas foi o adjetivo "humilde". Não sei exatamente por que exatamente essa palavra se fixou em minha mente, mas o fato é que ela foi responsável por uma série de anotações mentais que serviram de base para o que segue.

Emprega-se em geral para salientar uma qualidade positiva de um indivíduo perante os demais: diz-se que alguém é humilde por apresentar um misto de amabilidade, educação, cortesia, etc. Mas não é só isso: o humilde é também alguém que, em determinadas situações, tende a mostrar-se como ligeiramente inferior. Todavia, isso não ocorre de modo negativo ou fatalista - o humilde considera-se menor mas com um certo orgulho, em uma captação da benevolência alheia feita com sorrisos que chegam a ser rastejantes.

Há na atitude do humilde muito da etimologia da palavra: o adjetivo vem do latim humus, que significa "terra", "chão", "solo". De humus derivou-se então o adjetivo latino humilis que possuía, para o romano do Período Clássico (séculos II a.C a II d.C.), significados como estes:

  • de estatura baixa, rasteiro;
  • que é de condição baixa;
  • que tem sentimentos baixos;
  • abatido, desanimado;
  • covarde, fraco, mesquinho, vil.
 [acepções retiradas do Novíssimo Dicionário Latino-Português de F.R. dos Santos Saraiva, editado pela Livraria Garnier]


Há inúmeros registros na literatura clássica comprovando que, antes do cristianismo se transformar na religião oficial do Império, em 391 d.C com Teodósio I, a noção de humilis tinha uma carga altamente negativa, no sentido de descrever características contrárias ao ethos romano de virilidade, força e vontade afirmativa perante a vida: Cícero fala de humili animo ferre ("resistir com fraqueza"), Plínio o Jovem de humiles curae ("cuidados mesquinhos"). Com a expansão da religião cristã  principalmente nas classes baixas (o cristianismo sempre foi uma crença "plebéia", no sentido de oferecer aos desgraçados de toda sorte, sem distinção de classe, a idéia da "salvação", conceito praticamente inexistente no paganismo, que tinha cultos diferentes para cada porção da sociedade) o termo foi perdendo esse significado inicial para ganhar aspectos mais positivos. O humilde torna-se, então, um novo paradigma de felicidade e grandeza. Fundamental e termômetro dessa mudança é o Sermão da Montanha, no evangelho de São Mateus capítulo 5, onde Cristo começa dizendo isso:

Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus.

A mudança de acepção do termo é fácil de entender: o termo humilis era comumente empregado para, justamente, fazer referência a essas classes baixas, onde o cristianismo inicialmente se propagou. A mudança de significado é a vitória, no campo semântico, da moral de escravo nietzscheana sobre a dura ética romana da Antigüidade.

De certo modo, o humilde de hoje carrega, na tessitura mais profunda, essa carga de significados inicial que, mesmo após o cristianismo, ele jamais perdeu: o humilde é aquele "que se prostra perante o altar", que "cai de joelhos" defronte Deus, que ajuda os demais em uma atitude totalmente desinteressada onde descuida até mesmo de si. Tudo isso é ser humilde, mas não é só isso: o humilde é, também, um tipo que olha com desconfiança para qualquer altura com um misto de nojo e reprovação. Incapaz de alçar vôos para além de sua "natureza terrena", impregnado de um humus cultural que enxerga valor apenas no que é contingente e facilmente digerível, o humilde é um tipo que acredita na validade da arte apenas quando ela está à serviço do povo ou de uma causa. Conceituando o artista (seja escritor, músico, pintor, cineasta, etc) como um tipo social que deve estar em "conexão com o social", todos os que não se encaixam na regra lhe são tediosos, desnecessários, dignos de seu ódio. Ao mesmo tempo idealiza povo e o alcance de sua arte: o humilde opta por ter uma visão duplamente cega ao invés de uma cegueira simples. 

O vírus da humildade não está apenas presente nos artistas que buscam o "povo": até mesmo em um tipo de arte mais elitizada e que ocupa os salões de exposição freqüentados por branquelos bem-nascidos ele promove seus estragos, sobre a onipresente criação de "instalações interativas". O discurso que está por trás dessas bobagens é essencialmente o mesmo: o artista se nega o papel de mediador cultural definitivo e devolve para as mãos do público a própria construção da obra. Assim, em algumas o artista apenas coloca um, sei lá, amontoado de giz de cêra no chão e pede para que o público rabisque uma parede branca e então pluft!: nasceu a obra de arte, perfeitamente antenada com os tempos "democráticos" e "colaborativos" que vivemos. Não se trata mais de termos artistas que se dediquem a criar um conceito, e a partir dele passem dias em um esforço para transformá-lo em realidade, seja um quadro que instigue intelectualmente o observador, uma escultura que lhe faça reavaliar um dado da realidade ou que simplesmente proporcione um prazer estético que induza a fusão entre fruição estética e reflexão. Tudo isso que dissemos, de certa maneira, pede que tanto artista como público elevem-se a si mesmos para além da mediocridade diária. Difere sensivelmente de uma arte impregnada do senso do humilde, que tenta a todo custo puxar para o solo.

É assim que, tanto nas artes como em outros campos da vida, o humilde atua: pela força rastejante de mediar os homens e suas ações pelo princípio do humus, pela nivelação por baixo. Força afirmativa, desejos de grandeza, impulso para criar e ir além das limitações, medos e bloqueios: nada disso faz parte do espírito humilde. Ele é amigo do status quo, das tradições burras, do cotidiano miserável que mantém milhões em uma existência que pouco tem a ver com Vida - ou seja, da vida entendida não apenas como impulsos orgânicos mas sim realização, luta e superação de si mesmo. 

3.16.2012

Kali, a mãe da destruição

1.16.2012

Hinos da The Process Church of the Final Judgement


Lançado em 2010 através de uma parceria entre a casa editorial Feral House e o sêlo de occult black metal Ajna, Restored to One é o disco do Sabbath Assembly que apresenta versões do hinos rituais de um dos cultos mais controversos dos últimos anos, a The Process Church of the Final Judgement.

Agora um pouco de história.

12.04.2011

"Axe is the name of mine", de Alexander Dugin - parte 3



Enfim a conclusão do ensaio do Alexander Dugin. Aproximações míticas do machado com Raskolnikóv, escatologia de verniz russo, messianismo eurasiano: está tudo aí, com a brilhante demência que só os sanguinários salvadores do mundo conseguem criar.


Boa leitura.

11.23.2011

"Axe is the name of mine", de Alexander Dugin - parte 2


Como prometido, a segunda parte da tradução do ensaio "Axe is the name of mine", do pensador russo Alexander Dugin.


Como é um ensaio longo, esse post se divide em três partes: 

Parte 1: 

Parte 2: 

Parte 3: 


Nessa segunda parte prevalece uma discussão sobre conceitos religiosos. É a  necessária ambientação para o final do ensaio, onde Dugin mostra claramente a sua visão apocalíptica sobre o romance máximo da literatura russa, encerrando com um verdadeiro chamado às armas .


11.18.2011

"Axe is the name of mine", de Alexander Dugin - parte 1


Esse post é a tradução do texto “Axe is the name of mine”, do russo Alexander Dugin, onde ele propõe uma bizarra e interessantíssima interpretação metafísica do romance "Crime e castigo", de Dostoiévski.

Como é um ensaio longo, esse post se divide em três partes:



Parte 3: 

Dugin é o principal intelectual do Eurasianismo, movimento surgido nos anos 1920 que clama ter a Rússia uma identidade completamente diferente da Europa Ocidental. Os eurasianistas consideram a Revolução Bolchevique como uma reação do espírito russo à sua rápida e degradante modernização, e que compete agora, aos eurasianistas de hoje, unir a grande Mãe Rússia e suas regiões de influência – Cáucaso, Irã, Georgia e, mais recentemente, Turquia – em um bloco de rejeição contra o Atlanticismo, termo geopolítico cunhado por Dugin para designar o domínio norte-americano sobre o mundo. É o Eurasianismo, segundo Dugin, uma nova revolução anti-americana, cujos aspectos são a princípio políticos e econômicos, mas também tem profundas dimensões militares, culturais e espirituais.

Não bastasse o texto de Dugin tratar de um dos meus romances prediletos, a sua interpretação metafísico-simbólica do texto é absurdamente magnífica – quer você concorde com as idéias lunáticas dele ou não. Aliás, o grande valor de Dugin está justamente na sua predisposição ao extremo, ao combate franco e aberto e, por que não dizer, a de ser o profeta-líder desse novo mundo eurasiano - pretensão que se harmoniza perfeitamente com o seu próprio semblante messiânico.

É  na voz dos extremistas que muitas vezes o dínamo do motor da história se mostra mais claramente. Dugin é um dos pensadores extremos do mundo de hoje. Ouvir o que ele tem a dizer mostra que ainda há ferocidades presentes em vários lugares do globo e que a nostalgia de uma grandiosa Rússia ainda move corações e mentes que parecem estar prontos para o assassinato.

Como é um texto relativamente longo, eu o publicarei em três partes. A próxima divulgarei na terça-feira que vem, dia 22 de novembro.

Agora, o texto.


11.05.2011

Gênesis 1, 28



"Deus os abençoou: Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra."

Sentença proferida em 1587 no processo contra o prior de Trancoso (autos arquivados na Torre do Tombo, armário 5, maço 7):

"Padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, de idade de sessenta e dois anos, será degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi arguido e que ele mesmo não contrariou, sendo acusado de ter dormido com vinte e nove afilhadas e tendo delas noventa e sete filhas e trinta e sete filhos; de cinco irmãs teve dezoito filhas; de nove comadres trinta e oito filhos e dezoito filhas; de sete amas teve vinte e nove filhos e cinco filhas; de duas escravas teve vinte e um filhos e sete filhas; dormiu com uma tia, chamada Ana da Cunha, de quem teve três filhas. Total: duzentos e noventa e nove, sendo duzentos e catorze do sexo feminino e oitenta e cinco do sexo masculino, tendo concebido em cinquenta e três mulheres". Não satisfeito tal apetite, o malfadado prior, dormia ainda com um escravo adolescente de nome Joaquim Bento, que o acusou de abusar em seu vaso nefando noites seguidas quando não lá estavam as mulheres. Acusam-lhe ainda dois ajudantes de missa, infantes menores que lhe foram obrigados a servir de pecados orais, completos e nefandos, pelos quais se culpam em defeso de seus vasos intocados, apesar da malícia exigente do malfadado prior.

[agora vem o melhor:]

"El-Rei D. João II lhe perdoou a morte e o mandou pôr em liberdade aos dezessete dias do mês de Março de 1587, com o fundamento de ajudar a povoar aquela região da Beira Alta, tão despovoada ao tempo e, em proveito de sua real fazenda, o condena ao degredo em terras de Santa Cruz, para onde segue a viver na vila da Baía de Salvador como colaborador de povoamento português. El-rei ordena ainda guardar no Real Arquivo esta sentença, devassa e mais papéis que formaram o processo".

(retirado de um e-mail da lista Planeta Cioran)

8.22.2011

E o mundo será ateu...


Um mundo ateu: obedecendo a uma teleologia que mescla desenvolvimento econômico e esclarecimento sobre questões existenciais, o futuro pertencerá aos homens livres de deus. Pelo menos, assim será segundo o estudo divulgado pela Folha na semana passada: http://f5.folha.uol.com.br/estranho/957024-estudo-diz-que-ateismo-vai-tomar-lugar-das-religioes.shtml

Os dados são esses: a Suécia, paraíso do bem-estar social, com seu seguro-desemprego vitalício e chances reais de todos terem uma “boa” vida, tem alto percentual de ateísmo (64% da população assim se declara no gélido país escandinavo). Já a África sub-saariana, uma das regiões mais miseráveis do mundo, o percentual de ateus nem chega a 1%. De acordo com essa pesquisa (a ser divulgada em finais de agosto, integralmente) o que explica as diferenças imensas de percentual são as comodidades que o dinheiro introduz na vida das pessoas. Quanto maior segurança para lidar com os problemas terrenos, menos interesse por qualquer tipo de transcendência.

As conclusões desse estudo me fizeram voltar no tempo, revendo os passos dados até aqui.