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3.01.2012

"O deserto dos tártaros", de Dino Buzatti



“- Estou bem – repetiu Drogo quase não reconhecendo a própria voz – Estou bem e quero ficar.


- Ficar aqui no forte? Não quer mais ir embora? O que lhe aconteceu?


- Não sei – disse Giovanni. – Mas não posso ir embora.”

É nesse momento, ao final do capítulo 9, que o personagem principal renuncia à vida na cidade e decide seu destino de reclusão no livro “O deserto dos tártaros”, do italiano Dino Buzzati. Esse post será uma brevíssima resenha desse angustiante romance.

Lançado em 1945, “O deserto dos tártaros” narra a história do jovem Giovanni Drogo que, após formar-se na escola de oficiais do exército, é designado a servir no antigo forte Bastiani, localizado nos limites extremos do império (não há uma referência espacial precisa, o que acentua ainda mais o caráter fabuloso do livro). Lá, nas muralhas do forte, vislumbra-se um imenso deserto, entremeado por montanhas inacessíveis, terrenos ressequidos e uma solidão tão imensa quanto a dureza das rochas milenares que o circundam. E nesse cenário de absoluto isolamento, soldados atentamente observam a planície sem fim, ansiosos de que os inimigos do Norte, os tártaros, enfim façam seu ataque há anos esperado.

Nessa espera absurda por um inimigo que não existe, Drogo encontra muitos homens que vivem no forte há décadas. Com paciência inumana, fielmente observam procedimentos de vigília das muralhas, de exercícios militares, de patrulhas metódicas em uma planície que é apenas um nada arenoso. No momento inicial, Giovanni observa tais comportamentos com um pouco de perplexidade; e temendo pelos efeitos negativos que poderiam macular sua carreira caso permanecesse por muito tempo naquele forte tão distante das oportunidades da cidade, pede transferência para outro posto logo no primeiro dia. O major Matti o aconselha a esperar pelo menos quatro meses: seria o tempo necessário para que o médico do exército viesse para os exames rotineiros, e ocasião perfeita para que Drogo alegasse algum tipo de problema ocasionado pela elevada altitude do forte e, então, conseguisse uma transferência sem risco de desonras, que poderia acontecer caso formalizasse um pedido desses logo nos primeiros dias.

Os quatro meses são suficientes para que o jovem Drogo fosse contaminado, ainda que em um grau mínimo, pela rotina do forte. Tempo o bastante para que ele também observasse o vasto deserto com paixão, na irracional espera pelos tártaros. Assim como os outros que ali estavam, para ele também a possibilidade de guerra contra o inimigo do Norte configurava-se como passaporte para um valor heróico de brilho sem igual – e então Drogo resolve esperar.  O romance avança no detalhamento de um cotidiano onde os dias de Giovanni passam como segundos, os meses como minutos, os anos acumulam-se sem ao menos que ele perceba. Para Drogo e todos os outros soldados ali confinados, em uma prisão voluntária das relações ditas normais, a espera tornava a glória do futuro combate ainda maior. Consumiam a vida na vigília constante das planícies do Norte, esperando os temíveis tártaros, aguardando um momento que nunca chegará, ao mesmo tempo convictos de que a guerra aconteceria e que tudo isso – a espera, os exercícios militares, as trocas de turno de guarda com seu rigor procedimental – que tudo isso não passava da mais absoluta perda de tempo. 

O romance foi muitas vezes considerado como uma alegoria da inutilidade do poder e suas convenções. O autor, em uma entrevista de 26 de maio de 1959 ao jornal Il Giorno, relacionou-o com “o amesquinhamento cotidiano e a condição humana em geral”. Uma boa interpretação, também sustentada pelo próprio Buzatti, é que o romance retrata uma sensação extremamente moderna: o consumir inutilmente a vida em uma tarefa sem fim, sem propósito, enquanto se espera um acontecimento espetacular que agirá como um divisor de águas – momento mágico que nunca se concretiza. Assim, a realização da vida se projeta sempre para frente (a conquista do “verdadeiro amor”, de uma casa, um bom emprego, etc, apenas para citar os exemplos mais banais) enquanto que a vida mesma se esvai em espera e amargura:

“Do deserto do norte devia chegar a sorte, a aventura, a hora milagrosa, que, pelo menos uma vez, cabe a cada um. Para essa vaga eventualidade, que parecia tornar-se cada vez mais incerta com o tempo, os homens consumiam ali a melhor parte de suas vidas.”

A passagem do tempo: talvez seja esse o grande tema do romance, o fio que amarra e ordena todas as suas partes. Como os homens experimentam essa passagem do tempo, como relacionam suas vidas, projetos, ambições e desejos com o fluxo incessante dos segundos. Buzatti mostra que a espera da felicidade futura é suficiente para preencher uma vida, mesmo que com as areias da ilusão. O velho Drogo, doente e esquecido pelo alto comando do forte, prepara-se nas páginas finais do romance para enfrentar os tártaros que enfim iniciam seu ataque – e é um rebotalho de homem, um velho doente e incapaz até de andar sozinho que pega o sabre, um homem que sabe muito bem que não tem mais condições de lutar. Nem mesmo esse ataque temos certeza que é, de fato, aquele tão esperado: não seria apenas mais um alarme falso, como outros do passado? Mas nada disso importa: está sustentando pela fé de toda uma vida, por anos esperando aquele acontecimento divisor de águas que transformaria para sempre a existência. 

As mentiras são capazes de muitas coisas, até mesmo de fazer um homem passar décadas no meio do nada, e de fazê-lo esquecer que no fundo o sentido do tempo é unicamente conduzir o ser ao seu término. A esperança de que as coisas um dia irão mudar radicalmente – essa fé que anima os corações de legiões de Drogos pelo mundo – muitas vezes nos priva da experiência da vida mesma, de seus perigos, tropeços, solavancos, explosões. É porque somos uma raça de descontentes: ansiamos por diferentes maravilhas e catarses o tempo todo. Nosso cotidiano é cinza, a rotina se baseia na estupidez, o amor torna-se cansativo e as promessas de eternizá-lo acabam por tornar os afetos um tipo de martírio – e passamos a desejar o nosso ataque dos tártaros sob a forma de um enriquecimento momentâneo, de uma viagem internacional ou de uma paixão que renove nossos instintos. É a compensação mentirosa que precisamos para suportar o deserto da vida.

Há uma adaptação do romance para o cinema, dirigida por Valério Zurline e lançado em 1976. Com trilha sonora de Enio Morricone, consegue reproduzir muito bem o clima desolador e angustiante do livro. Um vídeo com diversos trechos do filme:




12.02.2011

Black Mass Rising - o trailer


Black Mass Rising é um filme dirigido pela intrigante Shazzula, artista belga nascida em 1977 cuja carreira conta com participações em inúmeras (e diferentes) bandas, um personalíssimo trabalho como ilustradora, DJ em eventos dedicados ao psych rock e, também, como videomaker.

10.13.2010

Felicidade segundo Sérgio Bianchi

"Uma perfeita forma de dominação autoritária: a felicidade. Mas é interessante em como ainda se insiste em criticar a Bahia. É claro que só é inveja da genialidade do projeto baiano. Enquanto que o resto do mundo se esforça para dominar as massas seja pelo capitalismo ou socialismo, a guerra, a evolução, até o consumo, eles não. Eles só fazem o suficiente pra gerar a felicidade: mantém todo mundo pobre, colocam um som pra tocar e pronto. Tudo bem que eles sejam gênios, mas por que os que não querem ser felizes são obrigados a participar? 

11.17.2009

As listas e a cultura

Hoje eu li uma entrevista com o Umberto Eco onde ele fala da importância que as listas desempenham para a cultura ocidental. Segundo ele, listar coisas faz parte do desejo humano de criar uma certa ordem em meio ao caos e estabelecer limites para o incompreensível. Daí surgiram dicionários, enciclopédias, legislaturas, museus - realizações estas que são como as grande listas de nossa cultura, registros das conquistas e criações dos homens nos mais diversos campos do conhecimento.

Fazer listas é inegavelmente um ato cultural, e na literatura elas ocorrem amiúde. E no cânone da literatura ocidental, uma das mais marcantes listas ocorre na Íliada. Conhecida como "o catálogo das naus", extende-se dos versos 484 a 877 do canto II , e é uma enorme lista de todos os povos e generais que participaram do cerco a Tróia, enumerados um a um, com as respectivas quantidades de navios e homens levados para a expedição guerreira.

De certa forma, o catálogo é um corpo estranho no poema: quebra-se a narrativa para enumeração de soldados. Há um debate secular sobre este trecho da Ilíada, mas todos concordam que um dos efeitos da passagem é mostrar a grandiosidade nunca vista da expedição, para que o leitor pudesse medir as dimensões do confronto; e justamente estas dimensões, épicas por excelência, foram as responsáveis pela popularidade da guerra. É mais ou menos isso que Eco diz neste trecho da entrevista:

Na "Ilíada", ele tenta transmitir uma impressão do tamanho do exército grego. Primeiro ele usa metáforas: "Assim como um grande fogo florestal investe contra o topo de uma montanha e sua luz é vista de longe, enquanto marchavam, o brilho de suas armaduras reluzia nas alturas do céu". Mas não fica satisfeito. Ele não consegue encontrar a metáfora certa, então implora às musas para que o ajudem. Então ele chega à ideia de listar os nomes de muitos, muitos generais e seus navios.

Na edição bilíngüe com tradução de Haroldo de Campos, pouco antes de começar a lista das naus, o poeta evoca as musas com os seguintes versos:

(...) o total de nomes da multidão, nem tendo dez bocas, dez línguas, voz inquebrantável, peito brônzeo, eu saberia dizer, se as Musas, filhas de Zeus porta-escudo, olímpicas, não derem à memória ajuda, renomeando-me os nomes."

O gênero épico prescreve a evocação das musas como auxílio ao poeta, para o sucesso da narrativa. E momentos antes de efetuar a lista dos povos que se movem contra Tróia, nada mais adequado: a tarefa, o poeta sabe, é enorme. Justamente sobre essa dificuldade Eco fala logo em seguida:

O trabalho de Homero se depara constantemente com o tópos do inexpressível. As pessoas sempre farão isso. Sempre fomos fascinados pelo espaço infinito, pelas estrelas incontáveis e galáxias além das galáxias. Como uma pessoa se sente olhando para o céu? Ela acredita que sua língua não é suficiente para descrever o que vê.

Foi lendo este ponto da entrevista que me lembrei da mais recente versão para o cinema da guerra de Tróia, lançada em 2004. Procurei rememorar como a tediosa listagem das embarcações feita por Homero foi transposta para as grandes telas. Se você viu o filme, talvez se lembre de uma cena presente na primeira meia hora, que não dura mais do que poucos segundos, onde o mar Egeu aparece coalhado por milhares de embarcações. A cena é breve, mas a impressão produzida pela imagem de um mar repleto de barcos dá a dimensão da guerra que está prestes a começar.

O que podemos concluir disso? Que a sintaxe própria da linguagem do cinema, estruturada na imagem, difere da do texto épico, baseada na escrita. A escrita não tem a simultaneidade radical da tela do cinema, onde todos os barcos podem ser vistos ao mesmo tempo: é o acúmulo descritivo da lista que permite ao texto homérico criar a impressão de grandiosidade do exército que acompanha Agamêmnon.

De certo modo, a literatura força o leitor a produzir a imagem da armada gigantesca, em um esforço imagético impulsionado pela leitura. Claro que o nível de detalhamento da imagem do Egeu dominado por naus dependerá em larga medida do repertório do leitor, dos seu nível de interesse pelo texto lido e também da tradução utilizada. Mas se a leitura do texto épico proporciona este exercício mental, ou melhor, se a literatura é ela inteira um exercício de (re)criação de imagens, a transposição de textos literários para as telas do cinema anula este prazeroso desafio e nos dá as imagens prontas, acabadas. No caso específico da Ilíada, a grandiosa lista de Homero me obrigou a vencer, na primeira leitura que dela realizei, uma espécie de enfado por tão longa e tediosa descrição; contudo o efeito almejado é soberbo, e ainda terei a paciência (e o tempo, recursos escasso) para fazer um mapa com os nomes das regiões citadas (e não a lista uma espécie de atlas escrito daqueles tempos?). Já no cinema, nenhuma referência geográfica é dada: mostra-se o mar infinito tomado por barcos de todos os tipos e tamanhos. A visão é terrível, acentuada pelo movimento da câmera e pela trilha sonora; adequa-se, para citar Paul Veyne, ao nosso intenso gosto moderno, que só admite a arte como excesso, grandiosidade, estremecimento.

Neste sentido, a lista proposta por Eco não satisfaz mais. Em geral são chatas, para alguns até mesmo insuportáveis. O cinema nos fornece uma possibilidade de reproduzir a impressão de grandiosidade da lista poupando o esforço intelectivo de recriar a imagem da armada enorme. São linguagens diferentes e, claro, é preciso entendê-las tal e qual; mas as deficiências da lista como recurso literário não são abordadas por Eco na entrevista. Poderíamos levar em conta que a Ilíada é um exemplo demasiado gasto, com seus 26 séculos de idade; mas mesmo em autores recentes, como Eça de Queirós, a leitura das partes descritivas (que nada mais são do que listas) é por muitos evitada. Mesmo para os que gostam de literatura e até mesmo para aqueles que a encaram como profissão. Listas demandam cuidado, apuro, paciência. São inegavelmente um produto cultural escrito (ou mesmo falado, se pensarmos que a Ilíada e muito da tradição épica antiga são sobretudo versões escritas de poemas orais, e nisso Milman Parry é a melhor fonte a consultar).

Frente a isso, retomo certos aspectos de meu post anterior para finalizar dizendo que certamente seria muito interessante ver Eco problematizando as listas de nossa cultura (uma cultura fundada em inúmeras listas), contrapondo-a com um ambiente onde a imagem ganha mais espaço e deixa a leitura como um item necessário, porém fadado a simplificações de forma e conteúdo que, se as previsões pessimistas se confirmarem, tornará cada vez mais difícil a formação de leitores capazes de efetuar leituras em profundidade. Isso ode ser uma boa explicação para a crescente popularidade dos romances históricos, que transformam a árida matéria dos livros de História em excitantes enredos. Ou mesmo para o fenômeno Dan Brown, cujos livros recheados de informações sobre arte, literatura, arquitetura, etc são verdadeiras minas de ouro para as editoras, e os leitores em geral oferecem, ao final da leitura, uma confortável sensação de inteligência e erudição - feita de retalhos toscos, mas mesmo assim garante um certo brilho de sagacidade na mesa do bar. Nada contra a mesa do bar, mas esta sensação de conhecimento é apenas isso mesmo, uma sensação, e nada mais além disso.