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12.14.2010

Carta número 2


O melhor das noites onde se perde o sono: ver o acúmulo lento, denso e inexorável de maus pensamentos, de rancores cheios de bile, de análises isentas de covardia que, nas horas luminosas, o espírito jamais conseguiria empreender.

6.15.2010

Carta número 1

A pior companhia que posso ter sou eu mesmo. Chafurdo na mediocridade como um porco na lama; feliz, lambuzado de todas as podridões que hipocritamente execro, torno-me lentamente um distorcido reflexo da autoimagem enganosa que tenho de mim. Projeto sonhos futuros feitos de uma matéria completamente ridícula. Construo uma casa, uma família e uma esposa ideais: nessa ilusão gosto de me demorar entre os compromissos cotidianos (imaginar a própria vida é o primeiro sintoma de que se odeia a própria vida). Então me vejo em uma ampla morada, uma arejada casa burguesa, com seu mobiliário estúpido, seus quadros estúpidos, seu cachorro de estimação estúpido; ainda não tenho filhos nessa vida imaginada e minha esposa é perfeita com um grande rabo, pernas torneadas e fome de puta. Ao mesmo tempo é completamente apaixonada e nada tem na vida a não ser a mim, o centro de seu sistema solar, o astro ao redor do qual ela orbita com a consciência de uma imbecil. Tenho dinheiro suficiente para viagens internacionais duas vezes ao ano, jantares nos restaurantes da Serra e caprichos outros dos quais as pessoas em geral se valem para gastar sem pensar muito. Tudo que foi relatado é um resumo aporcalhado dos pensamentos que eu desenvolvo até os detalhes: é assim que gasto as minhas horas, construindo mentiras.

5.13.2008

Madrugadas de Maio

"Tu levaste-me além de mim, para aquelas nebulosas paragens de si mesmo que todos nós temos e que raramente ousamos desbravar. Só em você encontrei um mundo como o meu, feito da ambição sem limites de conhecer a tudo, de entender as razões fundantes das coisas, o que se esconde nas tessituras íntimas dos conceitos secretos. Só o exercício dos anos me possibilitou aclarar no intelecto essas idéias, e já não sei ao certo se passou dois ou três desde quando te conheci; mas que importa o tempo, afinal? Tu conheces mais de minha alma do que toda a gente, até mesmo aquilo que não desejo saber você adivinha; nas nossas cartas sem fim apenas um detalhe, um adjetivo, ou mesmo um mal empregado singular é suficiente para que você, com a agudeza de julgamento que é apenas sua, me leia em profundidade.

E se muitas vezes a critiquei por seu comportamento tempestuoso, hoje eu sei que ele se deve a um extremo de sinceridade que não tolera o mínimo desvio. Tal rigor, muito mais forte que todos os vícios do mundo, te edifica a uma nobreza a qual jamais vi. Não é a nobreza fácil, aquela dos hipócritas, feita de tudo que é artificial e ostentador: é algo que está em cada gesto seu, na ausência completa de egoísmo, na sua recusa a todas as podridões que a turba venera, no seu elitismo que com nada se importa a não ser a retidão aos seus próprios desígnios. E essa nobreza ganha no marmóreo branco de sua pele ­– e eu me lembro de cada detalhe dessa pele – uma tal beleza que faz você surgir como escultura, exemplo de perfeição em arte, contudo sempre humana, demasiada humana, uma Überfrau que fumava comigo vaporosos cigarros nas madrugadas frias. Conhecê-la no íntimo oculto, na sua mais sensual verdade, e ver desabrochar em flor o suave perfume de seu sexo quente me fez experimentar o gozo como a pequena morte que ele é, para depois ressuscitar, suado e ofegante, no delicado gesto de seus braços a envolver meu pescoço, puxando-me mais uma vez para si, no silêncio cúmplice de tudo que é sublime – e então nasceu o desejo de permanecer naquele torpor para todo o sempre, alheios ao mundo, surdos para a sinfonia de seus sons perturbadores. Eu seria então seu eterno adorador, eternamente prostrado aos pés de seu altar úmido, a alcova seria o templo onde você, magnífica, reinaria como uma violenta deidade, cheia de feminis caprichos, aqueles dengos que fazem das mulheres seres tão curiosos e que em você encontro em estado ideal. Festas sem fim eu suportaria, homenagens, rituais de devoção que exigem penumbra e velas e sacrifícios, ali estaria eu, tudo fazendo para sua felicidade divina e para meu gozo viril.

Por desígnios para sempre ocultos - o Destino, sabemos, é mudo - agora tu és uma deusa que deixou sua cidade para conquistar outros domínios. E no coração deste seu adorador, embora esteja mais do que presente a certeza que seus divinais planos alcançarão a glória, há um vazio feito de saudade que eu esqueço sempre quando tu acenas através de suas cartas. Desde os antigos que se diz que as cartas são como conversas onde, pela força sibilina da palavra escrita, os distantes se fazem próximos, mesmo que no curto espaço da leitura de duas folhas de papel. É sempre uma juvenil felicidade aquela que se apossa de mim ao ver mais uma delas chegando com notícias suas, trazendo novidades que preenchem os intervalos entre meus afazeres diários com mil reflexões e vontade de, mais uma vez, celebrar ao seu lado os ritos do desejo, em nossa alcova, seu templo. Templo no qual ainda existe seu cheiro, a sua marca, os seus traços. Templo no qual reinamos absolutos, você e eu, na união entre o humano e o divino, entre as potencialidades da vida e do além-da-vida, nos espasmos que meu corpo fez sobre o seu e tudo que lembro são violências prazerosas, são ímpetos imprevisíveis, são vontades de permanecer, eternos e saciados, naquela esfera luminosa que toma conta de nós no clímax sacrificial.

Hoje é dia 12. Ainda é tão cedo que é possível ver muitas estrelas. Um vento delicioso está soprando e deixando tudo ainda mais gélido. Não há sequer uma nuvem no céu, só o éter azul cobrindo o orbe de um lado a outro. O Sol, tímido ainda, está se levantando lentamente na linha do horizonte. Você tem razão: maio é o mais lindo dos meses.”