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5.21.2012

O poço e o sorriso


A vida humana é um poço sem fundo feito de decepções e desencontros. Decepção com os outros e com nós mesmos, desencontros com outros e principalmente com nós mesmos. Buscamos o prazer da companhia alheia apenas porque tememos a solidão - não há o amor, o amor que os poetas cantaram é uma ilusão adocicada que nunca existiu. Em outras palavras, o que nos move para os braços uns dos outros é um desejo de se perpetuar, seja com a insanidade do nascimento, seja com a produção do sentimento de saudade - não importa, o substrato é o mesmo, a vontade de continuar existindo, seja no corpo da criança, seja nos pensamentos de alguém que chora. Vaidade das vaidades, estamos sempre ajoelhados frente a algo que nos deixa em polvorosa, em uma contraditória atitude de contemplação feita de uma matéria inquieta, incessante, até que o nosso olhar encontre um deus diferente, que nos faça sentir tédio de ali estar, e não sem esforço - porque a natureza complexa de nosso íntimo mistura ambos os venenos da agitação e do comodismo - levantamos para ir em direção ao templo de um novo deus que faça a nossa vaidade pulsar em um ritmo mais instigante. Somos isso, um amontoado de paixões cruas que não merece sequer uma lágrima quando enfim deixarmos o universo livre de nossa desnecessária presença. Entretanto, gostamos de acreditar na nossa importância que é nenhuma, nos esforçamos para continuamente provar algo que não somos, até chegar ao nível do mais completo ridículo. É esse o ponto em que me encontro agora, com os olhos bem abertos, com esse sorriso falso mostrando ao mundo a alegria que me exigem, para mostrar aos outros que tudo está bem, não se preocupem, se estou rindo é porque afinal não há nada de errado, que me deixem em paz com meu sorriso, nada peço a não ser o vosso perpétuo e imediato virar de costas para meu sorriso, onde observarei o seu corpo indo para cada vez mais longe de mim e então meu sorriso aumentará, será um enorme e vitorioso sorriso, será quase sincero, e já estarei esquecido do motivo que me fazia sorrir falsamente, serei apenas uma vaga lembrança de um ser que perdeu voluntariamente o contato com o mundo, que junto aos homens encontrou apenas um motivo para sorrir, e esse já se foi há tanto tempo que é risível agora lembrar, mas antes eu o estreitava contra meu peito como a coisa mais preciosa de todas, e então me lembro de que eu dizia ser capaz de matar em seu nome, para defender a beleza daquele amor, e percebo agora que o que me movia não era o enganoso sentimento, mas a impossibilidade de concretizar aquela felicidade sempre colocada no futuro - pois no fundo não quero ser feliz, é carregar comigo o sorriso satisfeito do homem comum, a vazia pretensão de pureza que vive em seus corações, a sensação de pertencimento a um nome de família. Por isso meu sorriso é feito de uma matéria enganosa que ludibria até a mim mesmo e me creio - ilusão das ilusões - o mais feliz de todos os homens. Não é motivo para a mais alta das vergonhas confessar isso diante de todos vocês? [Não, quem me ouve não é ninguém a não ser eu mesmo, mas imagino que tenho um público, que falo com alguém, quando na verdade estou sozinho em meu imundo apartamento, sem comer decentemente, rodeado de incertezas tão estúpidas quanto qualquer outro humano que detesto tão veementemente, imerso em meus delírios de falsa grandeza, desejos que são o testemunho de minha infeliz condição subalterna, desnecessária, tola e vulgar. Vejo a vida como um poço sem poço sem fundo porque estou dentro desse poço, regurgitando maldições que jamais serão ouvidas, rezando a deuses para sempre mortos...]

Nota: o texto acima foi escrito para a imagem que ilustra essa postagem. A autoria da imagem é de Guilherme Henrique Frammer Nahes Alonso, membro do grupo musical Sleepwalkers' Maladies e medalha de prata na Olimpíada de Hemp Tycoon. Alguns rabiscos e efeitos adicionais foram inseridos na imagem original por mim, mas devido ao meu estado semi-entorpecido no momento acabei por estragar algumas partes do texto, que ficaram ilegíveis. A postagem é uma tentativa de resgatar o texto original.

5.09.2010

Mediocridade

A mediocridade me enoja e principalmente aquela que vem de mim.

Fiz um juramento de não mais ser medíocre, mas sei que desde o início ele seria um juramento vazio.

Imerso em minha diminuta mentalidade, repleta de preconceitos (de maus preconceitos, porque há aqueles que são bons) passo os dias nada fazendo a não ser multiplicando meus males, meus sofrimentos, minha nulidade feita de pó, lembranças, arrependimentos e vícios vazios.

Tudo o que aprendi estou lentamente desaprendendo. Como um ciclo, chego na metade de minha vida com vácuos na mente e na alma.

Tudo o que eu deveria fazer está muito bem desenhado na minha frente, como um desenho detalhado e repleto de minúcias. Contudo, esqueço dele, fecho os olhos, arremesso a Grande Obra para um canto qualquer e depois lamento.

Ouço o choro da criança que não tive, anos atrás. Um fantasma abortado, uma existência que eu não suportaria porque a minha, já bastante pesada, ocupa-me 24 horas por dia com inúmeras dores.

Será o choro de um fantasma? Eu acredito neles. Os mortos são mais reais do que muita gente de carne e osso. Reais por sua presença sentimental. E são os sentimentos o que importa. Tudo o mais é invenção, ou problema.

Esse choro, de onde vem, afinal? A vontade é esmagá-lo, a vontade é calar a boca da criança que chora com um murro que esfacela dentes, ossos e transforma aquela linda cabecinha de infante em um amontoado de sangue.

Engula esse choro, criança, engula-o.

11.04.2006

Justificativa

R. estava no banheiro de seu apartamento e escovava os dentes com violência. Eram movimentos rápidos pelos caninos, pelos médios e molares, movimentos furiosos, urgentes; ele cuspia, enchia a boca com água, um bochecho veloz, um pouco mais de água, novas escovadas diretas, vigorosas; os movimentos subiam e desciam, a mão já estava cansada, um olhar para o espelho, mãos apoiadas na velha pia.

- Ainda não.

9.18.2006

Coisas

Este pequeno trecho de "O Ano da Morte de Ricardo Reis", do Saramago, diz mais coisas sobre espelhos... e talvez as palavras do escritor português ajudem a aumentar a significação do espelho no conto "Sílvio". Sim, eu tenho uma fixação pelo tema, e sei que como tantas outras fixações essa não vai morrer assim tão cedo.

"O espelho, este e todos, porque sempre devolve uma aparência, está protegido contra o homem, diante dele não somos mais que estarmos, ou termos estado, como alguém que antes de partir para a guerra de mil novecentos e caatorze se admirou no uniforme que vestia, mais do que a si mesmo se olhou, sem saber que neste espelho não tornará a olhar-se, também é isto a vaidade, o que não tem duração. Assim é o espelho, suporta, mas, podendo ser, rejeita. Ricardo Reis desviou os olhos, muda de lugar, vai, rejeitador ele, ou rejeitado, virar-lhe as costas. Porventura rejeitador porque espelho também."




9.14.2006

Sílvio

Quando mobiliou este apartamento Sílvio não imaginou cores, nem formas, nem nada. Agiu por instinto. Amontoou em caixas seus livros, desmontou o computador, empilhou os cd´s e chamou um amigo para ajudá-lo na mudança. Estava deixando a casa paterna depois de ** anos, rompendo o cordão umbilical de uma vez por todas. Sabia que teria sono e comprou uma cama; lembrou-se das camisetas e calças e trouxe um guarda-roupas; às vezes sentia fome e achou melhor também ter uma geladeira (foi por pouco que não comprou um fogão. Não se trata de esquecimento, pois imaginou que poderia comer tudo frio e viver bem; contudo lembrou-se que gostava muito de pão com mussarela derretida. Sem um fogão estaria privado de seu prato preferido e achou melhor ter um, mesmo a contragosto). Outras pessoas estariam assustadas frente aos desafios de morar sozinho; Sílvio, porém, era um pleno nirvana. Não lhe assustavam as contas, as horas intermináveis em companhia de paredes mudas, a rotina de acordar sozinho e ir dormir sozinho. Sílvio não se importava com nada disso. O seu único tormento era que, custasse quanto custasse, teria que ter um grande espelho e só mudaria para seu novo lar com o espelho devidamente instalado. Pensava que nada pode ser mais incômodo do que uma casa sem espelhos.

Esta idéia surge para nós como um comportamento excêntrico de Sílvio. Podemos até considerá-la ridícula. Mas não é um simples acesso consumista de um jovem que se vê na excitante aventura de morar sozinho e quer mobiliar sua nova casa com ares arrojados. Podemos ver que ele não estava em nenhum momento preocupado com isso. Achou supérfluo até a aquisição de um fogão. E nada pode ser mais usual do que um espelho. Nada há de inovador neles, nem num Sílvio que usava calça jeans velha e assistia corridas de Fórmula 1 pela televisão. Explicar o tormento de Sílvio chamando-o de excêntrico é um erro. Este curioso caso de amor tem outra natureza e - mesmo turvado por muitas nuvens - um olhar no passado talvez possa nos aproximar das razões secretas que o alimentam.

Quando criança Sílvio preferia ficar correndo seus carrinhos pela superfície do espelho do banheiro a misturar-se com outros meninos. Claro que muitíssimas vezes o víamos junto aos demais, correndo como menino, gritando como menino, suando e rindo aos montes como qualquer outro menino. A maior parte do tempo era gasta justamente nessas brincadeiras com seus amiguinhos; como hoje, nada os diferenciava dos demais. Não percebemos absolutamente nenhuma característica bizarra naquele Sílvio correndo atrás de uma bola em companhia de outros meninos. Era feliz quando assim brincava e o era completamente. Mas é impossível negar que suas horas prediletas passavam ali, na frente do espelho.

Os pais observavam intrigados a estranha mania do filhinho sem reprovação nem censura. Não os culpemos. Foram ótimos para Sílvio em tudo. Educaram-no com presteza, amáveis e enérgicos na medida correta. Preferiam ignorar a insólita atitude tanto quanto possível, pois não tinham queixas a respeito do filho, que já passava dos doze anos e crescia como um menino exemplar. Contudo, a estranha paixão não atenuara. Largara os carrinhos e, agora, ficava longas horas se observando no espelho em seu quarto. Se alguém entrasse nestes momentos de contemplação, levantava sem emitir sequer um som e saía. Nunca se irritou em ser interrompido nas suas autocontemplações, mas era claro que ficava aborrecido. Às vezes comia em frente ao espelho também (mas só quando tinha certeza de que não seria interrompido). A mãe um dia sugeriu ao pai que procurassem “alguém entendido” para conversar, expor o caso, saber se era saudável um garoto ficar tanto tempo frente ao espelho. O pai lembrou das notas impecáveis de Sílvio, dos bons amigos que tinha e que ao contrário de muitos meninos da mesma idade, nunca se metera em briga alguma. “É um garoto normal, mas tem lá suas manias, como todo mundo” disse, e gesticulou como dando o assunto por encerrado. Não entendia a preocupação da esposa. Ela ficou mais tranqüila. Sílvio era nota 8,5 em Matemática e lembrar disso a encheu de orgulho. Uma colega de classe de Sílvio era nota 9,5 e foi apontada como destaque na última reunião de pais; esta nova lembrança nem por isso tirou o brilho da nota de seu filhinho. Aos seus olhos não poderia haver aluno melhor em Matemática do que Sílvio. Imaginava um futuro brilhante para o filho, emocionava-se com suas conquistas, um mundo formidável o aguardava. Isso era importante, ter boas notas, falava para si mesma. Os espelhos não importam. Nunca mais tocou no assunto com o marido e nem consigo mesma.

É importante sabermos destes detalhes fugazes da vida de Sílvio. Eles nos mostram que não estamos tratando de um celerado. Em geral causava nas pessoas a impressão de ser um jovem calmo e calado. Alguns julgavam-no sombrio – o que é até comum em pessoas muito quietas e tímidas – mas nunca chamaram Sílvio de “esquisito”. Tinha (poucos) amigos e namorou também. Bebeu nos bares, assistiu aos shows, foi aos cinemas. Uma vida simples, sem mágoas ou ódios. As namoradas gostavam dos ombros largos de Sílvio assim como elogiavam suas pernas fortes. No sexo também teve felizes momentos com suas amantes. Elas apenas queixavam-se de que Sílvio copulava olhando para o espelho o tempo todo. No início a garota julgava ser uma fantasia, mas era incômodo depois de algumas vezes. Queria sentir mais a presença dele e não apenas a de seu membro. Pedia então para que Sílvio a olhasse durante o ato. Ele dizia que era impossível, sem mais nenhuma explicação. No geral esta conversa era seguida de uma discussão entre o casal onde a alma de Sílvio surgia como um mistério impenetrável. Sentia-se ofendido com facilidade e em resposta dava o silêncio. O namoro terminava passados alguns dias. O mais duradouro deles durara três meses. A seu modo, Sílvio lamentava o rompimento e por algumas dessas garotas chegou a sentir verdadeira afeição. Consolava-se em seu quarto olhando para o espelho e tocando-o por vezes, em estado de profunda reflexão.

E agora, no novo lar pobremente mobiliado, Sílvio sentia-se um adulto de verdade. Agora tudo estava em suas mãos. Se chegasse atrasado ao trabalho, se deixasse a luz acesa ao sair de casa, se a comida queimasse etc não existia outro culpado a não ser ele próprio. Morar sozinho implica não só a mudança de endereço (do lar paterno para o apartamento pequeno no caso de Sílvio), mas também a de comportamento e, conseqüentemente, elos mais resistentes nos aprisionando à vida e suas armadilhas. Ganha-se em troca uma liberdade de escopo mais amplo, as delícias de não ter horário para chegar em casa, de não prestar contas a mais ninguém, de deixar a louça suja na pia, cada noite trazer uma garota diferente para trepar no sofá, ouvir a música que quiser, se vestir quando quiser e quantos mais quando-quiser escolhermos colocar aqui. Abre-se um leque de possibilidades, as escolhas se multiplicam, a vida parece borbulhar. Sílvio coloca o espelho enorme na parede em frente aos pés de sua cama, chega do trabalho e fica ali horas, observando-se, estático. Parece esperar que algo aconteça do outro lado, parece estar espionando aquele estranho mundo invertido, procurando um sinal ou algo semelhante, tal como um louco – é o que a primeira vista parece e, sem dúvida, existe muita razão para acreditarmos nisso. Mas é uma opinião obtusa. Precisamos ir além, fazer justiça a este rapaz e seu hábito exótico, ver através de seus olhos e escutar os ecos do seu coração (tarefa difícil, sendo Sílvio tão tímido). O homem naquele quarto pobremente mobiliado que se observa no espelho não é um Narciso enamorado pela sua beleza, envaidecido de si mesmo, enaltecendo a si mesmo. Na verdade o que ele buscava durante toda a vida e que finalmente agora conseguia era privacidade. Um lugar para ficar a sós consigo, o seu próprio habitat, o seu reino feito a sua imagem e semelhança. A imagem refletida garantia-lhe este porto seguro, a calmaria de um exílio voluntário do caos das relações humanas. Já dissemos que Sílvio tinha poucos amigos e achava cansativo ter relacionamentos. O humano lhe trazia desconforto e em frente ao espelho ele se isolava ao mesmo tempo da humanidade dos outros e de sua própria humanidade. Mergulhado na sua privacidade, agora total e livre de interrupções, por horas em frente ao espelho, Sílvio protegido e deliciando-se com este sentimento, a sós consigo mesmo, livre de sua humanidade, agora esquecida, apenas um reflexo disforme, sequer uma lembrança, a vida borbulhando naquele apartamento, Sílvio estático em frente ao espelho.