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2.03.2018

Dissolve Coagula fanzine - número 1 disponível



Oficialmente lanço hoje o primeiro número do fanzine Dissolve Coagula. Com 64 páginas, ele é resultado de um trabalho iniciado em outubro de 2017 e consolida um interesse antigo em voltar a produzir fanzines impressos, algo que eu não fazia desde o início dos anos 2000, quando publiquei o último número do Reflexões de um Anticristo.

Um breve resumo sobre essa primeira edição:

VALORES
O fanzine sai por R$ 25,00 + frete. Para adquirir, você deve entrar em contato pela página do Dissolve Coagula no Facebook ou pelo e-mail archeo@riseup.net para que eu te passe os dados de depósito. Trocas e pedidos de distribuidores serão analisados.

A prováveis imbecis que vão falar que estou ganhando dinheiro com o fanzine e sendo um "sanguessuga da cena", já aviso: MORRAM.

ENTREVISTAS
Foram quatro entrevistados: Lucifer Luciferax, publicação voltada para o Caminho da Mão Esquerda editada pelo camarada Pharzhuph, é seguramente uma das publicações mais interessantes sobre o tema aqui no Brasil e com certeza figura entre as principais inspirações para a produção do fanzine; Vulturine, veteranos do black metal que estão prestes a lançar seu novo opus em março pela Drakkar Brasil, uma das bandas com mais personalidade na cena nacional; Círculo Hermético Pvtridvs Vox, grupo de cunho necro-esotérico que congrega algumas hordas nacionais profundamente conectadas com os aspectos espirituais do metal negro, tem desenvolvido atividades bastante interessantes e compromissadas; Vazio, horda paulistana com pouco mais de um ano de existência cujos integrantes, com raízes na cena punk, criaram um som que se conecta espiritualmente com a Corrente 218, fato que me chamou a atenção e motivou a entrevista. 

RESENHAS DE LIVROS
Leituras são sempre importantes para todos aqueles interessados pelos caminhos opositores da Mão Esquerda. São quatro as obras resenhadas: Cabala, Qliphoth e Magia Goética, de Thomas Karlsson; O Renascer da Magia, de Kenneth Grant; Thursakyngi, de Ekortu; A Arte dos Indomados, de Nicholaj de Mattos Frisvold; O Despertar de Cthulhu em Quadrinhos, da editora Draco. Todas as resenhas são muito particulares, não tendo nenhum objetivo de servir como guia de leituras ou uma visão definitiva e "correta" sobre tais obras. 

RESENHAS DE DISCOS
Música é algo que não passo sem ouvir um dia sequer. Meu gosto musical não se prende a apenas um estilo, mas para o fanzine eu procurei manter o material resenhado restrito a alguns estilos: black metal, power electronics, noise e dark ambient. Para o primeiro número as resenhas ficaram em sua esmagadora maioria em discos black metal, todavia isso irá mudar para os próximos números, onde os outros estilos citados terão incisivamente mais espaço. Por uma razão: são estilos onde vejo borbulhar o desejo de ir além da simples música (ou anti-música, no caso do noise), algo que aprecio fanaticamente. Também contarei com mais algumas pessoas escrevendo resenhas para os números futuros.

MATÉRIA SOBRE A ORDEM DOS NOVE ÂNGULOS (ONA)
Essa foi uma das primeiras ordens que conheci, na época onde os fóruns de discussão do Yahoo! bombavam e a Internet vivia sua infância, aquele tempo quase mítico onde nem o Orkut ainda existia. O extremismo físico de seus ordálios, sua aposta na clandestinidade e em um panteão formado por entidades longínquas e inomináveis conquistaram minha atenção, e eu li tudo o que pude a respeito da ONA ao longo dos anos. Essa matéria é uma espécie de acerto de contas com esse interesse, onde faço uma espécie de linha do tempo da Ordem dos Nove Ângulos, descrevo os tópicos de suas principais obras e a estrutura de seu sistema iniciático. As controvérsias envolvendo as ligações da Ordem com o neonazismo também são tratadas nesse texto, inclusive não se limitando a uma simples exposição de "fatos", mas sim buscando uma visão crítica a respeito do tema. 

NOISE E AFINS
Thiago Miazzo é um amigo que se dedica a produzir noise/harsh e outras (anti)musicalidades, e eu o convidei a escrever uma coluna sobre o tema, buscando abordar obras que tenham mais ou menos relação com temas mágicos/esotéricos. Nessa primeira coluna, que dá o tom de suas participações futuras, escreve um apanhado geral de diversas iniciativas, a maioria nacionais. Já tenho falado com o rapaz sobre como poderemos ampliar a discussão para os números vindouros, de modo mais amplo e radical.

FICÇÃO
São três textos. Um deles, "Nos braços de Nuit", compareceu primeiramente no fanzine "A Primeira Vez", do amigo Márcio Sno, produção que compilou textos onde homens falavam (de modo literal ou inventado) sobre suas primeiras experiências sexuais. Eu gostei muito de escrever esse texto, e pedi ao Sno permissão para inclui-lo no Dissolve, pois via nele certas conexões com o tema geral do fanzine. Adianto a eventuais curiosos que jamais confirmarei se a narrativa corresponde de fato a experiências vividas ou inventadas (e no final das contas isso realmente importa?). Outro é uma carta que escrevi a uma pessoa que gostaria, muito, de ter em meu círculo de amigos, mas que por motivos de força maior jamais terei essa possibilidade. O outro é parte de um projeto mais amplo, que será lentamente desenvolvido nas páginas do Dissolve, projeto que apenas os que tiverem olhos para ver nas entrelinhas entenderão a motivação.

CAPA E CONTRACAPA
Um dos pontos que coloquei como princípio para o Dissolve Coagula foi sempre ter artistas diferentes desenhando a arte das capas e contracapas. Mas não quero apenas contar com o talento artístico: para mim é importante que a pessoa tenha conexões verdadeiras com a espiritualidade canhota e um real interesse pela Força Opositora da Escuridão. Acredito que isso fortalecerá a egregóra que criei em torno dessa publicação. É por isso que pedi para a Paula Rueda fazer a capa dessa primeira edição. Já conhecia o trabalho dela como ilustradora e tatuadora, e eu não podia ter feito melhor escolha para essa edição inaugural do fanzine. Paula captou com perfeição o clima que eu queria dar e fez dois desenhos espetaculares, carregados de simbolismo e densidade. Sua participação também é um marco para dar a esse fanzine ainda muito masculino uma participação feminina de peso, algo que pretendo equilibrar na próxima edição com a participação de mais mulheres em suas páginas. Embora o Sinistro despreze as distinções entre os sexos como meros traços mundanos, vejo que há características energéticas e astrais típicas de cada um, e que pretendo congregar mais e mais nas páginas do Dissolve. 


ÚLTIMAS (E NECESSÁRIAS) PALAVRAS
Todo o processo de montagem foi feito 100% na base de tesoura, régua e cola. Apenas o arquivo final foi fechado em Photoshop, e sem a ajuda do Douglas Utescher da Ugra Press, comparsa em tantas presepadas ao longo dos anos, eu estaria provavelmente a esta hora ainda tentando finalizar o arquivo para enviar à gráfica. Fiquei extremamente satisfeito com o resultado final, pois conseguiu alcançar o nível que eu tinha em mente. Para os próximos números, teremos algumas alterações no esquema da diagramação, mas o compromisso de ser 100% manual está mais do que mantido. É honesto com meus interesses e gostos, além de impregnar cada centímetro da obra com uma "irreprodutibilidade técnica" que gosto muito, uma espécie de aversão em nível simbólico da produção serializada de bugigangas do capitalismo. Ao mesmo tempo, não vejo e não quero fazer desse caráter artesanal algo que tenha estatuto artístico. Foda-se isso! Nada do que é feito no Dissolve Coagula tem intenção de ser meramente arte ou entretenimento. Ele é e sempre será, sem nenhuma modéstia, a cristalização do meu desejo de criar verdadeiras Espadas de Morte, de cujas páginas que escorrerão sangue; páginas que conduzirão mentes pelos territórios inóspitos do questionamento, da dúvida e da incerteza, essas bênçãos da Escuridão; páginas de onde emanações adversárias, transformadas em textos, agirão como venenos nas consciências escravizadas pela Falsa Luz Demiúrgica e instigarão nos portadores da Chama Negra ímpetos de rebelião e ódio.


3.01.2017

Thursatru: o lado sinistro da religiosidade nórdica


Thursatru pode ser definido como uma tradição mágico-religiosa moderna originada da antiga crença escandinava nos poderes de Ginnungagap (o Caos Primordial), poderes esses denominados Thurses (singular Thurs), geralmente traduzidos como “gigantes”. Essa crença ancestral é o substrato do Thursatru, que a desenvolve dentro de uma perspectiva do Caminho da Mão Esquerda e da Gnose Anticósmica. E embora não exista nenhuma evidência concreta de que os povos do norte da Europa adorassem essas forças, o estudo dos textos presentes nas Eddas evidencia que havia uma crença muito bem estabelecida na existência de Ginnungagap e que dele provinha uma série de forças obscuras e poderosas – forças essas que antecediam a criação dos homens e até mesmo a dos deuses. 

A seguir, buscarei resumir os pontos principais dessa tradição, tendo como base o livro þursakyngi volume 1, segunda edição, lançado pela Ixaxaar em 2014. Seu autor, Ekortu, além do livro citado, lançou também o þursakyngi volume 2, que descreve de modo mais aprofundado a gnose de Loki, e também (assinando como Vexior, seu codinome anterior) as obras Panparadox e Gullveigarbók, além de artigos para a revista Clavicula Nox nas edições I, II e IV, todos pela editora Ixaxaar. Você pode acessar o site da editora aqui e ver o (genial) site de Ekortu nesse link aqui.

Para iniciar esse texto, é importante desde já estabelecer uma distinção entre Asatru e Thursatru, pois a similaridade de nomes pode levar a uma falsa conclusão de que este último nada é mais que uma degeneração e versão “malvada” do primeiro.

Detalhe da lombada do livro, com o apuro característico das edições da Ixaxaar

O Asatru nasce na Islândia em 1972 com o intuito de reconstruir a antiga religiosidade nórdico-germânica, tendo como panteão os Ases (deuses da luz e criadores/protetores dos homens, como Odin e Thor) e os Vanires (deuses ligados à fertilidade, como Freya).  Rapidamente se disseminou para outras regiões, sendo reconhecido como religião no seu país de origem e também, alguns anos depois, na Dinamarca e na Noruega.  Ao longo dos anos espalhou-se pelo mundo, alcançando Portugal, Espanha e até mesmo Argentina e Brasil. Mas é nos Estados Unidos que obteve um avanço significativo, com centenas de entidades Asatru espalhadas por todo o território. Esse crescimento teve como impulso tanto o interesse por paganismo iniciado a partir da década de 70 como também, infelizmente, no entusiasmo com que adeptos da supremacia branca ingressaram no Asatru, buscando uma religiosidade que se originasse em suas imaginárias raízes ancestrais (na verdade, um pretexto para dar ao seu ódio certo ar de legitimidade).


O Thursatru não tem absolutamente nada a ver com isso: não busca reconstruir nenhuma religiosidade “autêntica”, mas sim, de modo consciente, criar uma fusão de tradições nórdicas com inovações modernas, acreditando que o sincretismo é não somente fonte de poder, mas também algo que opera em sintonia com o aspecto amórfico e anticósmico dos Thursa. Além disso, o Thursatru não distingue magia de religião (o Asatru é uma religião bastante exotérica) e volta-se radicalmente para a jornada interior do adepto e pela busca de um conhecimento supramundano. É uma tradição cuja perspectiva da existência tem muitas similaridades com a gnóstica, concepção onde os deuses criadores (seja Odin, Jeová, Zeus, Allah, etc) são tiranos responsáveis pelo aprisionamento da essência divina primordial do homem no seu corpo físico. Por isso, qualquer tipo de racismo ou nacionalismo nada tem a ver com Thursatru, posto que nessa tradição a única coisa que importa é o espírito. Embora nascendo com cores regionais, no seio da mitologia de um povo específico, transcendeu essa barreira meramente mundana e se coloca como uma tradição mágico-religiosa universal, aberta a qualquer um cuja devoção seja sincera.

É com base nessas premissas que se funda o objetivo principal do Thursatru: liberar o adepto das amarras cósmicas, entendidas como barreiras para sua evolução espiritual. Essa liberação é obtida através da criação de um nexo onde o adepto pode receber a thursastafir, ou gnose thursa, conhecimento acausal e desconhecido até mesmo pelos deuses Ases. Na criação de tal nexo, a principal dificuldade é vencer o que os textos gnósticos chamam de “intoxicação demiúrgica” (Ekortu faz uma recorrente aproximação entre Thursatru e gnoticismo). Ímpetos destrutivos, hedonismo e busca constante por distração e entretenimento são algumas das características dessa intoxicação, cujo poder aniquilador não conhece limites. O trabalho espiritual na via Thursatru visa opor-se a isso dissolvendo o hugr (ego) e liberando a Chama Negra das amarras demiúrgicas, posto que hugr coloca estreitos limites sobre como você identifica a si mesmo e aos demais (vaidades, desejos, preconceitos, etc – tudo entra aqui). “Consciente” de si mesmo, podemos acreditar que vivemos uma existência plena e livre quando, na verdade, apenas respondemos a estímulos pré-programados. É necessário morrer muitas vezes para vencer a morte e espiritualmente conectar-se com a Luz Thurs que emana dos domínios anticósmicos. Cito um trecho:

"Because of layers of cosmic powers which tie you down onto earth, you must search and find Thursian guidance and assistance; without their blessing, receiving and guidance you will always be a worthless tumor of flesh wandering the earth as a blind and weak slave, superficially loving yourself and your hugr."

Importante destacar aqui que, quando falamos em estabelecer um nexo com os poderes thursa, trata-se de forças fora das determinações de moralidade que conhecemos. Mais do que isso: são forças que agem, de modo radical e odioso, contra a criação - e nós somos parte dela. O trabalho com elas é, portanto, feito de extremos: uma vontade sincera e profunda encontrará gnoses radicalmente transformadoras e liberadoras, enquanto outra que seja vacilante e viciosa obterá um acúmulo de desgraças destrutivas e implacáveis. Ao aprendiz é recomendado cautela, mas também perseverança.


A criação do mundo: Ginnungagap
Nos escritos épicos, os Thurses são identificados com os gigantes primordiais que residem nas regiões limítrofes (e interditas aos deuses demiúrgicos) de Múspelheimr, ao sul, e Nieflheimr, ao norte de Midgard (Terra do Meio, que é o nosso plano causal). 

Em Múspelheimr há as chamas destruidoras da existência, relacionadas com as figuras de Sutr e Loki. O primeiro fica à porta desse reino incandescente, empunhando a espada que liberará as forças do Caos na batalha final de Ragnarök. Já Loki é o emissário do Caos no plano causal, a divindade-gigante que tem como objetivo trazer o distúrbio e a dissolução para o mundo manifestado. Seu papel nas narrativas mitológicas como um ardiloso maquinador de armadilhas para os deuses harmoniza-se com essa concepção.

Nieflheimr é o território da escuridão e do frio implacável. Nele reina suprema Hel, conhecida como “A Negra” (In Svarta), o aspecto feminino e terrível dos Poderes Thursa. Sua ancestralidade está além de qualquer compreensão humana. Cito um trecho do livro:

“The Nifl-powers or Rime-Thurses, Hrímthursar, are primordial powers even their alien world, and they are wise and powerful beyond cosmic comprehension. They are The Ones called ÚR, which is such an old conception that there is no synonym for it in modern English. ÚR could de explained to mean “the very uncontaminated origin of an essence”, and that is what they are: primordial antecedents, Fathers of great grandfathers and Mothers of great grandmothers”.


Esses dois mundos limítrofes são os portais para os elementos dissolutivos da criação que emanam de Ginnungagap – o abismo do Caos Primordial, onde reside o verdadeiro Deus Absconditus (outra concepção gnóstica que Ekortu aplica ao Thursatru). Quando teve início a criação de Asgard pelos Ases, o gigante Aurgelmir penetrou o cosmo através de Ginnungagap e enfrentou os deuses. Na batalha ele foi morto, os Ases despedaçaram o seu corpo e, com ele, fizeram o nosso mundo: seu sangue formou o oceano, os rios e todas as águas existentes; sua carne, o húmus e a terra; seus ossos, as montanhas; e com seus dentes, as rochas e as pedras. Disso é possível concluir que a criação demiúrgica tem um substrato acósmico que permite compreender o mundo de dois modos distintos: um mundano e outro sinistro. Por exemplo, a terra é tanto regida por Freya, deusa da fertilidade e da colheita, como também é, sinistramente, um atributo corporal de Aurgelmir, e pode ser tomada como veículo de comunicação com forças dissolutivas da vida. Nisso se explica também a relação especial que o Culto aos Thurses tem com rios e lagoas, considerados locais onde flui o sangue de Aurgelmir e portais poderosos para conexão com Hel e seus atributos necrosóficos.  

O livro ainda contém indicações práticas de como realizar o culto aos Thursa: montagem do altar, consagração de armas mágicas, correspondência entre elementos para feitura de espaço ritual, etc. Por ser o primeiro grimório de uma (aparente) série de três livros, é uma introdução mais do que completa.

A perspectiva de þursakyngi abriu meu olhar para elementos da mitologia nórdica geralmente negligenciados, estabelecendo paralelos entre os panteões da Europa Central e da Escandinávia que me escapavam. A interpretação de Ekortu, que estabelece uma ligação forte e genuína entre a gnose anticósmica e a crença em Ginnungagap, basilar em Thursatru, é instigante, especialmente a aposta de que no ecletismo e na correlação entre diferentes tradições o adepto encontrará fontes de poder. A todos os interessados pelo Caminho da Mão Esquerda, o Thursatru é uma tradição que vale a pena ser estudada.



10.03.2016

O Herói de Mil Faces: uma leitura pela ótica do Caminho da Mão Esquerda

"O herói de mil faces", do americano Joseph Campbell, que serviu de inspiração para o texto a seguir. Lançado originalmente em 1949.
Falar sobre mitologia nos dias de hoje é falar, basicamente, sobre coisas mortas: as lendas dos deuses e heróis estão lá, no passado remotíssimo, enquanto nós estamos aqui, no palco das catástrofes pós-modernas, e demasiado ocupados para perder tempo com aquelas histórias cheias de poeira. Pelo menos nisso – que é algo que tem a ver com o passado – todas as diferentes definições de mitologia parecem concordar: um esforço desastrado e primitivo para interpretar a natureza, em Frazer; um conjunto de instruções alegóricas tradicionais para adaptar o indivíduo ao grupo, em Durkheim; um sonho grupal e arquetípico que registra as mais obscuras camadas da psique, em Jung; ou ainda um veículo para transmissão de verdades metafísicas, em Coomaraswamy. Durkheim e Frazer, embora com abordagens e objetivos completamente distintos, parecem concordar que o homem atual venceu o universo mitológico, considerado como parte do estágio infantil da humanidade e do qual hoje podemos prescindir – mas será que é isso mesmo? (a própria idéia por trás do desenvolvimento humano ocorrendo por etapas sucessivas, caminhando retilineamente em direção a um reino de esclarecimento infinito, já é bastante questionável). Esse texto, inspirado na leitura do livro “O herói de mil faces”, de Joseph Campbell (1904-1987), tem como proposta colocar alguns pontos sobre a importância das narrativas míticas para os homens de hoje, interpretando o texto de Campbell por uma ótica decisivamente influenciada pelo Caminho da Mão Esquerda.

[IMPORTANTE: Antes de começar o texto, é importante deixar claro: Joseph Campbell era um acadêmico especializado em mitologia comparada, tendo praticado o catolicismo em toda a sua vida. Não tinha, portanto, ligações com nada relacionada à prática da magia, seja de Mão Esquerda ou Direita, A interpretação aqui fornecida não visa aproximar Campbell da Via Sinistra em nenhum momento, mas apenas apontar paralelos entre o caminho iniciático e a sua descrição do monomito heróico. Recebi mensagens alertando que isso não estava muito claro no texto original, e que parecia endossar um certo background de Via Esquerda nas reflexões de Campbell. Ele certamente negaria qualquer tipo de filiação a isso. Considerei apropriado deixar essa advertência para evitar qualquer tipo de confusão.] 

Em primeiro lugar, para que exatamente serve a mitologia? Podemos afirmar, de modo bastante sintético, que a função primária da mitologia é fornecer símbolos que influenciem/reflitam experiências humanas. Essas mitologias, em praticamente todo o mundo, foram base para a criação de ritos os mais diversos possíveis; não havia sequer um aspecto da vivência diária dos povos antigos que não estivesse impregnado de mitos, e portanto de respectivos ritos, dos mais simples até os mais sofisticados – o universo do sagrado era TODO o universo. Além disso, os mitos forneciam base para rituais transformadores, isto é, um conjunto de experiências radicais (individuais ou coletivas) que promoviam mudanças qualitativas na vida da comunidade. Tomemos como exemplo um rito que se repete em praticamente todas as culturas: a passagem da infância para a vida adulta. Esse rito é sempre marcado por uma experiência de provação, seja com dor, habilidade, força, etc – não importa qual seja, é sempre algo que implica em uma espécie de experiência-limite que determine, tão claramente quanto possível, que antes existia uma criança e que, depois, haverá um adulto – um novo ser com deveres para com o grupo, que deve arcar com todo um conjunto de responsabilidades e, também, com o prestígio que ganha através delas. Em suma, valoriza-se esse novo status ontológico como superior ao de criança: liberto dos vínculos materno e paterno, tidos como limitadores, o novo adulto está pronto para seguir o seu próprio caminho.

Ora, no mundo pós-moderno parece que vemos o exato oposto disso: o objetivo não é prescindir das figuras do Pai e da Mãe, mas sim permanecer eternamente uma criança. Não temos mais nenhum rito decisivo em nossa cultura (burguesa e citadina) que determine, claramente, que a infância teve seu fim e a vida adulta começou. É como se vivêssemos sem ter rompido com esse grilhão primevo que é o cordão umbilical, grilhão que todas as culturas pré-modernas intuitivamente aprenderam a destruir com seus rituais de passagem. Eles sabiam (e de que forma souberam será sempre o enigma...) que era preciso traçar uma linha clara entre homens e meninos se se quisesse estabelecer um padrão de vida saudável. Não é o que acontece conosco: ficamos virtualmente infantis mesmo com trinta e poucos anos, para sempre simbolicamente presos nos carinhos ciumentos da Mãe e sob a tutela violenta do Pai. Parece que vem daí a obsessão em parecer jovem, que era algo que, até muito recentemente, animava os lucros da indústria dos cosméticos apenas com dinheiro de mulheres: hoje os próprios homens gastam fortunas com tratamentos de pele, cabelo, etc. E não é apenas aparência: é preciso ter também um “espírito jovem”, e aí vemos pessoas de terceira idade adotando estilos de vida “descolados”, em uma ridícula e desesperada ânsia de inverter o sentido do tempo. Envelhecer é visto como uma derrota, uma vergonha, como algo que pode ser evitado através da vontade. Mantemo-nos presos ao que Campbell chamou de “imagens não-exorcizadas de nossa juventude” e, nessa nostalgia infinita, tornamo-nos incapazes de dar o salto qualitativo necessário para vivenciar a experiência completa de ser adulto.

Não acho que seja possível restabelecer alguma mitologia/rito compensatório que forneça as bases para que os homens e mulheres modernos se tornem adultos em tempo integral. Nessa altura de Kali-Yuga, a materialização da vida alcançou um nível tal de densidade que a experiência profunda que o mito proporciona só está acessível a alguns poucos, enquanto a massa de escravos apenas cresce ad infinitum. Sobre isso, Campbell diz:
“Não se trata apenas da inexistência de locais nos quais os deuses possam se ocultar do telescópio e do microscópio perscrutantes; já não há sociedades do tipo a que os deuses um dia serviram de suporte. A unidade social não é um portador de conteúdo religioso, mas uma organização econômico-política. Seus ideais não são os da pantomima hierática – que torna visíveis, na terra, as formas do céu [ou do inferno, eu acrescento :-)] – mas sim os ideais do Estado secular, numa dura e incansável competição por supremacia material e por recursos. Já não existem, exceto em áreas ainda não exploradas, sociedades isoladas, limitadas em termos oníricos no âmbito de m horizonte mitologicamente carregado.”
A tarefa de realizar essa experiência profunda que o mito proporciona será, na situação atual, sempre uma aventura pessoal, que guarda muitas similaridades com o que Campbell denominou como “jornada do herói” – jornada essa que tem incríveis similaridades com a iniciação dentro do Caminho da Mão Esquerda. Mais uma vez, Campbell tem a algo a dizer:
“Naqueles períodos [o das sociedades impregnadas de mitos] todo o sentido residia no grupo, nas grandes formas anônimas, e não havia nenhum sentido no indivíduo com a capacidade de se expressar; hoje, não há nenhum sentido no grupo – nenhum sentido no mundo: tudo está no indivíduo”.
Joseph Campbell
Estudando milhares de narrativas heroicas das mais diferentes culturas em todo o globo, Campbell conseguiu identificar elementos que se repetiam sempre, como peças de um quebra-cabeça, formando um percurso que, apesar das particularidades de cada cultura específica, mostrou-se incrivelmente uniforme. De modo extremamente sintético, esse percurso cumpre três grandes etapas: separação do mundo cotidiano, iniciação em um mundo prodigioso de mistérios e perigos, retorno ao mundo cotidiano (com o herói renovado pela experiência no mundo prodigioso). Cada uma dessas mega-etapas tem seus estágios, descritos a seguir.


Separação – o início da jornada

Quatro diferentes estágios marcam essa primeira etapa:

1) o chamado para a aventura: em sua vida cotidiana e de modo inesperado, o herói é convocado para liderar uma aventura em território desconhecido/perigoso. Traçando um paralelo com o Caminho da Mão Esquerda, é quando o futuro iniciado tem a sua primeira inspiração a seguir a Senda Obscura: as primeiras leituras que despertam o seu interesse pelo mundo mágicko, sonhos recorrentes e inexplicáveis, situações onde nada parece fazer sentido, etc. Como em tudo nesse caminho, aqui é apenas um lampejar que, no turbilhão do mundo cotidiano, surge como algo impactante e inesperado;

2) a negação do chamado: o herói se recusa a aceitar o chamado; sente medo e angústia frente aos desafios que se colocam a sua frente; não se considera preparado para o que está por vir. É o temor de dar o primeiro passo rumo ao desconhecido que é inerente ao gênero humano – e responsável por incontáveis histórias de sofrimento e covardia;

3) o auxílio sobrenatural: uma entidade/deus/espírito protetor aparece para o herói, para encorajá-lo a seguir adiante. Aqui já entramos no terreno da experiência, ou melhor, da pré-experiência com o Sobrenatural, que irá se aprofundar nas próximas etapas;

4) o cruzamento do limiar: o herói cruza o limite entre o mundo cotidiano e o mundo sobrenatural, mundo pleno de perigos e leis desconhecidas. É o primeiro passo no terreno da iniciação: isolando-se das relações triviais do universo mundano, ele adentra um mundo onde as massas temem ir. Esse mundo, repleto de perigos desconhecidos, é também um mundo pleno de poder e conhecimento – em geral mais antigos e potentes que os do mundo cotidiano.

Iniciação – a imersão em um mundo de perigos desconhecidos

O herói superou as limitações de seu cotidiano mundo e adentra um universo desconhecido. Contando apenas com sua coragem e (por vezes) auxílio de seu protetor mágico (auxílio que pode ser uma arma, um mapa, um feitiço, etc), é a etapa mais longa da jornada do herói e compreende oito estágios:

1) a barriga da baleia: referência ao episódio bíblico do profeta Jonas, que é engolido e permanece três dias e três noite no ventre de um “grande peixe” (a tradição considera que se trata de uma baleia), sendo vomitado três dias depois com vida.  É o processo de reclusão que, após romper com o mundo profano, o neófito precisa passar para amadurecer sua vontade de transformar-se em um novo ser após a iniciação. No Caminho da Mão Esquerda, pode-se considerar como o período de estudo preliminares que todos devem empreender antes de iniciar as práticas mágickas propriamente ditas;

2) provas: são os desafios que o herói precisa superar para alcançar o êxito em sua jornada. Em uma perspectiva de Mão Esquerda, são as diferentes habilidades mágickas que devem ser dominadas – desde as mais simples (concentração, meditação, invocação, evocação, etc) até as mais complexas;

3) o encontro com a Deusa: o herói encontra um amor transcendente com um ser sobrenatural, amor que consegue se mostrar como total, experiência que o aproxima do encontro com a Mãe Primordial. No caminho da Mão Esquerda, o papel do divino feminino é fundamental, exaltada como a Mãe Negra nas figuras de Lilith e Kali, consideradas como “a fonte para o qual o magista obscuro regressa a fim de renascer como seu próprio filho e sua própria criação” (Thomas Karlsson em “Cabala, Qliphot e Magia Goética”, editora Coph Nia, 2015 - acesse o site da editora aqui);

4) tentação: um chamado tentador do mundo profano procura, nesse estágio, desviar o herói de sua aventura e fazê-lo voltar ao seu cotidiano prosaico. Tomando a forma de prazeres sensuais, riqueza, tranquilidade, etc, essa tentação busca potencializar as dúvidas presentes no coração do herói. Para o adepto da Mão Esquerda, são as provações que se colocam em seu caminho, seja sob a forma da incompreensão de familiares, cônjuges, amigos, etc (nisso podemos considerar a atuação de forças demiúrgicas, que atuam como focos de dispersão para o adepto com a intenção de retirá-lo da Senda Obscura – não é preciso comentar a respeito do poder dessas forças), seja por resultado de suas operações com as forças obscuras, forças que o colocam à prova para testar sua determinação;

5) confronto com o Pai: é o ponto central da jornada da iniciação. Aqui o herói entra em confronto de morte contra o ser que detém o poder sobre sua vida. Em muitas mitologias trata-se ou do próprio pai do herói, ou de uma figura com nítidos traços paternos. Segundo Campbell:
“O problema do herói que vai ao encontro do pai consiste em abrir sua alma além do temor, num grau que o torne pronto a compreender de que forma as repugnantes e insanas tragédias desse vasto e implacável cosmo são completamente validadas na majestade do ser”.
Essa compreensão profunda, no Caminho da Mão Direita, leva em seu ápice no alcance de Kether, o topo da Árvore da Vida na Cabala Sephirótica, ou seja, o tornar-se uno com Deus. No Caminho da Mão Esquerda, porém, essa compreensão leva não a integração com o divino, mas a uma rebelião contra ele, cujo propósito é despertar as potencialidades divinas adormecidas do indivíduo para, assim, liberar-se do jugo demiúrgico.
6) apostasis: termo grego que significa literalmente “estar longe de”, originou o termo “apostasia”, cuja acepção é o afastamento definitivo e deliberado da fé anteriormente professada. Aqui, o herói experimenta uma espécie de morte ritual que o libera do mundo condicional e o coloca em contato com potências sobre-humanas. Cito mais uma vez, e integralmente, Campbell:
“A agonia da ultrapassagem das limitações pessoais é a agonia do crescimento espiritual. A arte, a literatura, o mito, o culto, a filosofia e as disciplinas ascéticas são instrumentos destinados a auxiliar o indivíduo a ultrapassar os horizontes que o limitam e a alcançar esferas de percepção em permanente crescimento. Enquanto ele cruza limiar após limiar, e conquista dragão após dragão, aumenta a estatura da divindade que ele convoca, em seu desejo mais exaltado, até subsumir todo o cosmo. Por fim, a mente quebra a esfera limitadora do cosmo e alcança uma percepção que transcende todas as experiências da forma – todos os simbolismos, todas as divindades: a percepção do vazio inelutável”.

Os mitos transportam nossas mentes e espíritos não para acima deles, como a Mão Direita, ao que parece, acredita: os mitos nos transportam através deles para o imenso Vazio. Todos os deuses existem e não existem ao mesmo tempo. 

ritual de iniciação de Santeria

O estudo multicultural permite identificar que os mitos adotaram diferentes configurações de acordo com o sabor local, como forma de adaptação ao contexto sócio-histórico, mas a substância que os anima é, essencialmente, a mesma (ou pelo menos da mesma fonte primeva). Transformada em símbolo, essa substância torna-se mais inteligível e, portanto, acessível de modo mais amplo. Isso tem um motivo: nem todos estão preparados para suportar o aspecto terrífico da divindade. Se não houvesse o filtro do símbolo, era como se a todos os homens fosse permitido o contato com a divindade que fazemos via iniciação sem a preparação preliminar que o neófito percorreu. Asenath Manson, prolífica autora e fundadora do Temple of Ascending Flame, conseguiu expressar em poucas palavrar o “peso” que se abate sobre o iniciado:
"True initiation involves changes significant enough to turn the whole world upside down. The world around is shattered, all beliefs and values are questioned and lose their meaning, and the initiate feels like the whole life is falling apart, while he can only watch helplessly, without being able to stop this. In this process the initiate often goes through a breakdown, a dark night of the soul, when the ego is temporarily dissolved and consciousness is being rebuilt in order to enter the further stage of spiritual ascent." 
Não é preciso refletir muito para saber que poucos suportariam tal peso. O Caminho da Mão Esquerda é uma jornada interior, e requer do adepto uma força de vontade descomunal para mergulhar nos mais obscuros aspectos de si mesmo e dos mundos astrais;

7) o benefício final: aqui o herói alcança o objetivo de sua jornada (a obtenção de uma arma mágica, de um poder sobrenatural, etc). Toda a jornada tem aqui seu ápice vitorioso. Para o iniciado, é o final da “noite escura da alma” e o encontro dos primeiros ordálios;

8) recusa do retorno: após encontrar essa fonte de poder no Outro Mundo, em algumas sagas o herói se nega a voltar ao mundo cotidiano.  Enamorado pelo poder alcançado, deseja permanecer nesse mundo além para usufruir das benesses de seu novo estágio.

Retorno – um novo ser volta ao mundo cotidiano

O herói que saiu do mundo cotidiano no início da jornada não é o mesmo que agora retorna. A experiência no além operou nele uma transformação – radical e profunda. Essa última etapa tem cinco estágios:

1) o vôo mágico: o herói precisa escapar do mundo prodigioso tendo consigo a fonte do poder adquirido (arma, livro, pedra preciosa, etc). Essa escapada é tão perigosa quanto o início da trajetória;

2) salvamento vindo de fora: muitas vezes ocorre que, para empreender essa fuga, o herói precisa contar com a ajuda de alguém/algum poder para conseguir se safar dos perigos vindouros;

3) cruzando o limite do retorno: é a volta para o mundo cotidiano. Renovado pelas prévias experiências, o herói pode oferecer agora o conhecimento/poder obtido em sua jornada para a comunidade;

4) domínio dos dois mundos: o poder obtido pelo herói o coloca em situação onde seu conhecimento lhe possibilita uma visão equilibrada entre os mundos cotidiano e prodigioso (material e espiritual, externo e interno). Do ponto de vista do Caminho da Mão Esquerda, é o domínio sobre as práticas mágickas, a evolução em um sentido amplo e abrangente para além das condicionantes materiais;

5) liberdade: o domínio obtido sobre os mundos externo e interno possibilita ao herói uma sensação de liberdade total. Ele não teme mais a morte e, portanto, pode viver em plenitude. Sob a ótica do Caminho da Mão Direita e da Mão Esquerda, aqui é quando o iniciado alcança o nível de Kether, ou seja, a suprema integração com o divino.

É nesse ponto de nossa trajetória que ficam muito claras as diferenças de objetivo entre a Via Destra e a Via Sinistra: se a primeira, como foi dito anteriormente, busca a integração com o divino, a segunda tem como meta tornar-se um deus. Por isso, o magista obscuro que alcança o ponto máximo de seu desenvolvimento ao chegar em Thaumiel, qliphoth que é o Olho do Dragão e o Trono de Lúcifer (e que equilave a Kether na Árvore da Vida), tem diante de si uma decisão: ele pode inverter o sentido da qliphoth e unir-se ao aspecto divino luminoso, entrando em nirvana; pode voltar aos níveis inferiores da Árvore da Morte (um futuro post falará sobre esse assunto com detalhes) e neles encontrar novas fontes de poder e conhecimento; pode também fazer o que Thomas Karlsson chamou de “dar o passo final para fora do universo”, isto é, ir além do condicionamento causal da existência e ir para o plano caótico pré-existencial, de onde provem a mais negra escuridão. Os frutos combinados das árvores da Vida e da Morte em um único diamante negro e indestrutível, que guarda em si a possibilidade de criar novos mundos a partir dele mesmo.

Seja qual for o caminho adotado, o adepto da Via Sinistra está em condições de ir além dos limites traçados pelo Plano Demiúrgico e desenvolver, em plenitude, a centelha divina presente no interior do ser humano. Sua jornada de iniciação – caminho cravejado de desafios e perigos – jamais será algo para o vulgo, assim como as aventuras dos heróis também não eram feitas para o comum dos mortais. A iniciação é, sempre, um caminho para poucos. Exige disciplina, coragem, audácia; uma vontade férrea, que não se curve à preguiça; um olhar impiedoso, mas também pleno de amor; um desejo ígneo que faça a chama negra presente no coração do adepto se transformar em um incêndio de proporções apocalípticas e, em labaredas cada vez mais altas, desintegrar o Cosmos. 

9.04.2016

Introdução à Filosofia do Caminho da Mão Esquerda



Encontrei o texto desse post no Sabedoria Subersiva, excelente blog dedicado ao Caminho da Mão Esquerda em suas mais diferentes manifestações. A autora é a polonesa Asenath Manson, fundadora do Temple of Ascendig Flame, quem tem como objetivo ser "a gate to the Draconian Current, arising from inspiration received from Lucifer and Draconian Gods, and in response to inquiries and expectations of those who wished to walk the Path of the Dragon".  O texto, intitulado "Introdução à Filosofia do Caminho da Mão Esquerda", é um resumo conciso do significado da Via Sinistra, demonstrando o que a diferencia do Caminho da Mão Direita. Além desse aspecto educacional, é também um texto inspirador que pode inflamar os corações dos adeptos a trilharem essa Senda.


Introdução à Filosofia do Caminho da Mão Esquerda

O Caminho da Mão Esquerda é muitas vezes definido como “o caminho interno”, a jornada espiritual de introversão para encontrar o poder e o conhecimento no interior humano. É também uma viagem para a escuridão, o desejo de contato com as forças das trevas que, de acordo com as tradições do Caminho da Mão Esquerda, estão intimamente ligadas com os antigos cultos à natureza, e também conhecidas como correntes lunares.

Mas o que é a “auto-deificação”? É a maior conquista do Caminho da Mão Esquerda.

O desejo de contato com as forças criativas e primordiais do universo foi preservado durante séculos por algumas religiões e tradições mágickas. Nas tradições ocultistas ocidentais, o Caminho da Mão Esquerda é conhecido como satanismo, mas na verdade seu alcance é muito mais amplo. O Caminho da Mão Esquerda, ou a Via Sinistra, é um fluxo que estende as suas raízes em antigos cultos dos deuses das trevas e da natureza, como Dionísio. Acima de tudo, refere-se a cultos femininos, como Hécate, a divindade de noite, da lua e da magia.

O termo Caminho da Mão Esquerda não existe só no ocultismo ocidental, mas também no tantrismo hindu, onde o vama-chara ou Vama Marg (“Caminho da Mão Esquerda”), que é um caminho direto para a divindade muito mais poderoso do que dakashina-chara (“Caminho da mão Direita”). Julius Evola escreve sobre isso em seu livro “The Yoga of Power”:

“Há uma diferença significativa entre os dois caminhos tântricos dos graus superiores, entre o da Mão Direita e da Mão Esquerda (onde ambos estão sob a égide de Shiva - shaivachara), indicada pelo fato de que enquanto na suprema realização, siddhi, própria do primeiro caso, o adepto sempre experimenta “algo acima dele”, na siddhi do caminho da Mão Esquerda ele “torna-se o próprio soberano” (chakravarti, que significa “o que governa o mundo”)”.

A filosofia do Caminho da Mão Esquerda existe em outras tradições. Na Cabala, é o caminho das Qliphoth – que está ligada com os princípios da Árvore da Morte, a meia noite da Árvore da Vida. Na tradição nórdica é o Seid , a arte mágicka de transe para a libertação da alma. Também nos elementos da tradição do vodu o Caminho da Mão Esquerda tem sobrevivido, especialmente nos ritos Petro ou seitas também chamadas de vermelho (thomazos cabrit), baseado em um sistema semelhante ao qliphótico. É semelhante o caso do hinduísmo, onde tais grupos são conhecidos como Aghori. Todas estas tradições contém um processo de iniciação que leva à imortalidade e à divindade através da reafirmação das energias primordiais relacionados com a ideia de escuridão, as correntes lunares femininas e a recriação consciente em harmonia com o universo. Ao mesmo tempo, é o desenvolvimento de uma consciência única e poderosa que existe acima e além da consciência de todos os seres vivos.

O processo de iniciação no Caminho da Mão Esquerda e da Direita.
O caminho da iniciação assumido pelo Caminho da Mão Direita é chamado de Via Sacra. Seu objetivo é a aniquilação dos aspectos do homem (microcosmo) e do Universo (macrocosmo) que são considerados “sombrios”, ruins e indesejáveis, e que separam o homem de Deus. O Caminho da Mão Esquerda, Via sinistra, não evita esses problemas: ao contrário, incentiva a enfrentá-los e a usar o seu poder para a recriação do seu próprio universo. O Caminho da Mão Direita é o caminho da “fuga” para a luz, para longe da escuridão. É um caminho que se concentra apenas em um aspecto: a negação do fato de que a luz não pode existir sem a escuridão. O caos primordial, a partir do qual o universo surgiu, era um amálgama de todos os opostos,: de luz e escuridão, fogo e água, terra, ar e outros elementos que foram determinados e divididos pelo “ato da criação” para se tornar realidade que temos à nossa volta. Isto ocorre por meio da polarização dos opostos e está baseado na dualidade cósmica, que precisa reunir todos esses elementos para refazer a divindade. Para o Caminho da Mão Direita isso não é possível, uma vez que visa aniquilar o indesejado macro / microcosmo ao invés de buscar um equilíbrio entre estes aspectos. É diferente no caso do Caminho da Mão Esquerda, caminho iniciático com base na fórmula de alquimia “solve et coagula” (“dissolver e preservar”) e o confronto inclusive com aqueles aspectos que são reconhecidos como “negativos” pelo Caminho da Mão Direita. Em termos cabalísticos, os seguidores do Caminho da Mão Direita escolhem caminhar em uma “escala” para os mais altos níveis da Árvore da Vida (em cujo cimo está Kether). O mago do Caminho da Mão Esquerda escolhe o caminho das qliphoth da Árvore da Noite. Enquanto os adeptos do Caminho da Mão Direita trabalham só com um lado simbólico da Árvore da Vida, os praticantes do Caminho da Mão Esquerda trabalham com ambos.

Quando o mago do Caminho da Mão Esquerda atinge o nível de Kether, ele também alcança Thaumiel, a qliphoth gêmea representando os altos níveis de desenvolvimento alquímico (divindade), ao mesmo tempo. O Caminho da Mão Esquerda é o caminho do equilíbrio entre forças opostas de existência, do claro e escuro, extáticos e dinâmicos, forças destrutivas e criativas, entendidas como complementares e não podendo existir sem a outra. O equilíbrio entre elas é fonte de sabedoria e poder. A luz representa nascimento e criação, enquanto a escuridão representa morte, destruição e retorno à matriz da criação. Juntas, essas forças são a fonte de todas as formas de vida e de todo o tipo de energia que precisa de duas forças opostas para existir. A negação de uma é a negação da própria vida:

“O mago pretende tornar-se o centro da criação e destruição, uma manifestação viva das forças do caos no reino da dualidade, um microcosmo completo, um deus.”
É por isso que um dos principais símbolos do Caminho da Mão Esquerda é o Dragão ou Serpente, que representa a unidade de todos os opostos como Ouroboros, a serpente que morde a própria cauda. E contem os elementos tanto do sexo feminino e masculino, ativos e passivos, criando e dando vida e devorando a si mesmo. Ouroboros representa o famoso princípio hermético “Assim como acima, assim está abaixo”. Esta regra refere-se à relação entre o homem e o mundo que nos rodeia. À medida que o mundo contém muitos princípios diferentes, o homem não é uma unidade. Peter J. Carroll escreveu que o ego do homem não é homogêneo, mas uma parte composta de inúmeras partes da consciência de outros seres. A psique não tem um centro; não algo único, mas sim uma mistura de variados elementos. Alguns deles tendem a ficar juntos, criando um senso de ego. Muitas outras tradições mágicas vêem o homem de uma forma similar. A síntese das partes, a criação de um ser humano, a principal conquista do processo alquímico conhecido como Opus Magnum.

Antinomianismo
Antinomianismo é uma atitude de oposição às normas e valores comumente aceitos e é um importante elemento do Caminho da Mão Esquerda.

Antinomianismo é a única maneira de rejeitar os valores da massa que cresceu no mundo em que vivemos. O Caminho da Mão Esquerda refere-se ao antinomianismo do caminho espiritual, é a oposição a/os deus/deuses dominantes dos sistemas religiosos e a busca da divindade individual. Para magos do Caminho da Mão Esquerda, os deuses são principalmente seres arquetípicos, relacionados com diferentes aspectos do universo e da consciência humana. Um praticante pode sair do paradigma aceito que reconhece essas forças como superiores. É essencial sair do quadro estreito estabelecido pelas religiões de massa que são o obstáculo para o progresso espiritual individual. A aceitação passiva da ordem imposta leva à estagnação. O Caminho da Mão Direita busca a integração com este fim, e é caracterizada pela extroversão (exposição ao mundo exterior). No entendimento religioso e místico, significa união com o Deus transcendente que está acima de todos os seguidores. Neste caso, a pessoa tem que ter como aspiração individual se tornar um escravo completo de forças superiores. É completamente diferente para o Caminho da Mão Esquerda, uma vez que é caracterizada por uma profunda introversão (uma viagem iniciática pela psique em busca da divindade).

A auto-deificação.
Uma das questões mais duvidosas ainda deve ser respondida: o que faz o homem se tornar um Deus? “Divindade” pode ser entendida de formas diferentes. Deve ser lembrado que a realidade que nos cerca é uma questão de como se percebe as forças existentes no universo. O mundo está fora de controle para o homem, seu inconsciente e seus poderes ocultos. O processo alquímico de iniciação que o adepto do Caminho da Mão Esquerda é submetido libera gradualmente estes poderes. O confronto com os aspectos individuais da consciência dá uma visão em profundidade da personalidade e fornece conhecimento sobre nós mesmos e o mundo ao nosso redor. Conhecimento e compreensão das forças que são partes de nós e do universo que nos permite viver a vida de acordo com a nossa vontade. Para isso, é essencial que passe por um processo difícil de transmutação alquímica interminável que começa no interior humano.

Um mago do Caminho da Mão Esquerda deve reconhecer e explorar o  interior obscuro para iluminá-lo com a luz do conhecimento e da compreensão. Sabedoria no Caminho da Mão Direita é em uma só via, ou seja, incompleta. De acordo com as religiões monoteístas, “ver Deus” significa experimentar a cognição de uma parte do paradigma da consciência humana. Mas a experiência completa também significa “ver o diabo”. “A união final com Deus”, a última conquista do Caminho da Mão Direita, significa a união da consciência individual com a consciência coletiva. Aquele que está apto a preservar a sua integridade e unidade, deve resistir ao poder da consciência coletiva. Como Peter Carroll disse, na morte a força da vida individual é reabsorvida pela “força da vida deste mundo que se faz conhecida por nós como Baphomet”. Para as religiões monoteístas esta experiência é a união com Deus. Para o mágicko é “ser comido pelo Diabo em sua busca deliberada de liberdade”.

De acordo com a filosofia do Caminho da Direita, não se pode opor-se a Deus/poder superior. Os seguidores do Caminho da Mão Esquerda não partilham desta opinião.

O exílio simbólico do homem do Jardim do Éden, como no mito da queda de Lúcifer, representa a busca da divindade individual, e a escuridão se torna uma metáfora que transcende além das limitações impostas por Deus. Na escuridão o homem brilha com sua própria luz, criando seu próprio mundo. A viagem através da escuridão também é a evolução espiritual do homem. O Jardim do Éden é uma fase da infância, o tempo em que o homem se sente seguro e dependente de forças superiores. Sair do Jardim do Éden é um passo em direção à maturidade, independência e liberdade, mas também um passo na direção da responsabilidade, quando o homem começa a decidir sobre sua própria vida. Por isso, entrar no Caminho da Mão Esquerda e andar por ele significa abandonar a segurança da luz e ver o desconhecido – e assim descer no abismo da escuridão e lá encontrar a liberdade e a divindade.

Asenath Mason. Lodge Magan.