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1.03.2008

O sonho de uma mulher desesperada

Deitada sobre colchas amarrotadas ela dorme. O quarto é o de sempre, o quarto dos brinquedos de outrora, o quarto com as cores do aconchego familiar, o universal quarto que nos sempre vem à mente quando sentimos o cheiro de lençóis limpos. E tudo nele é feminino e delicado, permita o leitor que eu dê um palpite e chame aquele quarto de mimoso, o adjetivo cabe perfeitamente, basta percorrer com o olhar de uma parede até a outra para perceber isso: os móveis leves, de cores suaves, aqui um detalhe de rosa, ali um ursinho, logo embaixo a bonequinha preferida, agora deixada aos cuidados do pó e da Memória, uma caixinha para os brincos, ao lado pulseiras, uma negra e brilhante corrente de Swarovski, perfumes em frascos detalhados, uns livros descansando em uma prateleira pequena, no lado oposto o guarda-roupa, ali estão roupas de todas as fases, há até oculto os sapatinhos dela ainda um bebê de meses, bonita lembrança do passado, mais ainda se pensarmos o quão pequenos eram os pezinhos de S., não que hoje ainda não sejam, mas mesmo assim a comparação entre o ontem e o agora causa um certo espanto.

(“Saiba você pois que há mulheres que conseguem ser maravilhosas até mesmo quando um certo desleixo as afeta. Elas conseguem provocar suspiros de paixão não pelo salto alto ou pela ousadia de um decote, mas principalmente pela insolência de um cabelo despenteado, pelo olhar de nojo endereçado a tudo, pela petulância ao acender um cigarro e baforar a fumaça como quem diz ‘eu simplesmente não suporto nenhum de vocês’. Todo homem se depara com uma mulher dessas, e acredite, elas sabem como proporcionar muita diversão.”)

E delicado não é apenas o quarto, mas também a maneira sem cuidados dela ali deitar Olhando-a assim, enquanto ela dorme, com o corpo desajeitado e semicoberto por fino lençol, percebe-se o seu sono tranqüilo, a frieza de um sono que não se atormenta por nada – ou melhor, a aparência de um sono que não se atormenta por nada. Pois se possível fosse vasculhar os sonhos de outrem, a S. atribuiríamos um sono cheio de tormentos, um sono que não descansa o corpo mas o mutila por mil imagens que se repetem, por mil vibrações oníricas que o abalam.

(“A minha eu conheci faz alguns anos. Pois bem: tudo que ela me trouxe, no dia em que foi embora a desgraçada levou em dobro. Eu podia ter lá meus problemas, todo mundo tem, mas sério, eu ainda conseguia manter uma certa dignidade; sempre achei os românticos idiotas, sempre achei os que sofriam por amor dignos de pena, mas graças a ela eu me vi perdido. E eu acho que para sempre.”)

Ela suspira mais fundo, lentamente começa a se movimentar na cama, até que se vira por completo e deita de bruços, todo o movimento realizado como se cada músculo pesasse toneladas, e mesmo assim é inegável a harmonia toda deste balé de adormecida. Mas neste momento, onde o mexer-se na cama parece fruto da arte, não há nada de equilíbrio nos sonhos de S.: ela está correndo, parece ser em uma floresta, está nua, suja e apavorada, há pessoas acampadas em barracas próximas, com horrendas deformidades, ela grita por socorro mas ninguém a ajuda, apenas a observam e ficam a rir, e ela continua a correr. Qual o significado deste sonho, S. perguntou a si quando o teve pela primeira vez, não encontrou resposta e continuou sonhando. São quatro meses e as mesmas imagens se repetem, existe mensagens escondidas nele, uma amiga com tendências esotéricas sentenciou, mas isso não foi o bastante para que o oculto sentido se manifestasse e muito menos para que, na noite seguinte, o tormento de S. não se repetisse.

(“Sabe o que eu desejei então? Que a maldita jamais tivesse paz. Isso mesmo. Paz, você nunca terá, eu disse. Na cara dela, no dia que ela foi embora. Falei isso e ri, ri de satisfação, ri inebriado de vingança, entorpecido de vingança. Nunca mais a vi, desde então. Melhor assim.”)

Agora ela não se mexe, mas solta um gemido. Nas pessoas que dormem, um gemido significa desejo de despertar motivado pelo medo daquilo que se sonha. S. sente medo, mas não consegue acordar, e segue correndo desesperada em seu sonho, ainda na floresta, mas agora passando no meio das barracas, que se multiplicaram, e os aleijados mal-cheirosos riem ainda mais alto, e para onde quer que ela olhe só há floresta e aleijados que riem sem parar, e S. geme ainda mais alto, principalmente quando percebe que as centenas de aleijados que a cercam têm o mesmo rosto, rosto de um homem que ela não consegue distinguir bem, mas que lhe é familiar, no mundo dos sonhos não há limites precisos para nada, e podemos desconfiar de S. quanto a esta familiaridade, já que mesmo acordado cometemos equívocos e tomamos por x o que na verdade é y. De qualquer modo, a impressão dos rostos iguais é profunda o suficiente para que os gemidos fiquem longos, doloridos. Estranho que gemidos ocorram tanto em momentos de medo e dor quanto de prazer, isso faz supor que até mesmo as imagens horríveis que S. suporta sejam no fundo motivos de delícia, mesmo que inconfessáveis. A cabecinha se agita um pouco, como se quisesse enfim se levantar e despertar, mas isso ainda não ocorre e tudo que vemos é um novo movimento do que chamamos logo antes de balé, já não há nada da graça de outrora, mas um alvoroçado mudar de posição, neste ponto a delicadeza de S. diminui e fica presente a mulher-voraz, a mulher que no auge do clímax grita e se movimenta em espasmos, não que S. esteja tendo um orgasmo, mas as pernas se movimentando rápido sugerem o gozo.

(“Hoje eu acho que deveria ter ido além. Sabe, uns tapas bem dados pra ela saber o que deve e o que não deve fazer com um homem que a ama. Mas eu só a peguei pelo braço e dei uns belos chacoalhões, maldizendo cada segundo da vida dela. Talvez dar os tapas não mudasse nada, ela iria embora uma hora ou outra mesmo, mas eu ficaria muito mais satisfeito. Só sei que, quando a agarrei e gritei, eu pude ver o medo que ela tinha de mim. Só aí eu me dei conta que já não havia mais nenhum amor nela, que nenhum esforço de reconquista seria possível. O melhor era deixá-la ir, já que na verdade há muito tempo ela não estava mais perto de mim.”)

No sonho, ela continua correndo, e há milhares de aleijados sufocando-a, ela pula por cima deles, dos que se arrastam, mas há outros que sustentados por pernas ossificadas se esfregam nela, e riem sem parar, ela cai e levanta, mãos tentam segurá-la, nem as lágrimas comovem os atrevidos, na verdade é isso que os deve excitar. Um dos monstros a pega pelo braço, arrasta-a para perto do rosto contorcido e grita, S. então finalmente distingue a face tão familiar, ela não pode acreditar no que enfim vê, e seu choro é intenso e desesperado, as mãozinhas agarram os lençóis, puxam-no para si, já está com as costas empapadas de suor, e tão presente é o medo que de seus olhos vemos escorrer lágrimas, balbucia algumas palavras, mas não é possível entender nada, entrecortada que estava a fala pelo gemido e pelo sono. Logo em seguida ela desperta, repletos de lágrimas os olhos, o choro que ainda não terminou, a expressão de confusão e medo nada se assemelha ao delicado semblante de antes. Já sabia que sonharia aquilo tudo novamente, exatamente igual, no dia seguinte. E a surpresa de reconhecer o rosto dele naquelas faces e corpos abomináveis a tomava por completo e produzia uma sensação desagradável. Pois era estranho logo ele assim surgir, como parte deste pesadelo tão incomum, e ao mesmo tempo tão real, mesmo que absolutamente improvável. Não conseguiu voltar a dormir e chegou a temer que não voltasse nunca mais.

6.08.2007

As coisas que os amantes dizem


E no sonoro toque do celular de M. existia, desde a viagem, algo que arremessava aquele homem na tensão de uma alegria quase indecente. Sim, pois agora bastava o celular tocar para que os olhos de M. se abrissem mais que tudo, retinas feitas de expectativa, a mirar o minúsculo aparelho - e se ali encontrasse o número que sempre esperava, M. chegava perto daquela tola felicidade que todos sentimos na infância e que os anos acabam por tornar apenas uma lembrança.

Tudo isso soa ridículo. Mas assim são todas as histórias dos casais separados, elas só são belas para quem as vive, os olhos que de fora olham apenas podem julgar estes excessos de sentimentalismo como tolice de folhetim, peço licença para lembrar desta bonita palavra, tolice de folhetim, hoje não existem mais folhetins, temos ao nosso lado as novelas das oito, e das sete, e das seis, e outras que passam bem tarde, e tanta repetição de histórias perfumadas de enamorados, e tantas contas para pagar, e tantas Paulistas e Farias Limas paradas, e tantos metrôs infectados de gente que só lembramos de afetos quando topamos com anúncios de dia dos namorados, eis aí um efeito curioso da propaganda, até mesmo os mais truculentos mandam flores para suas companheiras nos 12 de junho, e talvez ensaiem alguma espécie de carinho naquela face agradecida, um leve e sem jeito roçar de dedos na bochecha, gesto que M. fez na face dela antes da despedida fatal, ela talvez não se lembre mas para M. aquele foi o último toque, o último sentir perto aquela presença já tão distante, e preservava aquela migalha de tempo com o cuidado e respeito que só merecem as divindades.

Será uma separação definitiva - assim M. dizia de si para si, como uma afirmação, será para sempre, e às vezes a afirmação era repetida como pergunta, será uma separação definitiva, incrível como a voz pode produzir a certeza e a dúvida usando as mesmas palavras. Para M. oscilar entre as duas era mais que um inferno, afinal S. fora para muito longe, não sei quando, e nem se volto, ela disse. Se M. pudesse a trancaria em seu quarto para nunca mais saírem de lá, já tinha falado disso certa vez, ela tomara como uma brincadeira, mas agora M. sentiu uma fisgadinha de arrependimento, deveria tê-la apenas raptado, maníaco, louco, todos diriam, mas livre da incerteza. Mas nem ele mesmo levava a sério este plano, o que mais admirava em S. logo após as curvas e o sabor semidemoníacos de seu corpo era a liberdade de espírito, o desejo de alçar vôos longe da terra natal e no distante além fazer uma nova vida. Incentivara e apoiara cada centímetro daquela viagem, foram até juntos comprar as malas, duas malas grandes e cheias de insolência, levarei S. para longe de você, pareciam dizer. Juntos eles colocaram nas abusadas malas blusas, camisetas e calças, dobradas uma por uma, entre conversas que nunca terminavam, não posso esquecer minha maquiagem, S. sempre tão preocupada com miudezas. Ele quis dizer coisas bonitas, ir além daquelas bobagens todas que os namorados se falam quando estão sós e nus estendidos e suados na cama, mas apenas repetiu as bobagens mais repetidas e bobas, e até sentiu vergonha de não saber versos, vergonha deveria ter sentido de dizer em sussurros o que todos os casais sempre dizem.

Egoísmo sem fim seria se colocasse moleza nos gestos, ou se distante ouvisse os medos de S. perante a viagem, M. queria era que tudo desse certo e no fim foi isso que aconteceu. Tanto que quando aquele coração de mulher tremia na incerteza, M. também quebrava completamente, mas arremessava a sua voz como pura confiança, a custo da morte do pessimista que vivia lá em seu íntimo. Sim, era uma mentira, algum mais apressado diria, mas ele nunca inventara facilidades e paisagens cor-de-rosa, só queria preparar a fúria que S. para ele sempre teve, e que jazia adormecida, apenas a esperar os desafios que a vida ingratamente distribui para despertar. Assim no aeroporto a abraçara mais forte do que jamais tinha abraçado e entre despedidas disse "Força!", era uma palavra horrível de se dizer - dissesse eu te amo, ou te adoro, morrerei de saudades, mas não força, alegaria um poeta da pieguice, mas para M. nenhuma palavra outra valeria a pena ser dita, queria ver S. voar ainda mais alto, mesmo que para longe de sua vista, mesmo que nunca mais possa cingi-la pela cintura e levantá-la e assim ir caminhando para o quarto, para onde você tá me levando, ela sempre perguntava rindo com sabor de malícia. Dizer força assim, em uma despedida que não se quer, onde dois que eram um são feitos dois novamente e jogados para longe um do outro, era para S. algo mesmo incompreensível, mas nas primeiras dificuldades no novo cotidiano ela soube, repentinamente, tudo o que M. quis significar quando pronunciou aquela palavra esquisita, e achou que seria bom tê-lo por perto novamente, senti-lo quente e com uma intensidade quase violenta, S. chegou a suspirar ao pensar nisso, e desejou aquelas longas conversas, aquele adormecer juntos sem a pressa de um vôo, apenas perder-se entre cobertores que cheiram sono, e quis então ela e M. livres, absolutamente livres, distantes da crueldade das grandes partidas, de toques de celular que amedrontam os corações, de qualquer coisa que faça em pedaços aqueles dias que não saem da sua memória e que jamais deveriam acabar.

4.09.2007

Escolhas

Em um minuto, S. precisava tomar uma grande decisão. Pouco tempo para muita responsabilidade. Afinal, quase como o destino de seu coração o que estava sendo decidido: precisava escolher entre o cheiro de um perfume que lhe causava as mais fortes ereções ou o prazer de tórridas aventuras sexuais nas suas tardes de vagabundagem.

Era uma decisão difícil. A primeira tinha xx anos, a segunda yy. Era uma diferença banal, mas significativa para S., que beirava os 30 e estava em busca de alguém que pudesse, quem sabe, regar com ele as flores de seu jardim no futuro vetusto. Ele adorava esta imagem, regar com juntos as flores de seu jardim, leu isso em Voltaire e achou lindo, e a imagem dele com brancos cabelos, alguns netos e um jardim era coroada pela presença da esposa, igualmente de cabelos brancos, junto com ele no cuidados de crisântemos e papoulas.

Mas tudo poderia ser apenas sexo, tanto com uma ou com outra. Pegou o telefone da primeira, pegou o da segunda, somou números, procurou combinações, tentando achar algum indício cabalístico de quinta categoria. Explicar número de telefone pela cabala, era só o que faltava, realmente S. precisava de ajuda, ou ao menos de um pouco mais de canalhice, ficava com uma hoje e a outra amanhã, elas jamais saberiam, bastaria levá-las para lugares diferentes. Lembrou dos seios de T., logo em seguida da bunda de M., comparou-as, bela bunda, belas tetas, seria bem melhor se S. fosse algum tipo de deus que pudesse leva a bunda de uma pro corpo com as tetas da outra. Por um momento este pensamento o absorveu, nem deu tempo de dar-se conta do absurdo no qual se metera, e logo sacou os papéis de telefone de novo e ficou pensando para qual delas ligar.

Não deu tempo: o celular tocou. Olhou o visor, era uma garota de tempos atrás. Que estranho ela ligar assim, mas alegrou-se, ela era um avião, S. adorava gírias antigas. A conversa fluiu imbecil como todas as conversas entre pessoas que há tempos não se vêem, saudades, vamos sair?, eu te ligo, a gente combina, e assim ficou acertado que S. ligaria para ela na sexta, iriam num bar para matar saudades, certamente ela queria mesmo era o velho vai-e-volta acelerado, mulheres também são filhas de deus.

Então S. viu os telefones em sua mão, olhou bem para cada um deles, xx anos em um, yy anos no outro, em uma aquela vida de delícias sentimentais, na outra uma ninfeta tarada na qual era difícil confiar - anotou ambos na agenda do celular, acendeu um cigarro e foi até a janela. Não ligaria para nenhuma das duas, estava decidido, disse baixinho para si mesmo. Tentava levar o pensamento para longe daquela confusão de nomes e seios fartos, para longe daqueles nomes, para longe daquelas vozes femininas cheias de veneno. E por mais que tentasse apaziguar seus pensamentos, S. olhava a cidade com a estranha sensação de que estava perdendo a mulher de sua vida para sempre.

9.26.2006

Diálogo

- Espero que você realmente tenha algo importante pra me dizer...

- Eu ainda não abri minha boca... apenas deixe seus julgamentos para depois, me faça este favor.

- Sim, ok, mas veja, é difícil, quantos anos, diga-me, faz anos que você faz isso comigo?

- Não, não faz tanto tempo assim.

- Eu pensei que fossemos amigos.

- E somos.

- Não vejo como isso é possível. Até onde sei, entre amigos impera a sinceridade.

- Ora, você nem ao menos demonstrava um real interesse por ela. Eu via você sempre animado, saindo, bebendo e chegando cambaleante todas as noites. O telefone sempre tocava a noite, eram vozes femininas, eram casos, eram desejos... o que você queria que eu pensasse? Que tudo era brincadeira? Que no fundo você gostava dela e nutria esperanças de amor, de algo sério? Ora vamos. Nem o mais crente dos homens, o mais crédulo ser deste universo, ao sentir o aroma etílico de suas roupas, nem mesmo este ser acreditaria que em seu coração existia algum sentimento por ela.

- Sim, suas palavras são interessantes, e até penso agora que minhas atitudes estão bem distantes do usual de um coração apaixonado. Minhas ações, reprováveis, nojentas, viciosas, não importa, elas todas agora deixam de ser o que eram e tornam-se, em sua retórica, apenas argumentos. Sim, argumentos, álibis para que você encontre uma justificativa para sua traição. Ora vejamos, não é exatamente isso? Todos os meus passos são apenas elementos que justificam os seus passos. Todas as minhas faltas tornam a sua falta mais amena. No fndo, o que todos buscam é isso: erros nos outros para que os próprios se tornem mais suportáveis. Chamam a isso de aprendizado. Eu prefiro apenas enxergar um ritual humano tão tolo como qualquer outro - o que não o torna menos repugnante e, para mim, doloroso. Pois por mais que você tente não acreditar e busque em cada ação minha um indício de desprendimento, eu realmente gostava dela. Era um sentimento sincero, cheio de expectativas, não digo que existia amor, mas era algo bom e que me confortou até. Tudo o mais, as aventuras, os casos furtivos, o que era tudo aquilo? Apenas um passa-tempo prazeroso, e nem sequer uma gota de sentimento, de doce poesia.

- Talvez eu tenha cruzado uma linha que não deveria... mas você é como eu, um homem, e que deve responder a certas situações como um homem. E assim como eu, você sabe que o desejo fervilha, que os caprichos de Vênus curvam até as estátuas, e não há como ser indiferente aos caprichos da Natureza. Você sabe o quão ela é desejável; e uma mulher assim, você acha mesmo justo que seja dádiva de um homem só?

- Eu já sei aonde este discurso libertino pretende me levar, seu canalha. A Natureza escraviza a tudo com suas vontades e é essa escravidão indecente que torna tudo tão imundo nesta agonia de vida. Sim, pois é a Natureza que faz sucumbir até mesmo paredes de grosso metal. Veja como estamos agora. A confiança, o trabalho de anos de construção, agora é apenas um cisco, um empecialho, um nada frente ao Universo. Desigualdade absoluta, entre nós e a Natureza! Graças a ela, nada vale, nada importa, tudo é vão, falido e futil. Reina absoluto o acaso, o caos, o capricho, o desejo, a voracidade e a violência de uma Vontade terrível, Vontade de rosto multiforme e de astúcia que faria inveja a Ulisses. E agora, vejo você em minha frente, e não há sinceridade alguma em suas palavras (ou talvez haja justamente sinceridade em demasia), há apenas acasos, suposições e, como sempre, justificativas. Ah, viveríamos mais se não tivéssemos que nos justificar a cada minuto. Agora, ela é sua, fique com ela, desfrute-a como quiser, pois a mim, apenas me recolho desta história; com mágoas, sim, mas talvez mais sereno e menos sorridente para futuras brincadeiras.

9.18.2006

Viagens


















São longas viagens de ônibus entre a rotina marmórea do trabalho até os sufocos reclusos de minha casa. Um trajeto que, em dias sem trânsito, não demoraria meros vinte minutos, transforma-se em uma epopéia que se arrasta vagarosa, verso após verso, por quase uma hora.

A imagem é equivocada. Epopéias têm heroísmo, vigor, um halo que sobrevive aos séculos – mesmo que nosso intenso gosto moderno boceje sobre os feitos de um Aquiles. O meu trajeto diário é mais modesto. Ele só durará a exata medida da paciência do chefe em tolerar meus atrasos. Quando ele cansar, a epopéia termina. Sem brilho, sem catarse ou reconhecimentos banhados em sangue. Apenas um carimbo na carteira, filas no RH e papeladas junto ao INSS.

Mas ainda é cedo para isso acontecer. É até preferível que eu demore um pouco mais nesse trabalho. Ficar em casa seria muito pior. Um casamento em crise somou-se a marretadas de uma nova obra. Um prédio luxuoso nasce ao lado, e a melodia das batidas quase marciais dá o tom para discussões infinitas, cobranças e lágrimas de mulher. Eu seguro as minhas pensando o quão horrível é esse barulho, o quão detestável é viver em apartamentos e o quanto seria agradável ter futuras vizinhas belas, disponíveis e que não chorem ao descobrirem que os romances acabam.

Nestas viagens diárias de ônibus, por vezes a Fortuna me brinda com um gracejo sincero e me concede um lugar para sentar e observar o mundo através da janela. A paisagem obviamente não é agradável e quase sempre a vontade que tenho é de simplesmente quebrar o vidro com murros de dor. Mas de qualquer forma é uma janela que emoldura uma paisagem, e mesmo a decadência tem seu charme. E procuro com olhos ávidos um sorriso, um gesto, uma frase pichada no sétimo andar, qualquer coisa que me faça pensar e preencher o trajeto, talvez ali encontrar um motivo para uma nova poesia ou simplesmente um comentário sarcástico; e sempre encontro um curioso elemento perdido no oceano de pessoas (uma briga entre casais, um velho andando assustado entre os carros, mendigos resmungando e rindo do tolo espetáculo do rush) que me faz pensar que eu passei em um ônibus lotado no exato momento em que aquilo acontecia, e que ninguém mais viu aquilo, e que talvez Deus quisesse que eu visse aquele acontecimento, e que nada mais era que um sinal da cólera divina brincando comigo, divertindo-se às custas do meu pensamento inútil sobre a inutilidade geral das coisas humanas.

Desisto de olhar pela janela e começo a prestar atenção nas vozes das pessoas. Existe algo de estúpido nas conversas de ônibus que me cativa ao infinito. Não paguei as contas ainda, Esperei o resultado da loto e nada, Você viu o jogo ontem, Minha mãe doente, Está um dia frio, Não entendo, Espera que em casa eu te ligo, Dá licença por favor, Um amigo me disse que, Tô cansada, Pode sentar eu desço no próximo - névoas de vozes, intensas verbalizações de futilidades vazias, cada qual brigando pela universalidade de suas queixas, como se o mundo dependesse daquelas dores, daqueles problemas. E após algumas viagens sempre no ônibus do mesmo horário, você reconhece a oratória típica de cada um dos falantes. O prolixo, o astuto, o cínico, o vaidoso, o mentiroso. Você forma tipos, você constrói histórias detalhadas para cada um deles, os amigos que ele visita nos dias de folga, os programas prediletos da TV, se gosta do trabalho que faz... Sim, é pura perda de tempo. Um exercício fútil de falsa criatividade. Mas os romanos escreveram elegias inventando uma vida de prazeres que não existiu e nunca foram criticados por isso. Eu estou apenas brincando com meus pensamentos, eles nunca serão escritos, eles nunca serão publicados; e da mesma forma que surgem, eu os amputo com volúpia e os deixo morrer cruentos assim que avisto na moldura da janela um novo motivo de reflexão.

Mas definitivamente não sou um homem visual. Prefiro sons a cores - o que me torna um desadaptado irremediável ao mundo de hoje. E volto com ouvidos agudos a buscar outras conversas, mais apetitosas que as anteriores, e ver se descubro novas deploráveis formas de existência. Isso me fez desenvolver uma opinião; e apesar do inegável egoísmo que a acompanha (e não é cada opinião particular a representação de um egoísmo?) ela me parece muito verossímil: as pessoas mais falantes pertencem a uma escala inferior. A fala não é expressão do raciocínio - ela atrapalha a organização dos pensamentos. O ordenamento saudável de relações entre neurônios fica comprometido quando abrimos a boca. No grande laboratório das ciências humanas que são as grandes cidades, eu, cientista social autodidata, descobri que o grande mal dos homens era, justamente, falar – e desde então desejo um universo de línguas decepadas e dislexias crônicas.

Um universo de homens mudos! Ah, sair na rua sem precisar dar um bom dia a quem quer que seja! Simplesmente empurrar as pessoas, ao invés de pedir licença! Apenas entrar em uma loja e comprar, sem ouvir torturantes ladainhas dos vendedores! Com dois olhares encontrar a mulher de uma noite sem precisar saber sequer o nome dela, e desmanchar-se num gozo frenético sem ouvir o pedido de um desnecessário segundo encontro! Teríamos menos problemas com certeza. Uma vida com mais tempo para gastarmos com as coisas certas. Eu não temeria chegar em casa todo dia, pois não haveria nenhuma discussão, simplesmente sentaríamos um ao lado do outro e os beijos saudosos seriam seguidos por ávidas carícias. Mas não: o universo é povoado de homens que falam, que insistem em falar nos ônibus lotados, nas casas, nas ruas, em todo lugar; foi graças ao dom da fala que hoje, ao chegar em casa, eu terei mais uma conversa sem fim, que não levará a parte alguma a não ser a gritos, a ameaças e a amontoados de ódio; foi pela fala que um romance começou, e é pela fala que ele se arrasta em um chão de cacos de vidro e faz com que eu prefira ficar eternamente nesse ônibus cheio, que fede a suor e a hálito de dentes mal escovados, ouvindo conversas que não me dizem respeito e vendo pela janela uma vida que não mais me emociona.

9.12.2006

Telefone























O telefone tocou. Sabia: naquele horário ninguém a não ser ela. Somente ela. Julgava que até o som da campainha era diferente (obviamente não acreditaremos nisso, mas o fato é curioso e convém assinalar). Teve cansaço enorme, o monofone ganhava peso infinito, esforço demasiado para mim pensava.

É o segundo toque e, agora, ele tem certeza que é ela (o som da campainha denuncia). Mais mil toneladas somam-se a massa de um telefone multifreqüencial com capacidade de armazenar até dez números para discagem direta, basta pressionar um botão e pronto, a eletrônica faz maravilhas, puta coisa bacana (claro que ele nunca usou esta facilidade). Terceiro toque: talvez ela canse e desligue, talvez sinta que não quero atender, talvez isso, talvez aquilo, talvez... Suposições. Conjecturas. Um telefone pesado e um homem cheio de receios, uma mulher tentando falar com ele – não há eletrônica que os salve.

É necessário fazer algo, mas o quê? Ele poderia simplesmente retirar o fone da tomada e não pensar mais no assunto. Outra opção seria baixar o volume da campainha, aquele som horrível denunciando a existência dela. Até parece que o único som existente é o da campainha do telefone: não há mais sirenes de polícia, não há mais música, repórteres mudos na televisão, carros deslizando no asfalto como se fosse gelo, portas batendo e você nem percebe que um copo caiu no chão e virou caquinhos diminutos de vidro moído – só a campainha do telefone que toca, a campainha fazendo o som dela. Fora isso o silêncio é universal, faminto, impiedoso. Mas e se fosse outra pessoa? Todo esse consumir-se poderia ser em vão. Sim, bem poderia ser algum daqueles amigos que ligam sempre na hora errada. Começou a imaginar uma lista de prováveis nomes. Não pode deixar de sentir-se ridículo. Um homem de vinte e ... anos com medo de atender um telefone. Não havia dificuldade alguma, era só levantar o monofone e dizer alô. Se fosse algum amigo falaria sobre futilidades e após uns quinze minutos de conversa sentiria-se bem. Mas e se fosse realmente ela, como os indícios denunciam (a hora, o som da campainha)? Tudo tão característico. Impossível ser outra pessoa. A dúvida esfumaça-se, a certeza é total, ela grita e o grito é o som do quarto toque da campainha.

Fica gelado de medo. Puro e virginal medo. Criaturas horrendas escondidas debaixo da cama, no escuro, nas teclas engorduradas de um telefone multifreqüencial. Imagina-se atendendo o telefone: faces rubras, a voz rachando na garganta seca, vomitaria um alô qualquer, cheio de farpas e remendos, já visualizando o tédio da conversa.

Alô.

Oi... demorou pra atender... atrapalho, né?

Não, imagina, que isso, pode falar (cordialidade nunca faltou entre eles e assim era ministrada, em doses teatrais).

Apenas queria ouvir sua voz. Saber como você está. Os dias estão tristes. 

É, os meus também...

Sabia que se atendesse teria uma conversa como essa e nada, absolutamente nada, ficaria resolvido completamente. Alimentariam suas mágoas, vampirizariam-se, quem sabe até relembrar dias felizes - fotos bonitas sempre consolam. O telefone monolítico aumentaria de peso, tanta vontade de desligar, adeus, me esqueça, tome três doses de realidade por dia e vá embora, nós não somos mais um só, nós acabamos, passar bem, o próximo por favor: era comum ele imaginar diálogos como estes e prometer a si mesmo falar tudo – mesmo este “tudo” representando uma verdade que ele não queria admitir. Preparava então o discurso final começando com frieza e calculismo, terminando na aspereza e pouca simpatia; a insultava, fazia de meros flashes cotidianos epopéias de rancor; treinava gestos e pausas no discurso para garantir maior dramaticidade; incubava a guerrilha por dias a fio, compunha o texto nos detalhes; mas antes que o levante verborrágico se efetivasse, seu lado protetor eclipsava tais ímpetos, ficava manso, e pensava em poesia.

Quinto toque. Se conversas com ela não representavam a mínima novidade, os adornos feitos com retalhos do cotidiano o aborreciam muito mais (não consigo viver sem você, hoje almocei com o pessoal do trabalho, estou triste e só penso em seus beijos, assistiu ao jornal das oito, volte pra mim eu te amo tanto, greve de ônibus amanhã). Então fingia estar ouvindo: levava a alma para longe daqueles lamentos, respondendo com um sim ou não de acordo com a entonação da voz dela. Agia assim pois temia machucá-la, mas também não era capaz de dar-lhe atenção: já julgava fazer muito emprestando o ouvido e mais do que isso não suportaria. Poderia facilmente fazer aquela mulher muito feliz, a conhecia demais, até sabia os efeitos que cada palavra causava naquele espírito. Pensava neste poder com orgulho e desgosto: tinha nas mãos uma mulher sem dúvida especial, mas da qual já estava cansado. E não tinha forças para, simplesmente, dizer a verdade até o fim – seja lá o que isso significasse. Sempre a enxergou como um vasinho frágil que deveria ser cercado de cuidados e colherinhas na boca. Cobria-a de dengos e meiguices porque não conseguia imaginar outra forma de amar aquele passarinho; quis vê-la alçar vôo, ganhar os céus e, com sorrisos gordos, ir embora para longe dele com suas penugens já bem formadas. Mas só crescia a vontade do passarinho em ficar no ninho, pedindo mais brinquedos e doces que ele não queria mais dar. Então restou ficar ouvindo a campainha tocar, mais confuso do que poderia perceber, procurando uma explicação caída no chão da sua alma em fragmentos.