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12.26.2015

Catolicismo pagão, paganismo católico: a origem do Natal



Encontrei o texto abaixo em uma postagem do Facebook. É um texto muito bom, mesmo que demasiado superficial e incorreto em algumas partes (Mitra não era largamente cultuado em Roma, e nem a conversão de Constantino foi algo maquiavélico como fica sugerido: essa tese foi destruída por Paul Veyne em livro que já escrevi sobre aqui), cumpre maravilhosamente a função de mostrar que o cristianismo - o catolicismo em especial - tem muito mais "paganismo" do que inicialmente aparenta. 

Seria um pecado perder esse texto para a espiral de lixo que é o Facebook, então colocá-lo aqui é uma forma de deixá-lo mais facilmente acessível no futuro.

Sem mais delongas, eis o texto:

Antes de fazer qualquer julgamento sobre esta imagem [NOTA: a imagem referida é a que está no topo desse post], conheça a história e descobrirá que a divindade celebrada no dia 25 de dezembro não se resume ao homem Jesus, mas à fusão e incorporação de vários Deuses solares muito anteriores ao Cristo que hoje é conhecido.

Se voltássemos 2 mil anos no tempo, Roma estaria festa. Eram os preparativos para os festejos do Deus solar Mithra, o filho do grande Deus Ahura Mazda que simbolicamente vencia o Touro. Seu aniversário era celebrado nos dias 25 de dezembro, ou seja, 3 dias depois do solstício de inverno do Hemisfério Norte. Em diversas mitologias pagãs ancestrais, o solstício de inverno representava o nascimento do Deus-Sol. Afinal, é neste momento que o sol encontra-se no ponto mais distante com relação à latitude da Terra e por isto ocorre o fenômeno da noite mais longa e escura do ano. À medida que o sol vai aproximando-se de seu ponto mais alto visto a partir da Terra, ocorre o fenômeno oposto: o dia começa a ficar mais longo até que no solstício de verão ele chega ao apogeu da iluminação no dia mais longo do ano. E assim, neste ciclo infinito, os antigos comemoravam os ciclos solares com os mais variados festejos, temperados pelos elementos culturais e geográficos de cada povo.

Roma sempre fora um império que promovia a tolerância e a liberdade religiosa, mas isto se tornou um problema para os planos de dominação patrícia, pois as revoltas regionais baseavam-se nas identidades oriundas das religiões provinciais. O imperador Constantino pediu que seus correlegionários pesquisassem qual seria a melhor maneira de criar uma ideologia suficientemente forte para manter as províncias romanas coesas e eles chegaram à conclusão de que o cristianismo seria uma religião adequada a tais fins, desde que devidamente adaptada.

Constantino formulou uma lenda em torno de sua conversão ao cristianismo e no ano de 325, realizou um concílio com os bispos aliados do projeto imperial. Estes bispos modificaram completamente o cristianismo, embutindo à figura de Jesus diversos elementos pagãos. Foram escolhidos 4 evangelhos para dizer a "verdade incontestável" da nova religião e todos os outros seriam considerados "apócrifos" e, portanto, proibidos, queimados e banidos sob pena de morte para os que os preservassem. Jesus, que fora um judeu reformista do século I, deveria ser completamente modificado de sua originalidade e os livros que o descreviam passaram a ser adulterados para coadná-los ao projeto romano. Nos evangelhos reinventados, foram incluídas passagens que exaltassem Roma tais como "dai a César o que é de César", a lavagem de mãos de Pilatos e elementos de outros profetas ou divindades foram atribuídos a Jesus. Por exemplo, Apolônio de Tyana, o mensageiro do Deus Apolo, era conhecido por multiplicar os peixes, transformar vinho em água e ressuscitar mortos.

O calendário oficial também começaria a ser modificado. As festas associadas aos Deuses pagãos começaram a ser cristianizadas, num processo que durou quase 2 milênios. Ao mesmo tempo em que se destruía a memória pagã, embutia seus símbolos e significados no cristianismo, a religião oficial do império, criada para atender aos interesses da elite escravocrata romana. Um banho de sangue varreu a Europa, norte da África e Oriente Médio para a imposição do cristianismo e com o édito do imperador Teodósio, todos os cultos pagãos foram proibidos, passando a ser considerado "bruxaria" e, portanto, passível de pena de morte.

Mas não se consegue destruir facilmente algo que está profundamente enraizado, mesmo por aqueles que tenham o monopólio das armas e da violência. Assim, era preciso desconstruir os cultos antigos e criar algo que fosse abjeto e assustador, um personagem que seria a base para a destruição dos cultos pagãos: o diabo. Este ser deveria incluir nele características dos Deuses pagãos e a referência seria o Deus greco-romano Pã, com chifre, casco e cavanhaque de bode. Pã, que era o Deus da alegria, da natureza e dos prazeres da vida, foi convertido no oposto ao Cristo inventado, que era descrito como sério, assexuado e símbolo da dominação da cidade sobre o campo. A nova entidade maléfica incorporaria também o tridente de Posseidon, o popular Deus dos mares. Pelos quatro ventos a igreja espalho que Pã morrera e que em seu lugar assumira o demônio que não tinha a beleza e a alegria do Deus-bode, mas a maldade de um ser que representava tudo que deveria ser evitado.

Com a queda do império romano, a igreja católica manteve as estruturas políticas e militares do Estado sob seu controle. Agora ela passaria a desenhar a Europa medieval à sua imagem e semelhança, implantando o feudalismo à medida que convertia reis e nobres, forçadamente ou baseada na troca de interesses. A idade das trevas estava instalada e, com as grandes navegações, chegaram ao continente americano e assim o cristianismo foi implantado para colonizar o território e submeter os índios à vontade do conquistador.

Esta imagem, portanto, resgata o "Cristo" verdadeiro: uma combinação de Jesus com Mithra e outras divindades solares como o Deus grego Apolo e o Deus egípcio Rá. Também reconcilia duas divindades associadas ao amor, Jesus e Pã, sendo o segundo detentor de chifres que representam a força animal, o poder natural. Esta é, portanto, a mais completa e lúcida imagem para representar o Deus Sol que morre durante o outono e renasce no solstício de inverno. É o Deus imolado, sacrificado, mas que triunfa sobre as trevas. É o Deus que ao longo do ano percorre as 12 constelações do zodíaco (a eclíptica), que pode ser chamada de 12 apóstolos. É a divindade que oferece o sangue e a carne, como fazia o Deus Dionísio. É o Deus que tem uma esposa, uma Deusa que é a Mãe-Natureza, que foi proibida de ser cultuada, pois na nova religião o que vale são as leis do patriarcado.

Mas ainda há um problema que permaneceu nisto tudo. O calendário cristão gregoriano foi criado para o hemisfério norte e enquanto lá eles celebram o inverno, aqui vivemos em pleno verão. O natal aqui deveria acontecer em torno de 24 de junho, quando se festeja o dia de São João. Para completar, o capitalismo inventou o consumismo como signo desta data e, portanto, pouco restou a originalidade desta festa.

Aos que tiverem a compreensão da natureza como sagrada e das divindades solares como representação da força criadora da vida, esta imagem é a mais bela representação do Deus que todo ano nasce, morre e ressuscita no terceiro dia após o solstício de inverno.

Créditos da imagem: Caroline Jamhour.

Algumas indicações de leitura: Do ponto de vista do mito, Mircea Eliade, Joseph Campbell e a enciclopédia chamada "Mitologia: mitos e lendas de todo o mundo". Sobre o paganismo, Gerard Gardiner, Janet e Stewart Farrar, Claudiney Pietro. Historiadores romanos antigos tem o Flavius Josephus, Tito Livio e Plutarco, além do próprio Julio César. Dos contemporâneos, Paul Veyne, Jean Pierre Vernant e Moses Finley. Sobre a Europa medieval tem o Le Goff e o Perry Anderson. Filosofia: Nietzsche, Feuerbach, Russell e Marx. Há algumas publicações sobre a história das religiões e da bíblia que servem como introdutórias e também alguns compêndios da história da igreja. O volume sobre o Império Romano da História da Vida Privada possui boas referências. Um pequeno livro que vale a pena citar: "O diabo no imaginário cristão" de Carlos Nogueira. Por fim, "O Livro Negro do Cristianismo".

Indicações de documentários:
Os Rivais de Jesus (NatGeo); Zeitgeist (há vários erros, mas alerta para informações importantes); Augustus (sobre o Império Romano); Roma (ascenção e queda).

6.15.2012

In hoc signo vinces - Paul Veyne e o cristianismo


satanismo popular-fudido

29 de outubro do ano 312: na Ponte Mílvia, a cerca de 15 quilômetros de Roma, o exército do general Constantino enfrenta os soldados de Maxêncio pelo controle da metade ocidental do Império. Constantino estava em defasagem numérica: algumas fontes indicam que para cada homem de seu exército, Maxêncio contava com quinze. Mesmo assim, Constantino empreende o ataque – e vence. Sagra-se Imperador de Roma e atribui a vitória não ao valor de seus homens, não a um golpe de sorte, mas a um único e grandioso motivo: a vontade de Deus. É nesse momento que nasce o Cristianismo.

Afirmar que o cristianismo nasce em 29 de outubro de 312 d.C. parece ser um erro conceitual: passados já quase três séculos desde a morte de Jesus, não existiam milhões de cristãos em todo o Império? A Igreja já não era uma instituição respeitada, com homens poderosos em suas fileiras? Os deuses do paganismo não eram encarados, e isso desde Virgílio, como simples mitologia esvaziada de qualquer realidade? Ao menos era mais ou menos isso o que eu sempre tinha ouvido: o cristianismo, evoluindo lentamente, minou as reservas espirituais do paganismo e tornou-se a religião oficial do Império Romano e, por conseqüência, virtualmente de todo o mundo. É justamente essa tese que o historiador francês Paul Veyne contesta e maciçamente destrói no livro “Quando o nosso mundo se tornou cristão”. Esse post é uma tentativa mais do que modesta de comentar alguns pontos da obra lançada em 2007 (tenho a tradução em português de Portugal de 2009).

A tese de Veyne é, em certa medida, bem simples: sem Constantino, o cristianismo teria permanecido uma seita de vanguarda. O Império estava repleto de outras crenças e, nos tempos da batalha da Ponte Mílvia, as perseguições aos cristãos não aconteciam mais.  Ao mesmo tempo, é enganoso imaginar que o cristianismo estava minando as crenças pagãs: em 312 d.C., apenas 5% do território romano estava cristianizado. Contudo, 80 anos depois, o cristianismo tornou-se a religião oficial de todo o Império. Como explicar uma expansão assustadoramente rápida?  

Os fatores são variadíssimos, mas um ponto chave na tese de Veyne é que, com Constantino, o cristianismo não era a religião do Império, mas a religião do imperador: sabendo-se senhor de massas amplamente pagãs (e como todas as massas, contrárias a mudanças bruscas em sua meia vida de homens-gado) o imperador soube usar de sua influência para, gradativamente, ir dotando de cada vez mais poder no sistema imperial a instituição mais longeva de todos os tempos – a Igreja Católica. Apesar de não excluir os pagãos de seu séquito de conselheiros e oficiais, Constantino contava com muitos cristãos para as funções mais importantes dentro das hierarquias imperiais. Em seus (numerosíssimos) éditos, fazia questão de afirmar as vantagens de sua crença e, ainda que indiretamente, instituía mudanças que preparavam o advento do cristianismo como religião de todos. Por exemplo, em 312 ele impôs ao Império a criação do descanso dominical: a vida ainda era pagã, a moral pública e privada ainda era a da Roma vetusta, mas com essa simples instituição de um dia dedicado ao descanso – e simbolicamente o domingo, o Dominus, dia do Senhor – Constantino colocou certo ritmo cristão a um cotidiano que ainda não o era (e pensar que, até hoje, o domingo é o dia do descanso oficial para bilhões de seres humanos, chega a ser espantoso). Constantino parece agir com um espírito engenhoso, visionário até, em sua preparação algo silenciosa de condições para a futura hegemonia cristã.


Mas não foi apenas Constantino o responsável pela vitória do cristianismo: a crença em si mesma possui certas “qualidades competitivas” em relação ao paganismo.  A primeira é a sua atualidade histórica: as histórias de Cristo e seus seguidores eram recentes, eventos passados há cem, duzentos anos. Os mitos do paganismo estavam distantes no tempo, nenhum homem era contemporâneo das façanhas que os deuses desempenhavam em suas visitas ao mundo dos homens, que não aconteciam mais há séculos. Já o cristianismo tinha seus mártires, os milagres de homens santos, o testemunho dos perseguidos que viram maravilhas. Há também a relação amorosa e próxima do cristão com o divino: não basta se dizer cristão, mas é vital proclamar o amor que se tem a Deus, que sempre é um amor em retribuição ao que Ele ofereceu a todos os homens: um pagão poderia muito bem ser um fervoroso adepto de Marte sem nunca dizer que o amava, pelo simples fato de que isso era impensável no paganismo.  E muito menos havia no paganismo a universalidade cristã: o paganismo nunca foi igualitário, e mantinha ritos específicos para aristocratas e outros para a plebe; já o cristianismo tinha o conceito de conversão: todos os que aceitam o Deus Vivo serão salvos. Mas a vantagem competitiva que me parece a mais forte (Veyne também a salienta) é a transcendentalidade para além da narrativa mitológica: o cristão é um indivíduo convicto de que a vida eterna, a Salvação, é uma realidade tão forte quanto o seu próprio corpo. Citando Veyne, com o cristianismo “a nossa existência sobre a terra já não apresentava o absurdo de uma breve passagem entre dois nadas”; na época de Constantino, o debate sobre o que existia após a morte era o grande debate, e nada no paganismo se assemelhava à idéia cristã da “salvação”. Os deuses pagãos pareciam completamente distantes: quando muito favoreciam uma colheita, faziam vencer uma guerra, curavam uma doença; o Deus dos cristãos ouvia as preces de todos, confortava os corações, prometia uma vida de eterno deleite ao seu lado após a morte. Para alguém que estivesse em apuros, desiludido de tudo e todos, ir a uma igreja parecia uma alternativa melhor do que sacrificar uma pomba a Júpiter; na igreja, em comunhão com outros cristãos, todos seus irmãos, suportar o mundo de repente se tornava mais fácil.

Outro ponto onde Veyne investe em polêmica: certo discurso coloca o cristianismo como uma religião monoteísta e, portanto, superior ao politeísmo, colocado como algo mais “arcaico”, menos “civilizado”. Nada mais equivocado: vale lembrar que o Deus Uno cristão é, ao mesmo tempo, três (Pai, Filho e Espírito Santo); que a figura dos santos é imensamente forte no catolicismo, e certas devoções os colocam no mesmo patamar dos pequenos deuses do paganismo; que Maria, mãe de Jesus, que nos evangelhos tem um papel não mais que secundário, ocupando algumas poucas páginas, no catolicismo ganha o epíteto de Mãe de Todos os Homens, em uma espécie de re-significação do culto à Grande Mãe de eras ainda mais afastadas. Não é, portanto, por seu pretenso “monoteísmo” que o cristianismo vence, mas pelos demais elencados. Apesar disso, é certo que a religião de um deus único é, em comparação com a miríade de deuses do paganismo, uma “religião mais forte”. Devido a isso, certa crítica de esquerda coloca o monoteísmo como algo menos “democrático” que o politeísmo; Veyne rebate isso muito bem, ao dizer que “não é o monoteísmo que pode tornar ameaçadora uma religião, mas o imperialismo de sua verdade” (grifo meu). E é aí que está a diferença essencial entre o “monoteísmo cristão” e o paganismo: enquanto que, em um debate qualquer, um devoto de Júpiter poderia falar para um devoto de Vênus que “o meu deus é muito mais poderoso que o seu”, um cristão falaria de modo sutilmente diferente que “o meu Deus é o verdadeiro, e os seus são superstições”. Em uma palavra: no paganismo não se colocava em cheque a existência de outros deuses: todos eram válidos, até mesmo os dos inimigos, e no máximo o que se colocava era uma questão de poder e glória; com o cristianismo, há uma desqualificação da crença do outro, colocada em um patamar de irrealidade, de mentira, e que seus adoradores estão enganados.

Esse imperialismo de crença motivou as ações de Constantino e seus sucessores, até que em 8 de novembro de 392, Teodósio proclama o cristianismo como religião oficial do Império e torna todos os cultos pagãos ilegais. A motivação para isso não foi nada religiosa: era uma foram de esmagar um golpe de Estado orquestrado pela ala pagã resistente nas entranhas do poder. Mas passado isso, essa ala não se levantará mais. O cristianismo tinha se tornado a religião do Império e formada estava uma dinastia que o levava no coração e na alma. O “mundo” já era cristão e as massas, principalmente nas regiões mais urbanizadas, estava nas mãos da estrutura hierárquica da Igreja. Demoraria ainda alguns séculos para todos os resquícios do paganismo serem extintos completamente, principalmente no Oriente, que não vivenciou uma ampla cultura eclesiástica e beata como no lado ocidental do Império.


Paul Veyne, sensualizando
Paul Veyne, nascido em 1930 em um meio popular que ele gosta de definir como “inculto”, é um historiador afeiçoado a teses polêmicas e com certeza o homem mais feio do mundo. Especializado em Roma Antiga, formado pelo Collège de France e atuando lá até hoje como professor honorário, suas obras são amplamente traduzidas no mundo todo.

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p.s.: a foto que ilustra o post é o grafite mais genial que já pude ver na minha vida, e é obra do Urso Morto