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4.27.2020

Além dos véus róseo-rubros


Houve um tempo que os lençóis tinham o teu cheiro, lençóis onde gozamos juntos e acordávamos com lembranças da noite anterior. Bastava virar para o lado para já te tocar e então começar de novo. As bocas então se encontravam, ávidas, quase se mordendo. O carinho que transcende a forma amena e se torna aquilo que deve ser - primitivo gesto de amor. Não do amor surrado na escritura dos poetas, que só vivem na ilusão de sofisticar aquilo que não precisa e assim parecerem mais espertos do que realmente são. Amor como ato voraz. Explosão. Tempestade. Estremecimento. Suas pernas enlaçadas em meu pescoço, bambeando. Reflexo físico que sugeria que minha língua dedicada estava no caminho certo. O labor devoto em frente ao seu altar úmido de vida. Pois é no elemento líquido que a vida se inicia. Minha devoção, fervente, então penetrava no altar, abrindo os véus róseo-rubros que o velavam. Como eram quentes as chamas que ali se ocultavam! Isso fazia minha devoção, ainda mais exaltada, transformar-se num desejo de pura conexão. E por isso eu buscava mais uma vez sua boca arfante, mas também seus olhos. O que de mais íntimo pode existir do que amantes que fodem com olhos fixos nos olhos do outro? As chamas do seu altar úmido subiam e através dos olhares cruzados uniam ainda mais os corpos já em conexão. Continuidade ígnea. Ouroboros feito apenas de desejo em exercício. Exercício ritmado em seu altar já inundado de êxtase, sua boca perto da minha, respiração que misturava ares inalados e exalados, dentro e fora, fora e dentro. Como que isso não pode ser amor? Mãos que seguravam sua cabecinha com ternura, mas também com malícia, enlaçando os dedos em seus cabelos para aumentar a sensação de controle. Gesto que eu fazia para dizer "você é toda minha". Você percebia, como ninguém sabia me ler, e então sorria em resposta. Sorriso que era como gasolina sendo jogada em um incêndio. O sorriso acontecia de modo espontâneo ou calculado? Eis o mistério da Fé. Nenhum homem jamais saberá se o sorriso feminino na hora da foda vem de Deus ou do Diabo. O melhor é assumir que ambos são uma mesma coisa. E que a Mulher, a Beleza que está no topo do mais alto pilar da Criação, tem em si a dádiva de ser filha de ambos e de nenhum. Com aquele sorriso aumentava ainda mais minha ardente devoção. O altar úmido, já quase todo feito de líquidos cujo aroma transforma o homem em animal. E nessa inundação de sucos pecaminosos eu então começava a me preparar para contribuir com um novo tipo de libação, também ela quente e aromática, e que em outras vezes você havia sorvido, ávida e devotamente. Respirações ainda mais próximas, inalação e exalação, dentro e fora, fora e dentro, em ritmo crescente. Um olhar inocente poderia julgar que era um homem maltratando uma mulher com aqueles sacolejos quase violentos. Penso que esses mesmos inocentes ficariam confusos ao ver o seu sorriso enquanto me dizia baixinho "goza, goza", sempre com aqueles olhos mágicos me encarando. Não me saem da mente especialmente seus olhos. Eram neles que fixava toda a minha atenção enquanto eu sentia o clímax se iniciar, e os gemidos se tornando mais altos até que a respiração, descontrolada, era esquecida. Luzes disformes. Nervos se contorcendo. Segundos que a percepção se alterava. Não é a toa que os franceses chamam isso de pequena morte. Jorros quentes disparados contra as paredes internas do altar úmido. Fêmea e macho unidos em êxtase único. O suor meu pingando sobre o seu. Grudados, melados, o mundo exterior poderia ser destruído, a civilização sucumbir, holocaustos se multiplicarem. Tudo isso havia perdido o sentido. Havia encontrado um novo tipo de divindade, e ela estava oculta sob os véus róseo-rubros do altar úmido que vivia selvagem entre suas pernas.

11.03.2011

Trecho de "História do olho", de Georges Bataille


Para os outros, o universo parece honesto. Parece honesto para as pessoas de bem porque elas têm os olhos castrados. É por isso que temem a obscenidade. Não sentem nenhuma angústia ao ouvir o canto do galo ou ao descobrirem o céu estrelado. Em geral, apreciam os "prazeres da carne" na condição de que sejam insossos.

Mas, desde então, não havia mais dúvidas: eu não gostava daquilo a que se chama "os prazeres da carne" justamente por serem insossos. Gostava de tudo o que era tido por "sujo". Não ficava satisfeito, muito pelo contrário, com a devassidão habitual, porque ela só contamina a devassidão e, afinal de contas, deixa intacta uma essência elevada e perfeitamente pura. A devassidão que eu conheço não suja apenas o meu corpo e os meus pensamentos, mas tudo o que imagino em sua presença e, sobretudo, o universo inteiro.

(página 58, edição da Cosac Naify de 2003)

5.06.2010

Cidade Orgia


No noticiário daquela manhã S. viu que uma terrível onda de calor assolava as cidades do Nordeste. Na TV as mesmas imagens dos bois magros, dos poços vazios, das famílias de Fabianos famintos e humilhados. Parecendo se alimentar do Sol, a imensa caatinga crescia como um invencível monstro de aridez que ria da desgraça dos homens. E entrando no elevador para ir embora o calor nauseante fez com que se lembrasse das imagens vistas pela manhã e que aqui, mais ao sul, os tempos vividos eram também tempos de seca: chegava ao final mais uma semana de trabalho, a noite de sexta-feira era deslumbrante e fazia um mês, doze dias e só-o-diabo-sabe-quantas-horas que S. não fodia.

Isso às vezes ocorre com um cara. Uma espécie de piada de mau gosto (de péssimo gosto, diria S.) que a Natureza reserva aos seus filhos, mesmo que eles estejam em forma, bem vestidos, com barba aparada e escorrendo testosterona. Vai a bares, shows, baladas, festas e volta para casa tão sozinho quanto antes; reativa contatos com amigos; liga para um caso antigo e descobre que a desgraçada casou; e com exceção das velhas querendo lugar no metrô, para todas as demais mulheres do planeta o sujeito tem certeza que se tornou invisível ou desnecessário, como se ali, no espaço ocupado pelo corpo de um homem em apuros, só existisse algo cujo destino é ser ignorado (o necessitado é, antes de tudo, um exagerado).

S. saiu do elevador e em dois passos já estava nas ruas. A sexta-feira tinha sido muito quente. Já fazia quase uma hora que o sol sumira atrás dos imensos prédios, mas sua incandescente presença permanecia nos decotes generosos, nas saias que balançavam ao ritmo de coxas firmes, nas sandálias de salto alto que eram como altares para pezinhos suculentos. E se para um homem que passou a noite anterior transando até às quatro da madrugada o efeito desta moda provocativa é considerável, que o leitor tente sentir (e a leitora faça um esforço para imaginar) como um infeliz na condição de S. (um mês, doze dias, só-o-diabo-sabe-quantas-horas) sofria ao ver aquele cortejo de decotes, saias e sandálias de salto alto.

Como aquela noite estava quente e a avenida Paulista tomada de carros, S. desistiu do ônibus e confiou a volta para casa aos seus sapatos. Poderia assim desfrutar do agradável calor por um caminho que não era muito longo. E com tantas pessoas pelas ruas e, principalmente, com tantas mulheres (decotes, saias, sandálias) que também voltavam para casa, a andança seria um ótimo passeio e –quem sabe– poderia reservar algumas surpresas, oportunidades e aventuras (o necessitado é, antes de tudo, um esperançoso).

A avenida Paulista estende-se em uma linha reta por sete estações de metrô, dois shopping centers, dois museus, cinco livrarias e incontáveis prédios de ambos os lados. Estes se elevam do chão aos céus às dezenas como longuíssimos falos, rijos e sedentos caralhos apontados para o alto, para a enorme bunda de Deus, sentado lá nas nuvens a observar o mundo horrível que criou. A Mãe Terra salpicada de falos que apontam para o céu, eis uma ironia terrível, uma mãe com falos, hermafroditismo curioso que a obsessiva mente de S. poderia muito bem criar se já não estivesse ocupada com outra analogia inesperada, que brotou quanto viu entrando, no túnel que fica no final da Paulista, um enorme caminhão pipa; o gigantesco veículo lentamente cruzava a entrada do túnel, quase encostando em seu teto com sua volumosa e roliça carcaça metálica. Isso ainda me bota doente, pensou, mas a sugestão da imagem nem por isso deixou de persegui-lo; reviveu em flashes lembranças de fêminas ancas, levantadas em posição canina, com ondulações apetitosas, suculentas, e lembrou-se como suas mãos se encaixam naquelas curvas, o contato das peles suadas, os gemidos que o túnel não dá, os jorros espasmódicos que ao caminhão não são permitidos, e S. calculou se talvez não estivesse a um passo de se tornar um maníaco (o necessitado é, antes de tudo, um desconfiado).

S. continuou caminhando de volta para casa e (nem é preciso dizer), sempre em alerta a qualquer movimento feito por qualquer mulher em um raio de vinte metros. (um mês, doze dias, pergunte-ao-filho-da-puta-do-diabo). Seus olhos vivazes flanavam entre camisetas delineando seios perfeitos, frentes únicas exibindo costas macias e calcinhas levemente à mostra que S. tinha certeza que eram ridiculamente pequenas, expediente que segundo ele era utilizado de forma deliberada e com o único intuito de provocar. E devido ao seu estado excepcional, S. cometia com uma freqüência maior um equívoco que todo homem já cometeu: a captação de flertes até mesmo onde não tem. Pois se é possível reconhecer alguma habilidade em um homem necessitado, essa está em uma imaginação sem limites que entende um simples olhar como convite a um ménage.

Foi algo parecido o que aconteceu com S. na esquina da avenida Paulista com a rua Augusta: lá estava ele misturado entre muitos outros pedestres parados no farol vermelho, esperando uma chance de atravessar, um rebanho de animais cansados querendo voltar para casa em uma sexta-feira quente; após um tempo de espera o farol ficou verde, o rebanho estoura, os animais se cruzam; só isso e nada mais, apenas pedestres que se cruzam em um farol, todavia S. acreditou que uma ruiva peituda vindo na direção contrária lançou sobre ele um olhar diferente. Obviamente que se trata de algo absurdo e que a suspeita de S. é claramente fruto de seu estado, mas mesmo assim ele quis voltar e puxar conversa com a ruiva de alguma forma (o leitor sabe que conversas desse tipo necessariamente não precisam de assunto: fala-se apenas, intercalam-se futilidades com restos de estupidez, permite-se que o nada construa a sintaxe do discurso; a “eficácia” de uma conversa dessas, cujo objetivo é obter sexo, é tão maior quanto menor for o conteúdo da conversa). Após algumas palavras arriscaria convidá-la para ir até a sua casa; inacreditavelmente ela aceitaria, excitada com a irresponsável aventura; não demoraria muito e estariam nus na cama de S., esfregando-se como bichos, lambendo-se como bichos; descontrolados, entregues a uma animalidade de fluídos corporais, para aqueles dois pouco importaria que não se conheciam - tanto melhor assim, o anonimato permitiria todas as obscenidades. Foderiam com uma intensidade primitiva, ofegantes e malcheirosos após um dia de trabalho, e para S. seria algo realmente fantástico aquela mulher gemendo embaixo dele e pedindo mais, pedindo mais para um estranho qualquer que teve a ousadia de segui-la e propor sexo com palavras completamente vulgares, e que após uma conversa vazia se apresentou dizendo seu nome, nome que ela já tinha esquecido e isso não fazia mais a mínima importância agora que S. se espalhava dentro dela de uma forma quente, densa e viscosa.


Mas nada disso aconteceu a não ser na imaginativa mente de S. Ele continuou seguindo em frente, e a ruiva também. Ficará no leitor a dúvida se o olhar dela guardava algo de mundano ou se os pensamentos de S. afinal são produtos de uma mente acostumada a ver filmes da Buttman. Não importa discutirmos isso: dados menos de dez passos, S. não mais se lembrava da ruiva. É que a capacidade de encontrar flertes onde não tem possui um sistema de defesa contra as decepções, que faz com que o pretensioso conquistador se esqueça de todas as suas fantasiosas quase-conquistas tão logo elas se transformem no que sempre foram - isto é, nada. Salvam-se assim de tristezas e desilusões por todas as mulheres perdidas ao longo da vida, mulheres que são apenas frações de pensamentos subconscientes e das quais não guardam a menor porção de lembrança (o necessitado é, antes de tudo, um inescrupuloso).


Chegou ao Parque Trianon, lugar onde sempre encontramos casais sentados nos bancos trocando carinhos, beijando-se ao lado de árvores centenárias, testemunhas mudas de afagos libidinosos, de confissões dolorosas, de promessas de amor eterno que o tempo tratou de provar que eram falsas. Talvez pelas condições cruelmente impostas a S. (um mês, doze dias, blá blá blá) a ele parecia que os casais ali se beijando estavam especialmente atrevidos naquela noite; vítimas dos calores tropicais, seus beijos pareciam arder de tanta volúpia; e eram tantos casais ali se beijando que na imaginação de S. o Parque Trianon estava prestes a ser palco de uma orgia onde a qualquer momento centenas de Cupidos gorduchos lançariam suas flechas naqueles amantes indecentes. Inflamadas até os ossos com os mitológicos dardos as mulheres empurrariam seus homens para a grama; já completamente loucas de desejo arrancariam as próprias roupas, despindo-se com a sensualidade das feras; fariam o mesmo com seus machos, distribuindo calorosos beijos ao longo dos másculos corpos com generosidade; e no gramado do Parque Trianon veríamos mulheres nuas movimentando-se ritmicamente sobre corpos de homens deitados; mãos hábeis e deslizantes percorreriam depravadamente cada contorno de seio, cada pedaço daquelas bundas macias que, movimentando-se com delícia, pareciam implorar por novos tapas; e os gemidos seriam muitos, de todos os tipos, seriam ofegantes e maravilhosos, compondo uma libidinosa orquestra de sons sexuais, orquestra que faria os Cupidos gargalharem de satisfação e lançarem mais e mais flechas em todas as direções até que aquelas bacantes modernas, suadas e cansadas, saciassem a sede de suas bocas secas com os sucos revigorantes de seus machos agradecidos.

S. continuou seu caminho deixando lá nos bancos do Parque Trianon os enamorados, sem saber se haveria orgia ou não. Andou um pouco mais e chegou ao edifício Kanavikós. Na suntuosa fachada desse prédio, que abriga o principal jornal da cidade, há uma escadaria que muitos usufruem para descansar. Era exatamente esse o ponto da avenida que S. mais gostava. Sempre era possível observar dali a movimentação dos muitos bares, livrarias e cafés das redondezas, como também acompanhar discretamente as mulheres que por ali passavam. Sentou lá pela altura do décimo degrau da larga escadaria, acendeu um cigarro e começou o exercício mental que sempre fazia quando estava por ali: escolher aleatoriamente uma garota que passava e descobrir de que forma ela mais gostava de foder. Morena alta de saia curta e blusa branca, de quatro; loira de cabelo curto e cara de sono, de lado; ninfetinha de calça apertada e regata do Ramones, topa tudo; cabeluda com shorts azul e salto alto, por cima; gordelícia de cabelo curto e bunda grande, dá o cú na primeira – era mais ou menos assim que a lista funcionava. Terminou o cigarro, fez uma rápida retrospectiva da lista recém elaborada e continuou o caminho pensando que, entre todas as garotas da lista, a gordelícia merecia o topo com louvor, não tanto pelo fato de dar o cú de primeira, vantagem competitiva que quase todas as gordelícias oferecem segundo as sofisticadas teorias sexuais de S., mas pelas formas a la Botticelli com suculentas e mordiscáveis curvas, aparato perfeito para que as mãos se encaixassem, para que a boca se demorasse em chupadas doloridas e para outras finalidades que não elencaremos aqui, posto que a lista de S. já é demasiado explícita (o necessitado é, antes de tudo, um inconveniente).

Cruzou a esquina com a avenida Desperado, ponto onde começava a parte mais bonita da avenida Paulista: ali estavam as cervejarias Taavesh e Rio Grande, as livrarias Martins Fontes e La Hermosa, as lojas onde S. preferia comprar suas roupas, o teatro Cia do Absurdo, a Casa das Rosas, a Praça Lins, os antiquários, etc. Era nessa região que em geral S. fazia o desjejum aos domingos, gozando da calma tranqüilidade dos cafés e das muitas árvores que ofereciam àquele ponto da avenida uma serenidade que dificilmente se encontrava na Grande Cidade.

Mas naquele momento não havia nada da calma tranqüilidade das manhãs dominicais: ainda era sexta-feira, uma quente e abafadamente lasciva noite de sexta-feira (um mês, doze dias, deixemos-o-diabo-em-paz). Taavesh e Rio Grande com todas as mesas lotadas de fiéis trabalhadores buscando o relaxamento merecido após cinco dias de escravidão assalariada. Bebendo, gesticulando e rindo em uma confusa melodia de happy hour, homens e mulheres formavam grupos de configurações bem variadas e nem é preciso dizer que S. prestava muito mais atenção nas mesas onde só havia mulheres: estavam rindo e certamente falando indecências, certamente contando para as amigas como que foi com fulano, e todas se deliciando naquela espécie de irmandade que o ato de beber oferece quando feito em conjunto. Quais não serão os segredos das conversas entre as fêmeas, das conversas depravadas das fêmeas que em nada devem aos homens em matéria de obscenidades e safadezas. Mas da calçada S. só consegue ver as bocas se mexendo, uma pena não ouvir o que aquelas mulheres dizem (loira de decote, por cima; amiga de cabelo tingido, de quatro; morena magrinha, de quatro também). No fundo é melhor que S. e todos nós sejamos privados destes segredos, que nem são tão segredos assim, mas como gostamos de jogos e ilusões é divertido assim imaginá-los, indizíveis e para sempre ocultos.


S. estava chegando em casa. Passou pela larga ponte que cruzava pelo alto a avenida XXIII e, lá de cima, viu ao longe o Obelisco. A Mãe Terra salpicada de falos que apontam para o céu. Andou um pouco mais e chegou ao entroncamento da Paulista com a rua Vittoria, onde S. morava. Parado no farol, esperando o sinal verde, S. viu do outro lado da rua, perto da entrada do metrô Paraíso, uma obra da prefeitura fazendo um enorme buraco na calçada. Um trabalhador segurava uma britadeira que castigava o solo, em um sobe e desce rápido que não deixou de produzir em S. uma outra analogia, uma outra seqüência de flashes pornográficos que mesclavam fodas de outrora, Buttman e a gordelícia de Botticelli, a ereção veio como um foguete, impossível evitá-la e afinal evitá-la para quê, olhasse para baixo e encontrasse seu pau duro mal encoberto pela calça quem quisesse. O farol ficou verde, atravessou a rua e desta vez não houve trocas de olhares, só um velho vindo no sentido contrário. Olhou de novo o buraco na calçada e cantarolou em pensamentos trechos de uma música (when I dig a hole in the ground, I got erection), e realmente sentiu que estava entrando em apuros, que a aridez do Nordeste estava matando gente às pencas e que a sua seca poderia matá-lo também, no limite transformá-lo em um maníaco (um mês, doze dias, muitas-horas-para-o-diabo-contar), que talvez melhor do que voltar para casa seria voltar para as mesas do Taavesh ou do Rio Grande, sentar em uma mesa, pedir uma Eisenbahn Pale Ale e sorvê-la como se deve, buscar os olhares das fêmeas, torcer para o Cupido ser um gordinho legal e alvejar algumas com suas flechas, e elas então corresponderiam aos olhares de S., motivadas pelas flechas míticas; o sinal do acasalamento estaria dado, o álcool levaria as pernas de S. até a mesa daquela que tivesse o decote mais indecente, mais Eisenbahn Pale Ale, a sexta-feira fervilha o sangue nas mesas do Taavesh e Rio Grande, o pau dele pulsando ao ritmo da horrível música que tocava, entre conversas vazias já estariam próximos o suficiente para S. sentir o perfume dela e fazer os mesmos batidos elogios que sempre funcionam, mais Eisenbahn Pale Ale, mais elogios, mais palavras maliciosas, risadas já altas e tudo seria uma questão de paciência para que os tempos áridos que S. vivia chegassem ao fim.

4.16.2009

Vênus sob o paralelo 23°

Enfim uma mesa vaga, sábado à noite os restaurantes da Grande Cidade invariavelmente ficam assim, repletos e barulhentos. Aqueles que se incomodam com longas esperas e conversas à mesa que mantenham distância dos restaurantes daqui, especialmente do Le Tartine e suas mesas-siamesas-de-tão-próximas, que a M. nunca incomodaram quando nos invernos passados ali vinha jantar com os amigos. Eram animadas conversas entre pratos de sopas borbulhantes, degustadas sem esforços como se estivessem já frias, e depois vinho, e depois gargalhadas e casacos pesados descendo a Consolação sentido centro.
Justificar
Certamente sopa não tomariam, prefeririam pratos mais adequados, mas sobre isso nem M. nem P. pensavam enquanto subiam a estreita escada daquele bistrô francês surrealisticamente implantado nos trópicos, que ocupava discreto um sobradinho antigo em uma rua sem importância. Terminada a escada logo viram a mesa, que ficava aos fundos de uma sala pequena repleta de outras mesas, todas cheias. Mas apesar do barulho e do calor ficaram felizes, pois perceberam a mesa onde jantariam estava ao lado de uma grande janela aberta, uma promessa de um pouco mais de ar e, com sorte, refrescantes brisas.

– A quiche daqui é uma delícia, você vai ver.
– Hum, adoro quiches.

Perderam os olhos no cardápio colorido e então chamaram o garçom. Pedido feito, bastava apenas esperar para saciar a fome. Não demorou muito e logo chegaram as bebidas. Goles que descem vigorosos, sorvidos com paixão, goles de vinho, este veneno de Vênus, que refrescava as gargantas quase secas de M. e P., naquela noite tão somente um casal qualquer de mãos entrelaçadas sobre a toalhinha-toda-detalhes que cobria a rústica mesa. Conversavam já afetados pelo rubor que precede a semi-embriaguez, experimentando a mistura de ardências tropicais com a divina bebida dos Césares. Não era possível saber do que falavam, mas isso não interessa ao leitor, basta saber que da mesma forma que todas as cartas de amor são ridículas [e não seriam cartas de amor se não fossem ridículas] assim também são as conversas dos amantes, e a conversa entre M. e P. não seria nem um pouco diferente de nenhuma outra conversa de namorados que o Le Tartine e seus garçons de sotaque esquisito já foram testemunhas.

As quiches ali são servidas junto com uma salada de rúcula e alface temperada com molho de mostarda e nozes. O neófito, ao ver o prato pela primeira vez, julga-o demasiado pequeno para satisfazer seu apetite. Seja pelos temperos empregados, seja pelo modo de preparação do prato, aquelas aromáticas quiches sempre surpreendem aos desavisados, mesmo os mais famintos, que terminam a última garfada já muito para além de satisfeitos. O prato, embora saborosíssimo, necessita de uma certa dose de esforço para ser consumido até o final. Mas não veja o leitor nisso qualquer espécie de sacrifício: é um esforço que se recompensa a cada nova mordida, verdadeira explosão de sabor e prazer palatal que deixa tanto a Deus quanto a seus anjos profundamente tristes, obrigados a omnipresenciar o pecado da gula pela trilionésima vez, tudo graças aos sibilinos talentos do cuisinier do Le Tartine.

– Gostou?
– Sim, perfeita.
– Quer um pedaço da minha?
– U-hum.

Ele cortou um pedaço de sua quiche de cogumelos e levou o garfo até a boca dela, que abocanhou a fatia vagarosamente, mastigando com olhos semicerrados. Isso causou uma tempestade de pensamentos nada singulares em M., e não é preciso que o leitor seja alertado a respeito de que tipos de pensamentos eram esses, homens em geral são muito previsíveis. Somente é necessário saber que ele gostou da idéia de partilhar os pedaços de sua quiche daquele modo tão próprio dos namorados.

– Quer mais um pedaço?
– Não, obrigada.
– Vamos, deixa eu colocar de novo na sua boca.
– Você tá sendo safado!
– Não, claro que não, quero apenas te dar de comer, só isso.

Um pedaço de quiche não tem absolutamente nenhuma condição erótica, mas a Malícia é capaz de transformar até uma refeição em um torneio de provocações mútuas. E foi assim que P. preferiu se concentrar no próprio prato, com olhos fixos nos olhos de M., e com gestos intensamente femininos cortava os pedaços de sua quiche, para depois passá-los pelo molho de mostarda e nozes da salada, de um lado ao outro, em um movimento ritmado, para subitamente levá-los à boca e mastigá-los decidida, quase feroz.

– Está uma delícia.
– Tô percebendo.

M. enche a sua taça de vinho enquanto fala alguma coisa, não precisamos prestar atenção [as cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas]. Depois pega a taça, a mão enlaçando-a completamente, as regras de etiqueta tão ridículas quanto as cartas dos enamorados repreenderiam este gesto de M., sussurrariam envergonhadas que se deve sempre pegar uma taça pela haste e com a ponta dos dedos, mas ele não daria ouvido a sussurro algum, queria apenas beber tão rapidamente quanto possível, e foi o que fez: a taça levada com delícia aos lábios, o pescoço sustentando a cabeça que se projeta para trás, o veneno de Vênus descendo garganta abaixo, já são ardências romanas que avivam a carne nesta divina bebedeira tropical.

– Quanta sede.
– É só o começo, neném.

Quiches acabadas, pediram a sobremesa. A torta de maçã com sorvete de creme é a suprema opção do restaurante, e seria quase como nunca ter ido lá se M. não fizesse P. prová-la: a torta é servida quente, com generosos pedaços de maçã caramelada, perfeita combinação para um cremoso sorvete-que-derrete, a esta altura Deus e seus anjos já devem ter cansado de chorar as almas perdidas dos clientes do Le Tartine. M. fez questão de, tão logo tenham chegado as deliciosas tortas, levar até a boca de P. um pedaço daquele doce terrível, que soltava fumaças tanto frias quanto quentes, curiosa síntese mal-resolvida.

– Gostou?
– Sim, e quero mais.

O leitor precisa saber: isso foi dito com uma intenção cruel. Só aos homens é possível compreender a vasta dimensão da crueldade de uma mulher dizendo quero mais enquanto passa a língua pelos lábios superiores. E da mesma forma são cruéis as mãos femininas que arrumam os cabelos por nada, são cruéis os atos de se espreguiçar sem estar realmente com preguiça, são cruéis as unhas vermelhas, são cruéis os brincos de argolas enormes e são cruéis muitas coisas que aqui não vou dizer, traição grave aos meus companheiros revelar assim nossas fraquezas. O que resta dizer sobre este jantar é que as cruéis palavras de P. funcionaram como um elemento ativador de todas as potencialidades venusinas do vinho, e de repente não importava mais o infernal calor dos últimos dias, não importava que as mesas estavam todas cheias de pessoas falando sem parar e com suas respirações aumentando ainda mais o calor no Le Tartine, não importavam as quiches nem as tortas de maçã e muito menos saber que só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas: para aqueles dois a única coisa importante era pagar a conta e desesperadamente voltar para casa o mais rápido possível.

2.12.2009

Literatura erótica

Acabei de voltar do Sesc Pinheiros onde ocorreu o primeiro dia do evento "Entrelinhas do corpo: encontros de literatura erótica", que vai até o dia 19/02. A programação completa inclui temas como erotismo nos quadrinhos, rodas de leitura e oficinas de criação literária.
Hoje, no evento de abertura, foram três curtas apresentações, cada uma se detendo sobre um aspecto da literatura erótica produzida aqui no Brasil. Ivan Marques, doutor em literatura pela USP e ex-diretor do programa Entrelinhas da TV Cultura, falou sobre o erotismo na obra de Carlos Drummond de Andrade, que só chegou ao público após sua morte com a publicação póstuma do livro "O amor natural", que reúne poemas de alta densidade erótica, aspecto jamais visto nos outros escritos do poeta mineiro. Estes poemas, aliás, foram deliberadamente ocultados por Drummond durante décadas, segundo Ivan Marques; inclusive, ele declarou na década de 70 que não queria publicá-los, pois não queria que seus poemas fossem confundidos com a onda de pornografia que, como um tsunami, crescia mais e mais no mercado editorial brasileiro.
Fazer uma espécie de arqueologia desta faceta do mercado editorial brasileiro foi tarefa de Gonçalo Junior, jornalista que já tem uma extensa produção editorial, voltada especialmente para o universo das HQs. Mostrando capas de raridades que ele descobriu vasculhando nos corredores empoeirados dos sebos, Gonçalo demonstrou que não só a história dessas publicações ainda não foi devidamente documentada e que, também, as dificuldades para fazê-lo são homéricas: muitos dos livros foram lançados por editoras desconhecidas, outros nem editoras possuiam, e alguns são até mesmo artesanais, com impressões de péssima qualidade e grampeados um a um. Segundo ele, estes livros eram vendidos marginalmente, possivelmente pelas próprias editoras aos interessados, mas desconhece-se como isso ocorria. Há indícios que em clubes privados de nudismo, que floresceram abundantemente na década de 60 e 70, estas publicações também circulavam. Nas livrarias, porém, eram inexistentes. O interessante é imaginar como funcionaria este autêntico mercado negro do desejo.
A vez do Marcelino Freire foi dominada pelo bom humor e pela exibição de uma animação feita para o conto "Homo Erectus", com a voz marcante de Paulo César Pereio. Abaixo, você pode conferir o vídeo, que realmente ficou muito bom, fazendo jus ao formidável texto.

11.15.2007

Caminhos indefinidos



"(...) E você ainda se interessa pelas pessoas? Puxa, isto é mágico. Já vi que cheguei no ponto que não consigo mais amar de forma pura. Quando um sentimento me assalta, eu imediatamente me questiono, é automático, sinto uma espécie de voz interior falando `O que você quer nesta pessoa, de verdade? São os sentimentos dela? As idéias? O corpo? Uma gozada? A possibilidade de dominá-la e fazê-la acreditar que você a ama para, depois da conquista, você rejeitá-la como já fez com tantas? Ora, M., seja sincero, você só ama os seus próprios desejos´. E eu devo concordar com esta voz: eu sou absolutamente egoísta. Até mesmo no sexo, mesmo que eu me preocupe em dar o máximo de prazer para a mulher que está comigo, é porque no fundo me move a suprema vaidade de me considerar uma espécie de deus do amor, capaz de vê-la(s) delirando, e pedindo mais, e eu negando em palavras o que proporciono com gestos. Pois é assim que funciono, que sempre funcionei, mas agora pareço que chego aos últimos estágios de desenvolvimento: eu como um mestre de mim, um déspota, um déspota que quer corações e mentes e corpos, e cuja vontade é insaciável."

"(...) Éramos muito imaturos, mas queríamos mudar tudo dentro de nós, quebrar tabus, criar nossas próprias regras, como se tudo isso estivesse sendo vivido pela primeira vez. Tudo diferente do que estávamos acostumados, diferente do modo que fomos condicionados a lidar com os outros e com nossos sentimentos. Sabe o peso do amor? Era esse peso que queríamos liquidar. E eram muitos sentimentos por muitas horas e ininterruptos. Amor demais. Paixão demais. Ódio demais. Raiva demais. Tristeza demais. Felicidade demais. Liberdade demais. Conversas longas, discussões e consenso. Criamos muito silêncio e caos simultaneamente. Conseguíamos sempre machucar um aos outros sem se ver. Constantemente silenciosamente atacados e atacando. Por ações tão comuns, distraídas. Em três instantes só eu tive tudo com todo mundo ao mesmo tempo. E tudo isso me fez ser cética, imoral, me fez destruir o ciúmes e muitas vezes buscar apenas o desejo. E o que mal existe nisso? Não existe mal. Que mal existe em querer sexo? Ou um corpo? Ou idéias? Precisamos saciar nossos desejos? Com certeza! Somos feitos de desejos. Eles estão dentro de nós e se não sacia-los, alguma hora eles comerão nossas entranhas. "