6.14.2011
A grande ampulheta dos desencontros do Universo
4.23.2008
Esperando o Tempo

“Eu tinha certeza que vc ia lembrar. Muito obrigada, gosto muito de vc! Bjos” – esta era a resposta que M. recebera do cartão que enviara logo cedo a L., felicitando-a pelo aniversário recém-comemorado. E mesmo que nada ali fosse mais do que palavras, procedimentos ditos protocolares para agradecer às felicitações que recebemos, M. ficou é meio enevoado com aquilo, e perdeu o início da noite lendo e relendo a minúscula resposta, jurando que ali havia sentidos ocultos que podiam ser desvendados.
Há algo a mais, eu deveria é ter ligado, queixava-se a si mesmo pela decisão agora claramente incorreta de enviar o cartão, evitando os gaguejos desajeitados que viriam ao escutar a voz dela. Pois a presença de L., mesmo a mínima presença de sua voz ao telefone, era suficiente para este homem já feito que era M. tremer igual vara-verde, nas cidades grandes não se usa mais esta comparação, o leitor urbano que imagine um pedaço de pau que não pára quieto para compreender um pouco o que acontecia. E até que M. enganava bem, a ponto que ela nem percebia, ou fingia não perceber, mulheres são sempre mais engenhosas que os homens e principalmente nas artes do engano.
Não tinha certeza como começara a paixão. Ela existia, simplesmente. Certo dizer que M. desde que ela entrou na repartição já a notava com olhos ávidos de homem, mas a paixão mesmo era difícil perceber a origem. Só sabemos que a primeira vez que conversaram foi na volta do almoço, na alameda dos cafés, aquela conversa que nem vale a pena transcrever aqui pela trivialidade de tudo que é dito, mas que para M. foi como uma orquestra dos mais belos sons que, suaves, baixinhos, saiam da boca de L. – e se nasceu antes ou logo ali esta paixão, o fato é que M. desejou ouvir aquela voz todos os dias. E se há algo com o que possamos medir este sentimento, lembremos que avalia-se a estatura de um amor pela capacidade que os amantes têm de se ouvir mutuamente, mesmo por horas, sem que a irritação ou o fastio tome o lugar do desejo e da admiração.
Para M. era claro: estava gostando da menina. Contudo, só bem tarde soube de algo importante: L. tinha um namorado, com o qual pretendia se casar. Um frio congelante para M. ouvir isso da boca de L., em uma das conversas diárias que tinham, ela que parecia já tão disposta a aceitar um convite para o cinema, convite este nunca feito mas que, se feito e aceito, é mais do que claro na terminologia do coração que o filme pouco importa, o aceite da garota significa já uma vitória. M. ficou triste por dias, mexer com mulher alheia era contra seus princípios, mesmo que as danadas se fizessem fáceis, já deu os seus escorregões adúlteros e sabe que o preço é sempre mais alto do que o produto merece. L. era um caso diferente, nunca se mostrara disponível de fato, nunca dera um mínimo escorregão moral, permanecia ao mesmo tempo intocável e, por vezes, parecia deixar claro que apenas esperava uma atitude de L. Isso colocava ainda mais confusão na sua cabeça, principalmente quando L. chegava na repartição sempre tão sorridente e passava pela sua mesa a desejar bom dia. Certa vez ela chegou e, após os cumprimentos, emendou “Nossa, M, sonhei com você esta noite” - era o fim da picada, que mulher sonha com um homem e conta assim sem estar interessada, há certos desprendimentos modernos que M. jamais entenderia, mas se a ferida dos últimos dias doeu mais depois das palavras de L., na mesma proporção uma felicidade infantil o fez quase brilhar os olhos com filhotes de lágrimas, mas segurou firme e riu um largo sorriso, acompanhando o brilho que L. lançava com sua voz algo manhosa, detalhando os acontecimentos do sonho, de como M. estava engraçado na confusão onírica e de como ele a salvava de mil monstros terríveis. Fosse um pouco mais esperto ele completaria dizendo que nas estórias o herói sempre beija a mocinha ao final, e perguntaria malicioso a L. se no sonho a história também acabava assim, mas ele é tímido como um tatu e se esconde de tudo, e inebriado ficou apenas a ouvir a voz dela e a inflamar no peito mais uma flecha de Cupido, esperando um sinal de L. que, enfim, permitisse a ele algo mais do que apenas suas sempre tão vivas palavras.
1.03.2008
O sonho de uma mulher desesperada

(“Saiba você pois que há mulheres que conseguem ser maravilhosas até mesmo quando um certo desleixo as afeta. Elas conseguem provocar suspiros de paixão não pelo salto alto ou pela ousadia de um decote, mas principalmente pela insolência de um cabelo despenteado, pelo olhar de nojo endereçado a tudo, pela petulância ao acender um cigarro e baforar a fumaça como quem diz ‘eu simplesmente não suporto nenhum de vocês’. Todo homem se depara com uma mulher dessas, e acredite, elas sabem como proporcionar muita diversão.”)
E delicado não é apenas o quarto, mas também a maneira sem cuidados dela ali deitar Olhando-a assim, enquanto ela dorme, com o corpo desajeitado e semicoberto por fino lençol, percebe-se o seu sono tranqüilo, a frieza de um sono que não se atormenta por nada – ou melhor, a aparência de um sono que não se atormenta por nada. Pois se possível fosse vasculhar os sonhos de outrem, a S. atribuiríamos um sono cheio de tormentos, um sono que não descansa o corpo mas o mutila por mil imagens que se repetem, por mil vibrações oníricas que o abalam.
(“A minha eu conheci faz alguns anos. Pois bem: tudo que ela me trouxe, no dia em que foi embora a desgraçada levou em dobro. Eu podia ter lá meus problemas, todo mundo tem, mas sério, eu ainda conseguia manter uma certa dignidade; sempre achei os românticos idiotas, sempre achei os que sofriam por amor dignos de pena, mas graças a ela eu me vi perdido. E eu acho que para sempre.”)
Ela suspira mais fundo, lentamente começa a se movimentar na cama, até que se vira por completo e deita de bruços, todo o movimento realizado como se cada músculo pesasse toneladas, e mesmo assim é inegável a harmonia toda deste balé de adormecida. Mas neste momento, onde o mexer-se na cama parece fruto da arte, não há nada de equilíbrio nos sonhos de S.: ela está correndo, parece ser em uma floresta, está nua, suja e apavorada, há pessoas acampadas em barracas próximas, com horrendas deformidades, ela grita por socorro mas ninguém a ajuda, apenas a observam e ficam a rir, e ela continua a correr. Qual o significado deste sonho, S. perguntou a si quando o teve pela primeira vez, não encontrou resposta e continuou sonhando. São quatro meses e as mesmas imagens se repetem, existe mensagens escondidas nele, uma amiga com tendências esotéricas sentenciou, mas isso não foi o bastante para que o oculto sentido se manifestasse e muito menos para que, na noite seguinte, o tormento de S. não se repetisse.
(“Sabe o que eu desejei então? Que a maldita jamais tivesse paz. Isso mesmo. Paz, você nunca terá, eu disse. Na cara dela, no dia que ela foi embora. Falei isso e ri, ri de satisfação, ri inebriado de vingança, entorpecido de vingança. Nunca mais a vi, desde então. Melhor assim.”)
Agora ela não se mexe, mas solta um gemido. Nas pessoas que dormem, um gemido significa desejo de despertar motivado pelo medo daquilo que se sonha. S. sente medo, mas não consegue acordar, e segue correndo desesperada em seu sonho, ainda na floresta, mas agora passando no meio das barracas, que se multiplicaram, e os aleijados mal-cheirosos riem ainda mais alto, e para onde quer que ela olhe só há floresta e aleijados que riem sem parar, e S. geme ainda mais alto, principalmente quando percebe que as centenas de aleijados que a cercam têm o mesmo rosto, rosto de um homem que ela não consegue distinguir bem, mas que lhe é familiar, no mundo dos sonhos não há limites precisos para nada, e podemos desconfiar de S. quanto a esta familiaridade, já que mesmo acordado cometemos equívocos e tomamos por x o que na verdade é y. De qualquer modo, a impressão dos rostos iguais é profunda o suficiente para que os gemidos fiquem longos, doloridos. Estranho que gemidos ocorram tanto em momentos de medo e dor quanto de prazer, isso faz supor que até mesmo as imagens horríveis que S. suporta sejam no fundo motivos de delícia, mesmo que inconfessáveis. A cabecinha se agita um pouco, como se quisesse enfim se levantar e despertar, mas isso ainda não ocorre e tudo que vemos é um novo movimento do que chamamos logo antes de balé, já não há nada da graça de outrora, mas um alvoroçado mudar de posição, neste ponto a delicadeza de S. diminui e fica presente a mulher-voraz, a mulher que no auge do clímax grita e se movimenta em espasmos, não que S. esteja tendo um orgasmo, mas as pernas se movimentando rápido sugerem o gozo.
(“Hoje eu acho que deveria ter ido além. Sabe, uns tapas bem dados pra ela saber o que deve e o que não deve fazer com um homem que a ama. Mas eu só a peguei pelo braço e dei uns belos chacoalhões, maldizendo cada segundo da vida dela. Talvez dar os tapas não mudasse nada, ela iria embora uma hora ou outra mesmo, mas eu ficaria muito mais satisfeito. Só sei que, quando a agarrei e gritei, eu pude ver o medo que ela tinha de mim. Só aí eu me dei conta que já não havia mais nenhum amor nela, que nenhum esforço de reconquista seria possível. O melhor era deixá-la ir, já que na verdade há muito tempo ela não estava mais perto de mim.”)
No sonho, ela continua correndo, e há milhares de aleijados sufocando-a, ela pula por cima deles, dos que se arrastam, mas há outros que sustentados por pernas ossificadas se esfregam nela, e riem sem parar, ela cai e levanta, mãos tentam segurá-la, nem as lágrimas comovem os atrevidos, na verdade é isso que os deve excitar. Um dos monstros a pega pelo braço, arrasta-a para perto do rosto contorcido e grita, S. então finalmente distingue a face tão familiar, ela não pode acreditar no que enfim vê, e seu choro é intenso e desesperado, as mãozinhas agarram os lençóis, puxam-no para si, já está com as costas empapadas de suor, e tão presente é o medo que de seus olhos vemos escorrer lágrimas, balbucia algumas palavras, mas não é possível entender nada, entrecortada que estava a fala pelo gemido e pelo sono. Logo em seguida ela desperta, repletos de lágrimas os olhos, o choro que ainda não terminou, a expressão de confusão e medo nada se assemelha ao delicado semblante de antes. Já sabia que sonharia aquilo tudo novamente, exatamente igual, no dia seguinte. E a surpresa de reconhecer o rosto dele naquelas faces e corpos abomináveis a tomava por completo e produzia uma sensação desagradável. Pois era estranho logo ele assim surgir, como parte deste pesadelo tão incomum, e ao mesmo tempo tão real, mesmo que absolutamente improvável. Não conseguiu voltar a dormir e chegou a temer que não voltasse nunca mais.
12.11.2007
Excertos de uma confissão a um padre

11.15.2007
Caminhos indefinidos

"(...) E você ainda se interessa pelas pessoas? Puxa, isto é mágico. Já vi que cheguei no ponto que não consigo mais amar de forma pura. Quando um sentimento me assalta, eu imediatamente me questiono, é automático, sinto uma espécie de voz interior falando `O que você quer nesta pessoa, de verdade? São os sentimentos dela? As idéias? O corpo? Uma gozada? A possibilidade de dominá-la e fazê-la acreditar que você a ama para, depois da conquista, você rejeitá-la como já fez com tantas? Ora, M., seja sincero, você só ama os seus próprios desejos´. E eu devo concordar com esta voz: eu sou absolutamente egoísta. Até mesmo no sexo, mesmo que eu me preocupe em dar o máximo de prazer para a mulher que está comigo, é porque no fundo me move a suprema vaidade de me considerar uma espécie de deus do amor, capaz de vê-la(s) delirando, e pedindo mais, e eu negando em palavras o que proporciono com gestos. Pois é assim que funciono, que sempre funcionei, mas agora pareço que chego aos últimos estágios de desenvolvimento: eu como um mestre de mim, um déspota, um déspota que quer corações e mentes e corpos, e cuja vontade é insaciável."
"(...) Éramos muito imaturos, mas queríamos mudar tudo dentro de nós, quebrar tabus, criar nossas próprias regras, como se tudo isso estivesse sendo vivido pela primeira vez. Tudo diferente do que estávamos acostumados, diferente do modo que fomos condicionados a lidar com os outros e com nossos sentimentos. Sabe o peso do amor? Era esse peso que queríamos liquidar. E eram muitos sentimentos por muitas horas e ininterruptos. Amor demais. Paixão demais. Ódio demais. Raiva demais. Tristeza demais. Felicidade demais. Liberdade demais. Conversas longas, discussões e consenso. Criamos muito silêncio e caos simultaneamente. Conseguíamos sempre machucar um aos outros sem se ver. Constantemente silenciosamente atacados e atacando. Por ações tão comuns, distraídas. Em três instantes só eu tive tudo com todo mundo ao mesmo tempo. E tudo isso me fez ser cética, imoral, me fez destruir o ciúmes e muitas vezes buscar apenas o desejo. E o que mal existe nisso? Não existe mal. Que mal existe em querer sexo? Ou um corpo? Ou idéias? Precisamos saciar nossos desejos? Com certeza! Somos feitos de desejos. Eles estão dentro de nós e se não sacia-los, alguma hora eles comerão nossas entranhas. "
10.17.2007
Cachos negros

E era uma verdadeira paixão. A ponto de M. ficar triste quando, calado, observava a desconhecida tão sua indo embora para nunca mais. Pois a Cidade é imensa, e imensos caminhos a cruzam, e cada vez que os percorremos, parece que eles já não mais são os mesmos, ou talvez somos nós os que estão em mutação, o ovo ou a galinha, certas questões nascem para ser eternas. Mesmo assim, mesmo sabendo que apartado estava para sempre de cada uma de suas paixões instantâneas, M. cultivava a possibilidade de novamente encontrá-las, e em questão de segundos suas paixões o reconhecerem com um largo sorriso, eu lembro de você aquele dia em tal lugar, lembra de mim, te procurei tanto. Desce em direção a Alameda S. com a certeza de que ali, na esquina com a Rua A., aquela loirinha de brincos de argola estaria como naquela última quinta-feira. Sacola de compras na mão, e tão indiferente ao mundo ela parecia que M. acreditou que jamais se apaixonaria de novo, era tão somente ela e nenhuma outra, ali estava a companheira definitiva para as viagens e bebedeiras e contas atrasadas e noites de sexo. Mas as esperanças são apenas brinquedinhos que Deus fez para nós, brinquedinhos Dele, gastarmos o tempo tão pouco que aqui temos - e M. não encontrou sua loirinha de brincos de argola, assim como jamais encontrará os negros cachos novamente.
Obviamente ele não pensa estas coisas. Está muito atarefado em desviar dos caudalosos rios humanos que infectam as ruas dos Jardins. Mas no íntimo sofre a perda de suas paixões. E quando o leitor se depara com o verbo sofrer, deve se recordar das vezes que sentiu dor por alguém, e saber que é uma dor como esta que aflige M., e não acusá-lo de leviandade e de superficialidade de sentimentos. Pois é muito razoável que alguns vejam em M. tão somente um aventureiro; se assim o fosse, estaria ele imaginando tórridas cenas sexuais com os cachos negros, e não uma sala confortável com filhos e filhas a brincar no cantinho. Sim, ele a quis nua, os lábios dela desejou, os contornos que transbordavam volúpia, imaginou um perfume e um nome até - Juliana ela chamaria. Mas no momento do êxtase, sobre ela ele se estenderia com fúria, até que cachos negros ficasse quietinha, na semi-imobilidade que sucede o Excesso, e envolvendo-a em um abraço, diria Juliana, eu te amo, e seria o mais verdadeiro dos homens ao fazer isso.
Vinte minutos de atraso quando, finalmente, M. liga o computador no escritório. Felizmente, seu chefe ainda não tinha chegado. Ninguém perceberia seu atraso. Vai tomando um copinho de café enquanto vê a rua pela janela. Quantas ainda amarei até te encontrar, pensa, e naquele momento ele é triste e cheio de vida. Já não lembra mais de cachos negros e nem dos seus dedos sibilinos a balançar os fios para cima e para baixo. Aquela paixão, tão subitamente nasceu, tão subitamente foi embora. A multidão, porém, continua a mesma na Avenida P., produzindo desencontros, engolindo paixões e de todos nós embaralhando o Destino.
6.08.2007
As coisas que os amantes dizem
Tudo isso soa ridículo. Mas assim são todas as histórias dos casais separados, elas só são belas para quem as vive, os olhos que de fora olham apenas podem julgar estes excessos de sentimentalismo como tolice de folhetim, peço licença para lembrar desta bonita palavra, tolice de folhetim, hoje não existem mais folhetins, temos ao nosso lado as novelas das oito, e das sete, e das seis, e outras que passam bem tarde, e tanta repetição de histórias perfumadas de enamorados, e tantas contas para pagar, e tantas Paulistas e Farias Limas paradas, e tantos metrôs infectados de gente que só lembramos de afetos quando topamos com anúncios de dia dos namorados, eis aí um efeito curioso da propaganda, até mesmo os mais truculentos mandam flores para suas companheiras nos 12 de junho, e talvez ensaiem alguma espécie de carinho naquela face agradecida, um leve e sem jeito roçar de dedos na bochecha, gesto que M. fez na face dela antes da despedida fatal, ela talvez não se lembre mas para M. aquele foi o último toque, o último sentir perto aquela presença já tão distante, e preservava aquela migalha de tempo com o cuidado e respeito que só merecem as divindades.
Será uma separação definitiva - assim M. dizia de si para si, como uma afirmação, será para sempre, e às vezes a afirmação era repetida como pergunta, será uma separação definitiva, incrível como a voz pode produzir a certeza e a dúvida usando as mesmas palavras. Para M. oscilar entre as duas era mais que um inferno, afinal S. fora para muito longe, não sei quando, e nem se volto, ela disse. Se M. pudesse a trancaria em seu quarto para nunca mais saírem de lá, já tinha falado disso certa vez, ela tomara como uma brincadeira, mas agora M. sentiu uma fisgadinha de arrependimento, deveria tê-la apenas raptado, maníaco, louco, todos diriam, mas livre da incerteza. Mas nem ele mesmo levava a sério este plano, o que mais admirava em S. logo após as curvas e o sabor semidemoníacos de seu corpo era a liberdade de espírito, o desejo de alçar vôos longe da terra natal e no distante além fazer uma nova vida. Incentivara e apoiara cada centímetro daquela viagem, foram até juntos comprar as malas, duas malas grandes e cheias de insolência, levarei S. para longe de você, pareciam dizer. Juntos eles colocaram nas abusadas malas blusas, camisetas e calças, dobradas uma por uma, entre conversas que nunca terminavam, não posso esquecer minha maquiagem, S. sempre tão preocupada com miudezas. Ele quis dizer coisas bonitas, ir além daquelas bobagens todas que os namorados se falam quando estão sós e nus estendidos e suados na cama, mas apenas repetiu as bobagens mais repetidas e bobas, e até sentiu vergonha de não saber versos, vergonha deveria ter sentido de dizer em sussurros o que todos os casais sempre dizem.
Egoísmo sem fim seria se colocasse moleza nos gestos, ou se distante ouvisse os medos de S. perante a viagem, M. queria era que tudo desse certo e no fim foi isso que aconteceu. Tanto que quando aquele coração de mulher tremia na incerteza, M. também quebrava completamente, mas arremessava a sua voz como pura confiança, a custo da morte do pessimista que vivia lá em seu íntimo. Sim, era uma mentira, algum mais apressado diria, mas ele nunca inventara facilidades e paisagens cor-de-rosa, só queria preparar a fúria que S. para ele sempre teve, e que jazia adormecida, apenas a esperar os desafios que a vida ingratamente distribui para despertar. Assim no aeroporto a abraçara mais forte do que jamais tinha abraçado e entre despedidas disse "Força!", era uma palavra horrível de se dizer - dissesse eu te amo, ou te adoro, morrerei de saudades, mas não força, alegaria um poeta da pieguice, mas para M. nenhuma palavra outra valeria a pena ser dita, queria ver S. voar ainda mais alto, mesmo que para longe de sua vista, mesmo que nunca mais possa cingi-la pela cintura e levantá-la e assim ir caminhando para o quarto, para onde você tá me levando, ela sempre perguntava rindo com sabor de malícia. Dizer força assim, em uma despedida que não se quer, onde dois que eram um são feitos dois novamente e jogados para longe um do outro, era para S. algo mesmo incompreensível, mas nas primeiras dificuldades no novo cotidiano ela soube, repentinamente, tudo o que M. quis significar quando pronunciou aquela palavra esquisita, e achou que seria bom tê-lo por perto novamente, senti-lo quente e com uma intensidade quase violenta, S. chegou a suspirar ao pensar nisso, e desejou aquelas longas conversas, aquele adormecer juntos sem a pressa de um vôo, apenas perder-se entre cobertores que cheiram sono, e quis então ela e M. livres, absolutamente livres, distantes da crueldade das grandes partidas, de toques de celular que amedrontam os corações, de qualquer coisa que faça em pedaços aqueles dias que não saem da sua memória e que jamais deveriam acabar.