"O mundo talvez seja o rascunho rudimentar de algum deus infantil, que o abandonou pela metade, envergonhado por sua execução deficiente; é obra de um deus subalterno, de quem os deuses superiores se riem; é a confusa produção de uma divindade decrépita e envelhecida, que já está morta."
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11.01.2010
4.19.2010
Relatório de leituras: Fante, Veyne e Goethe
Completamente doente o final de semana todo, inclusive febril na noite de sábado, meus dois últimos dias em casa foram lamentáveis. O odor acumulado de minha respiração/transpiração somou-se a tantos outros odores desagradáveis que brotavam de minhas lembranças, mas a esses odores é mais fácil se furtar: basta apenas um coquetel de remédios fortes, vem o sono e pronto, a tranqüilidade algo zen domina-me por completo e eu até sonho.
Ficar em casa curtindo uma doença, todavia, não é nem de longe algo ruim, levando-se em conta que há muito o que um homem doente pode fazer como, por exemplo, ler. E a minha leitura de convalescente foi O vinho da juventude, do Fante. Se você já leu Pergunte ao pó ou Espere a primavera, Bandini com absoluta certeza vai amar os contos desse livro. "Um de nós", o conto que na primeira orelha é indicado como um dos mais pungentes da obra, está certamente na lista das coisas mais tristes que já li, mas há momentos ainda mais tensos e poéticos, como em "Lar, doce lar" e "O Deus de meu pai". Ri muito lendo "A última jogada de Oscar" (o episódio da briga semi-xenofóbica dos garotos fala mais sobre geopolítica do que cansativos artigos de especialistas) e ri mais ainda lendo "A canção tola de minha mãe". Não me lembro do último livro que me fez rir assim, com verdadeira satisfação, e poucas páginas a frente me deixar pensativo e emocionado com as lágrimas de arrependimento de Jimmy Toscana, o alter ego que Fante deu para si nos contos reunidos nesse livro.
Algumas palavras sobre o título do livro. O vinho da juventude não é de todo ruim, afinal o vinho é quase um personagem dos contos, estando presente em praticamente todos eles. Porém o título original, Dago Red, tem um sentido completamente diferente: "dago" era o termo usado para pejorativamente designar os italianos nos Estados Unidos. O termo que em geral usa-se no Brasil (ou usava-se) é carcamano. Em uma tradução mais fiel, O vinho dos carcamanos seria mais adequado. Mas talvez as exigências politicamente corretas e/ou mercadológicas tenham norteado a decisão de suavizar o título original, se bem que eu não entendo como alguém, hoje em dia, poderia se sentir ofendido ao ser chamado de carcamano. Talvez um velhinho da Mooca fique vermelho de raiva ao ser chamado assim, mas tenho certeza que nenhum velhinho de lá lê o meu blog.
A doença que me fez recluso nesses dois dias também rendeu a redação de um novo (ou melhor, o esboço de) post para o blog da UGRA Press. Provavelmente, na próxima quinta-feira, que é o dia em que colocamos no ar as atualizações, ele será publicado. Estou ficando feliz com ele, pois me baseei em um ensaio do Paul Veyne, historiador francês que desde meu segundo ano da USP me cativou, seja pelo seu estilo elegante e debochado ao mesmo tempo, seja pelos controversos pontos de vista que ele arrisca de vez em quando. Em seu último livro, "Quando o nosso mundo se tornou cristão", por exemplo, Veyne sustenta que só nos tornamos cristãos porque Constantino se converteu. Não nega a extrema habilidade política do imperador ao levantar a bandeira dos seguidores da Cruz, mas em larga medida credita nossa herança cristã ao radicalismo de um homem só - indo contra a opinião largamente aceita de que o cristianismo, na época de Constantino, já era um culto largamente adotado no Império Romano. Para ele, a desconstrução do paganismo ocorreu de forma política, e não meramente pelo trabalho das primeiras comunidade cristãs. A diferença pode parecer sutil, mas guarda consigo uma radicalidade profunda: só falta Veyne escrever que tudo o que foi dito sobre o nascimento do cristianismo era uma bobagem.
Pausa para mais remédios. Essa semana, a leitura será Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe. Na quarta, coloco aqui o Canto II da Narrativa Mitológica de Curitiba. E aos que rezam, peço que rezem por mim, já que não tenho fé para isso.
1.08.2010
Arquitetura, patrimônio histórico e preservação das cidades
Este post é a tradução de uma matéria publicada em 04/01/2010 no jornal portenho Página 12 que aborda com excelente propriedade a questão da preservação da arquitetura das cidades.
Vai além de uma argumentação puramente histórica, bem alinhada com José Luiz Romero em La Ciudad Occidental, e mostra as vantagens econômicas advindas da preservação do patrimônio arquitetônico. E não esquece de elencar as vantagens espirituais desta preservação, que oferece aos indivíduos uma sensação estética que nós, pobres paulistanos, sentimos apenas como um reflexo apagado, um reflexo desgraçadamente apagado por décadas de maus tratos, descaso e ausência de planejamento dedicados aos espaço urbano. O centro velho de São Paulo, que poderia ser um lugar cheio de beleza e história, que o diga.
É possível que o espaço urbano paulistano seja alvo de uma revitalização? Ou os pouquíssimos exemplos de prédios e construções antigas serão todos arremessados ao solo, esmagados e triturados para a construção de novas e monótonas caixas de doze andares? A segunda opção, infelizmente, parece ser o destino desta cidade. O empobrecimento estético do espaço urbano, a mercantilização de cada centímetro de concreto sob uma perspectiva imediatista de lucro fácil e o descaso do poder público se juntam e o resultado é o que está aí para quem quiser ver.
Agora, a tradução. Agradecimentos mais do que sinceros para minha namorada que fez a revisão.
Patrimônio e geração de valor
O valor do patrimônio arquitetônico geralmente se associa com a sua dimensão simbólica. Nós o descrevemos como um pedaço da história congelada no tempo, que representa as tendências estéticas do tempo em que ele foi feito, as técnicas de construção, materiais, design e outros elementos que fazem a obra em si. Também como um reflexo da vida cotidiana, relações sociais e costumes e histórias dos nossos antepassados. Sua preservação é a salvaguarda de um recurso cultural e educativo essencial.
Mas o patrimônio construído também tem um valor econômico, muitas vezes ofuscado pela possibilidade do proprietário obter lucros com sua demolição imediata. Isso impede reconhecer a verdadeira fonte de recursos que a arquitetura pode oferecer aos seus proprietários e à comunidade como um todo. Um estudo realizado por Andrés Bello e a Corporação do Centro Histórico de Cartagena das Índias sobre o impacto econômico do patrimônio construído identificou as diferentes formas em que este recurso se torna um instrumento gerador de valor.
Em primeiro lugar , os autores reconhecem o valor de uso direto de consumo, que se refere à geração de uma construção histórica de seus proprietários ou usuários diretos. Por exemplo, no caso do turismo por seu uso residencial não permanente (aluguel temporário ou hotel "boutique") ou como escritórios, lojas ou mesmo casas, gerando uma receita superior a outras propriedades que não tem capital ou não estão localizados em zonas históricas.
Outra variante é o valor de uso direto de não consumo, relacionado com o valor gerado com a visita de um imóvel patrimonial. No caso do turismo, ele é dado pelo seu uso como uma atração para os turistas locais e estrangeiros, e os produtos e serviços prestados, tais como visitas guiadas, venda de guias, fotos e vídeos, etc. Isto também se aplica aos imóveis destinados ao comércio – restaurantes, lojas, livrarias –, cujo valor patrimonial é uma atração extra para os clientes.
Imóveis patrimoniais também geram valor de uso indireto, que devem ser tidos em conta quando se pensa na compensação aos proprietários de edifícios protegidos ou na implementação de mecanismos que criam sustentabilidade econômica: é o que ocorre quando a proximidade de um edifício histórico ou patrimonial gera um valor extra para os bens ou serviços que estão próximos. Isto se expressa por um custo mais alto da hotelaria, gastronomia, locação temporária de imóveis, escritórios ou outros bens ou serviços perto de zonas históricas ou imóveis patrimoniais de destaque.
Finalmente, o documento reconhece o valor de existência, e esta é a capacidade de capturar os benefícios gerados por uma construção ou área da propriedade pelo simples fato dela existir, para além do qual não necessariamente ser usada diretamente ou indiretamente. Por exemplo, quando empresas multinacionais analizam a qualidade de vida na cidade onde instalarão suas sedes, consideram a beleza e qualidade arquitetônica do destino. O mesmo se aplica aos novos edifícios que são construídos, muitas vezes fazendo referência aos imóveis patrimoniais ou às zonas históricas que se encontram em suas imediações. Esta variável também tem um grande impacto para o setor do turismo de feiras, simpósios e conferências, já que os organizadores procuram um apelo especial no momento de escolha do local de realização de um evento.
O patrimônio arquitetônico também gera valores não econômicos, mas que tem uma enome importância indireta, especialmente no caso do turismo. Nós nos referimos a valores estéticos (a satisfação com a presença de objetos bonitos, considerada essencial para a geração de turismo cultural e turismo de alto nível, como ocorre com o Teatro Colón), espirituais ( devido à sua ligação com a religião ou a memória de antepassados , sendo especialmente associados ao turismo religioso ou de busca de raízes da família, tais como igrejas ou arquitetura feita por imigrantes) e históricos e sociais (por sua relação com eventos passados de grande importância, como a Praça de Maio e o túmulo de Evita).
É claro, portanto, que a preservação do patrimônio arquitetônico tem um elevado impacto social para além do proprietário, e sua destruição é simplesmente uma descapitalização que ameaça não apenas a história, mas também a economia.
Vai além de uma argumentação puramente histórica, bem alinhada com José Luiz Romero em La Ciudad Occidental, e mostra as vantagens econômicas advindas da preservação do patrimônio arquitetônico. E não esquece de elencar as vantagens espirituais desta preservação, que oferece aos indivíduos uma sensação estética que nós, pobres paulistanos, sentimos apenas como um reflexo apagado, um reflexo desgraçadamente apagado por décadas de maus tratos, descaso e ausência de planejamento dedicados aos espaço urbano. O centro velho de São Paulo, que poderia ser um lugar cheio de beleza e história, que o diga.
É possível que o espaço urbano paulistano seja alvo de uma revitalização? Ou os pouquíssimos exemplos de prédios e construções antigas serão todos arremessados ao solo, esmagados e triturados para a construção de novas e monótonas caixas de doze andares? A segunda opção, infelizmente, parece ser o destino desta cidade. O empobrecimento estético do espaço urbano, a mercantilização de cada centímetro de concreto sob uma perspectiva imediatista de lucro fácil e o descaso do poder público se juntam e o resultado é o que está aí para quem quiser ver.
Agora, a tradução. Agradecimentos mais do que sinceros para minha namorada que fez a revisão.
Patrimônio e geração de valor
O valor do patrimônio arquitetônico geralmente se associa com a sua dimensão simbólica. Nós o descrevemos como um pedaço da história congelada no tempo, que representa as tendências estéticas do tempo em que ele foi feito, as técnicas de construção, materiais, design e outros elementos que fazem a obra em si. Também como um reflexo da vida cotidiana, relações sociais e costumes e histórias dos nossos antepassados. Sua preservação é a salvaguarda de um recurso cultural e educativo essencial.
Mas o patrimônio construído também tem um valor econômico, muitas vezes ofuscado pela possibilidade do proprietário obter lucros com sua demolição imediata. Isso impede reconhecer a verdadeira fonte de recursos que a arquitetura pode oferecer aos seus proprietários e à comunidade como um todo. Um estudo realizado por Andrés Bello e a Corporação do Centro Histórico de Cartagena das Índias sobre o impacto econômico do patrimônio construído identificou as diferentes formas em que este recurso se torna um instrumento gerador de valor.
Em primeiro lugar , os autores reconhecem o valor de uso direto de consumo, que se refere à geração de uma construção histórica de seus proprietários ou usuários diretos. Por exemplo, no caso do turismo por seu uso residencial não permanente (aluguel temporário ou hotel "boutique") ou como escritórios, lojas ou mesmo casas, gerando uma receita superior a outras propriedades que não tem capital ou não estão localizados em zonas históricas.
Outra variante é o valor de uso direto de não consumo, relacionado com o valor gerado com a visita de um imóvel patrimonial. No caso do turismo, ele é dado pelo seu uso como uma atração para os turistas locais e estrangeiros, e os produtos e serviços prestados, tais como visitas guiadas, venda de guias, fotos e vídeos, etc. Isto também se aplica aos imóveis destinados ao comércio – restaurantes, lojas, livrarias –, cujo valor patrimonial é uma atração extra para os clientes.
Imóveis patrimoniais também geram valor de uso indireto, que devem ser tidos em conta quando se pensa na compensação aos proprietários de edifícios protegidos ou na implementação de mecanismos que criam sustentabilidade econômica: é o que ocorre quando a proximidade de um edifício histórico ou patrimonial gera um valor extra para os bens ou serviços que estão próximos. Isto se expressa por um custo mais alto da hotelaria, gastronomia, locação temporária de imóveis, escritórios ou outros bens ou serviços perto de zonas históricas ou imóveis patrimoniais de destaque.
Finalmente, o documento reconhece o valor de existência, e esta é a capacidade de capturar os benefícios gerados por uma construção ou área da propriedade pelo simples fato dela existir, para além do qual não necessariamente ser usada diretamente ou indiretamente. Por exemplo, quando empresas multinacionais analizam a qualidade de vida na cidade onde instalarão suas sedes, consideram a beleza e qualidade arquitetônica do destino. O mesmo se aplica aos novos edifícios que são construídos, muitas vezes fazendo referência aos imóveis patrimoniais ou às zonas históricas que se encontram em suas imediações. Esta variável também tem um grande impacto para o setor do turismo de feiras, simpósios e conferências, já que os organizadores procuram um apelo especial no momento de escolha do local de realização de um evento.
O patrimônio arquitetônico também gera valores não econômicos, mas que tem uma enome importância indireta, especialmente no caso do turismo. Nós nos referimos a valores estéticos (a satisfação com a presença de objetos bonitos, considerada essencial para a geração de turismo cultural e turismo de alto nível, como ocorre com o Teatro Colón), espirituais ( devido à sua ligação com a religião ou a memória de antepassados , sendo especialmente associados ao turismo religioso ou de busca de raízes da família, tais como igrejas ou arquitetura feita por imigrantes) e históricos e sociais (por sua relação com eventos passados de grande importância, como a Praça de Maio e o túmulo de Evita).
É claro, portanto, que a preservação do patrimônio arquitetônico tem um elevado impacto social para além do proprietário, e sua destruição é simplesmente uma descapitalização que ameaça não apenas a história, mas também a economia.
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