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9.11.2012

A mercantilização do livro: o "manifesto dos 451"


Livros são um excelente negócio. Por mais tenebrosas que sejam as estatísticas mostrando que o brasileiro lê menos de dois livros por ano, o mercado editorial cresce (ainda que timidamente). Em números absolutos, foram produzidos no ano passado 499.796.286 unidades de livros que correspondem a 58.192 títulos (entre inéditos e reimpressões): uma oferta quase infinita de possibilidades de leituras, que transforma as livrarias em verdadeiros shopping centers, elevando algumas ao pomposo status de atração cultural de algumas cidades - é o caso da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, na capital paulista. 

Amantes de livros, e de literatura em especial, tenderiam a ver esse cenário como positivo. Afinal, melhor ter  essa abundância de livros do que não alguns poucos e mirrados lançamentos. Entretanto, o que estaria nos bastidores dessa opulência editorial, fenômeno que não é restrito ao Brasil? Como a produção de e-books e  e-readers estimula esse crescimento? Que interesses ocultos (perversos?) estão presentes nos preços fabulosos oferecidos pela Amazon? As sociedades estão de fato se beneficiando desses processos? Ou tudo não passa de um sintoma da decadência cada vez mais acelerada, onde a cultura é tão somente mais um aspecto da vida a se degradar?

São questionamentos como esses que motivou a criação do grupo "Les 451", em Paris, que lançou o seu manifesto no último dia 5 de setembro nesse site e assinado por 451 profissionais do mercado livreiro (revisores, editores, escritores, bibliotecários, etc). Entre seus signatários, o filósofo italiano Giorgio Agamben, autor que já tive a oportunidade de ler/comentar alguns textos e que foi um dos motivos a colocar aqui uma tradução do manifesto, publicado de modo inédito em língua portuguesa graças à iniciativa de Bolívar Torres e Juliana Fausto. Fica aqui meu agradecimento a ambos.

Sem mais delongas, o manifesto.

O livro e a armadilha da mercadorização
Nós, o coletivo de 451 profissionais da cadeia de negócios do livro, começamos a nos reunir há algum tempo para discutir a situação presente e futura de nossas atividades. Tomados em uma organização social que separa as tarefas, a partir de um sentimento comum – fundado em experiências diversas – de uma degradação acelerada das maneiras de ler, produzir, compartilhar e vender livros, consideramos que hoje a questão não se limita ao setor, e procuramos soluções coletivas para uma situação social que nos recusamos a aceitar.

A indústria do livro vive em grande parte graças à precariedade que aceitam muitos de seus trabalhadores, seja por necessidade, paixão ou engajamento político. Enquanto estes tentam difundir ideias ou imagens capazes de mudar nossos pontos de vista sobre o mundo, outros têm entendido que o livro é sobretudo uma mercadoria com a qual é possível conseguir lucros substanciais

Sabendo tanto como se apropriar dos grandes princípios de independência ou de democracia cultural quanto praticar a avalanche publicitária, a exploração salarial e a diversidade do monopólio, as Leclerc, Fnac, Amazon, Lagardère e outros grandes grupos financeiros querem nos fazer perder de vista uma das dimensões essenciais do livro: um elo, um encontro.

Enquanto isso, quer se trate de profissionais simbolicamente reconhecidos ou de pequenos serviços indispensáveis à toda cadeia econômica, cultural e social, as profissões ligadas ao livro são desqualificadas e substituídas por operações técnicas nas quais tomar tempo se torna inconcebível.

A indústria do livro não tem de fato necessidade senão de consumidores impulsivos, de networkers de opinião e de outros temporários maleáveis? Muitos de nós se encontram então presos às lógicas do mercado, desprovidos de qualquer pensamento coletivo ou de perspectivas de emancipação social – hoje em dia terrivelmente ausentes do espaço público.

Enfraquecida pelo critério do sucesso, a produção de ensaios, de literatura ou de poesia se empobrece, os recursos de livrarias ou de bibliotecas se esgotam. O valor de um livro se dá em função de seus números de venda e não de seu conteúdo. Não será mais possível ler senão o que é bem-sucedido. Ora, enquanto o CEO da Amazon, Jeff Bezos, declara que “atualmente as únicas pessoas necessárias para a edição são o leitor e o escritor”, certas pessoas continuam a trabalhar com livros, livrarias, gráficas, bibliotecas ou em editoras em escala humana. Apesar de nossa vontade de resistir, nós somos, como a imensa maioria, cercados pela informática, pelas lógicas gerenciais e pelos finais de mês difíceis.

Embarcamos igualmente em uma pseudodemocratização da cultura, que continua a se nivelar por baixo, e se reduzir ao empobrecimento e uniformização das ideias e dos imaginários, para corresponder ao mercado e à sua racionalidade. Atônitos, tentamos nos manter atualizados: nos viramos com os programas, as encomendas on-line, os corretores automáticos, as deslocalizações, a avalanche de novidades rasas, as ameaças dos bancos, a alta dos aluguéis e as digitalizações selvagens.

Todavia, não podemos resolver reduzir o livro e seu conteúdo a um fluxo de informações digitais e clicáveis ad nauseam; o que nós produzimos, compartilhamos e vendemos é antes de tudo um objeto social, político e poético. Mesmo em seu aspecto mais modesto, de divertimento ou de prazer, fazemos questão de que permaneça cercado por seres humanos.  

Rejeitamos claramente o modelo de sociedade que nos está sendo proposto, alguma parte entre a tela e a grande superfície, com seus bip-bips, seus néons e seus fones crepitantes, e que tende a conquistar todas as profissões. Pois, pensando na atualidade das profissões, nós pensamos igualmente em todos que vivem situações similares demais para serem anedóticas.

Dessa maneira, os médicos segmentam seus atos para melhor contabilizar, os trabalhadores se esgotam preenchendo tabelas de avaliação, os carpinteiros já não podem plantar um prego que não seja ordenado por um computador, os pastores são  convocados a equipar suas ovelhas com chips eletrônicos, os mecânicos obedecem às suas ferramentas informatizadas e a mochila eletrônica nas escolas é para daqui a pouco.  

A lista é tão longa que é preciso se agrupar para parar esta máquina cega de progresso. Em vez de esperar a próxima medida europeia de rigor ou o enésimo ataque do ministério da cultura contra a cadeia de profissões do livro, preferimos nos organizar desde já.

Por exemplo, encontrando alternativas, criando cooperativas mútuas de compra, unindo-nos por melhores condições salariais, ou ainda inventando lugares e práticas que convêm melhor à nossa visão de mundo e à sociedade em que desejamos viver.

É justamente porque tomamos a medida do desastre atual que estamos otimistas: tudo está para ser construído. Antes de mais nada, queremos parar de jogar eternamente a culpa uns nos outros e cortar na raiz a resignação e o derrotismo ambientes. Lançamos então um chamado a todos aqueles e todas aquelas que se sentem interessados a se encontrar com o objetivo de compartilhar nossas dificuldades e necessidades, nossos desejos e projetos.  


Versão original em http://les451.noblogs.org/

4.06.2011

Você já deve ter pensado em matar alguém

Se a imaginação é capaz de desenhar as coisas mais atrozes, medonhas e sanguinárias, este nojo repleto de casualidades estúpidas que chamamos Realidade consegue ir muito além, nos apresentando certas coisas que, de tão absurdas, chegamos a duvidar que existam.

Mas não: a Realidade é e sempre será muito pior do que qualquer invenção humana. Por exemplo, a matéria que colocaram ontem no Estadão, Fashion Kids reúne ''socialitezinhas", é de um aspecto tão medonho e tão incrivelmente fora da realidade que duvidamos de sua existência. Comprar um apartamento de 2 milhões de reais, andar de Vectra, saia de R$ 500, viagens à Disney que se tornam polêmica porque -absurdo!- nem todas as crianças da escola foram até lá. Nem que eu tivesse tomando uma dose dupla de LSD teria uma viagem tão delirante.

Contudo não é invenção de algum jornalista: é a Realidade. Isso mesmo, as coisas que acontecem. As coisas que são de verdade.

Gostaria muito de saber o que essas meninas, filhas dessas, hum, nobres senhoras ricas, se tornarão no futuro. O futuro de gente que nasce e é criada em um ambiente de valores puramente materialista, sem nenhuma noção de transcendência, sem nenhuma chance de ir além do que pode ser contabilizado em valores monetários. E não há idealismos em mim para agredir apenas essas burguesas: tenho certeza que a doméstica que lava as calcinhas importadas dessas vadias ricas gostaria de ter os mesmos luxos da patroa; não apenas gostaria como se regozija ao vê-la tão bonita, tão bem cuidada e cheirosa saindo para as compras; deve olhar para os móveis com suspiros, imaginando-se dona de uma casa grande, arejada e com pé direito alto. A guerra de classes cedeu lugar a algo tão baixo que nem é possível chamar o sentimento dessa doméstica de inveja.

Talvez eu esteja sobrevalorizando demais essa manifestação do nosso atual estado de decadência, fruto da da vitória total de Malkuth. A revolta que pode nascer frente a matérias como a do Estadão é, também, uma forma de manifestação daquilo que o pensamento tradicional chamou de "reino da quantidade". Afinal, do que adiantaria exterminar da face da Terra aquelas mulheres e suas filhas quando, na verdade, o que motivou suas existência continua de pé? Nesse sentido, o ato sanguinário configura-se como mero cosmético. Todavia, relembro abaixo algo que escrevi há muito tempo, e que serviu de letra para o Life is a Lie, banda a qual me dediquei alguns anos.


Pensamentos de um assassino serial, comendo
É algo que simplesmente acontece. Tentaram me explicar, contabilizar, enquadrar-me em alguma lei da perversidade humana ou em alguma teoria psicanalítica inútil. Só o que sei é que, de tempos em tempos, surgem pessoas assim como eu, assassinos querendo rasgar o véu da realidade. É só o que sei. Isto é tudo que eu sei. 


Não chore, entenda não é pessoal. Meu espírito é livre , além do Bem e do Mal.
Eu mato frescos de dentes brilhantes e putas burguesas em vestidos elegantes.
Eu mato crianças gorda e saudáveis, sementes de novas elites sanguinárias.
Colunas sociais são o meu cardápio onde busco sedento meus novos pratos.

Para provar e sentir o seu podre sabor

Comentários
Era incontrolável. Tudo tornava-se confuso. Apenas sentia um furor angustiante que precisava ser canalizado pois de outra maneira (tenho certeza) eu enlouqueceria. Veja : nunca quis isso para mim. Apenas fazia sem me importar minimamente com as conseqüências de minhas ações. Tudo era simples, certeiro, matematicamente rápido como um giro de chave na fechadura - tratava-se disso, de abrir portas. Eu nada mais fazia do que abrir portas , mostrando que existem muitas coisas que não querem nos deixar tocar, nem ver, nem sentir. Meu pensamento obstinado não cessava. Conclui então que as pessoas estão insensíveis para tudo que me faz desgraçado. Isto era tudo. Acostumaram seus corpos fracos e mentes infantis a estupidez. Ora, eu não nasci e sofri nesta terra imunda por 23 anos apenas para depois ajoelhar-me frente a qualquer imagem de felicidade e sorrir como um retardado. Não. Isto é desprezível. E então , movido por um vigoroso desejo de vingança, levantei-me deixando de ser fiel a tudo menos a mim mesmo. Não há como moderar meu comportamento : vou nos lugares onde sei que vou encontrar a escória e simplesmente mato quem estiver na minha frente. Não tenho o que esconder de você. Faltam-me motivos para continuar suportando-os. Por que eu não deveria cravar uma faca neles ? Para mim, é como se estivessem mortos. E não se tira vida de cadáveres. Eu estava apenas os enviando para as sepulturas.

3.06.2010

Novos mitos


Joseph Campbell, em O Poder do Mito, resume a história do Ocidente através de uma fórmula simples: os edifícios mais altos de uma cidade indicam qual é o seu centro dominante -e desse centro emanam os seus valores e mitos.

Na Idade Média, a religião era o grande prisma, o grande ponto de contato entre os indivíduos. A Catedral de Chartres, em França, é o exemplo dado por Campbell. Nos séculos dos príncipes, com o advento das Luzes, os palácios substituíram as catedrais em grandeza e magnitude. O poder político como soberano, consagrado pela fórmula "l´État c´est moi". Na contemporaneidade, são os edifícios que abrigam as grandes corporações que se arremessam como titãs na direção dos céus. Igrejas e prédios governamentais são anões comparados a eles. O paradigma dessa nova configuração arquitetônica de poder: as Torres Gêmeas.

Da espiritualidade para o Nada econômico, temos um percurso imenso e cujos detalhes não me permito aqui listar. Há livros inúmeros que tratam disso. Inquieta-me ainda -e esse post é uma inquietação, uma pergunta feita com sofrimento- as palavras de Campbell, que diz que os mitos são como sonhos: não é possível prever quais serão os próximos. Que assim seja: abraço essa impossibilidade como uma verdade revelada. Todavia, insisto em premonições sem brilho algum, em possíveis configurações de como, enfim, serão esses mitos que ainda não existem, ou talvez existam mas não cristalizados: as novas mitologias serão cunhadas com heróis carregando cifrões em suas frontes preocupadíssimas com as variações na Bolsa. Deselegantes, vestirão seus ternos feitos em série e carregarão não mais espadas e pesados escudos, mas celulares e notebooks cheios de arquivos inúteis. Sua jornada espiritual será amparada por receitas de tarja preta, seus ensinamentos compartimentados em PDFs de MBA, sua iluminação um nada feito por frases polidas colhidas de livros de auto-ajuda. Serão heróis estúpidos, orgulhosamente estúpidos, mas julgarão a si mesmos como homens a frente de seu tempo. Experientes em produzir ilusões, serão ainda melhores em consumi-las: praticamente todo o tempo de suas vidas será dedicado a apreciar prazeres irreais. Inconscientes de que são parte do mundo, passarão os dias em um hedonismo insaciável. A vida será vista como um passeio por um parque de diversões, as noites só terão sentido se forem dedicadas ao riso e risíveis serão aqueles que se preocupam com qualquer coisa que esteja além do baixo ventre. Anatematizados pelos heróis modernos todos aqueles que se esgueiram na noite da Dúvida e do Erro, bem aventurados os que se apegam a qualquer Certeza, a qualquer Convicção -pois o apegar-se é o primeiro traço desse tipo novo de herói, e principalmente se esse apego tiver como objeto coisas sólidas e embrutecidas.