satanismo popular-fudido |
29 de outubro do ano 312: na Ponte Mílvia, a cerca de 15 quilômetros de Roma, o exército do general Constantino enfrenta os soldados de Maxêncio pelo controle da metade ocidental do Império. Constantino estava em defasagem numérica: algumas fontes indicam que para cada homem de seu exército, Maxêncio contava com quinze. Mesmo assim, Constantino empreende o ataque – e vence. Sagra-se Imperador de Roma e atribui a vitória não ao valor de seus homens, não a um golpe de sorte, mas a um único e grandioso motivo: a vontade de Deus. É nesse momento que nasce o Cristianismo.
Afirmar que o cristianismo nasce em 29 de outubro de 312
d.C. parece ser um erro conceitual: passados já quase três séculos desde a
morte de Jesus, não existiam milhões de cristãos em todo o Império? A Igreja já
não era uma instituição respeitada, com homens poderosos em suas fileiras? Os
deuses do paganismo não eram encarados, e isso desde Virgílio, como simples
mitologia esvaziada de qualquer realidade? Ao menos era mais ou menos isso o
que eu sempre tinha ouvido: o cristianismo, evoluindo lentamente, minou as
reservas espirituais do paganismo e tornou-se a religião oficial do Império
Romano e, por conseqüência, virtualmente de todo o mundo. É justamente essa
tese que o historiador francês Paul Veyne contesta e maciçamente destrói no
livro “Quando o nosso mundo se tornou cristão”. Esse post é uma tentativa mais
do que modesta de comentar alguns pontos da obra lançada em 2007 (tenho a
tradução em português de Portugal de 2009).
A tese de Veyne é, em certa medida, bem simples: sem
Constantino, o cristianismo teria permanecido uma seita de vanguarda. O Império
estava repleto de outras crenças e, nos tempos da batalha da Ponte Mílvia, as
perseguições aos cristãos não aconteciam mais. Ao mesmo tempo, é enganoso imaginar que o
cristianismo estava minando as crenças pagãs: em 312 d.C., apenas 5% do
território romano estava cristianizado. Contudo, 80 anos depois, o cristianismo
tornou-se a religião oficial de todo o Império. Como explicar uma expansão
assustadoramente rápida?
Os fatores são variadíssimos, mas um ponto chave na tese de
Veyne é que, com Constantino, o cristianismo não era a religião do Império, mas a religião do imperador: sabendo-se senhor de
massas amplamente pagãs (e como todas as massas, contrárias a mudanças bruscas
em sua meia vida de homens-gado) o imperador soube usar de sua influência para,
gradativamente, ir dotando de cada vez mais poder no sistema
imperial a instituição mais longeva de todos os tempos – a Igreja Católica.
Apesar de não excluir os pagãos de seu séquito de conselheiros e oficiais,
Constantino contava com muitos cristãos para as funções mais importantes dentro
das hierarquias imperiais. Em seus (numerosíssimos) éditos, fazia questão de
afirmar as vantagens de sua crença e, ainda que indiretamente, instituía mudanças
que preparavam o advento do cristianismo como religião de todos. Por exemplo,
em 312 ele impôs ao Império a criação do descanso dominical: a vida ainda era
pagã, a moral pública e privada ainda era a da Roma vetusta, mas com essa
simples instituição de um dia dedicado ao descanso – e simbolicamente o
domingo, o Dominus, dia do Senhor – Constantino colocou certo ritmo cristão a
um cotidiano que ainda não o era (e pensar que, até hoje, o domingo é o dia do
descanso oficial para bilhões de seres humanos, chega a ser espantoso). Constantino
parece agir com um espírito engenhoso, visionário até, em sua preparação algo
silenciosa de condições para a futura
hegemonia cristã.
Mas não foi apenas Constantino o responsável pela vitória do
cristianismo: a crença em si mesma possui certas “qualidades competitivas” em
relação ao paganismo. A primeira é a sua
atualidade histórica: as histórias de
Cristo e seus seguidores eram recentes, eventos passados há cem, duzentos anos.
Os mitos do paganismo estavam distantes no tempo, nenhum homem era
contemporâneo das façanhas que os deuses desempenhavam em suas visitas ao mundo
dos homens, que não aconteciam mais há séculos. Já o cristianismo tinha seus mártires, os milagres de homens
santos, o testemunho dos perseguidos que viram maravilhas. Há também a relação amorosa e próxima do cristão com o divino: não basta se dizer cristão, mas é
vital proclamar o amor que se tem a Deus, que sempre é um amor em retribuição
ao que Ele ofereceu a todos os homens:
um pagão poderia muito bem ser um fervoroso adepto de Marte sem nunca dizer que
o amava, pelo simples fato de que isso era impensável no paganismo. E muito menos havia no paganismo a universalidade cristã: o paganismo nunca foi igualitário, e
mantinha ritos específicos para aristocratas e outros para a plebe; já o
cristianismo tinha o conceito de conversão: todos os que aceitam o Deus Vivo
serão salvos. Mas a vantagem competitiva que me parece a mais forte (Veyne
também a salienta) é a transcendentalidade
para além da narrativa mitológica: o cristão é um indivíduo convicto de que
a vida eterna, a Salvação, é uma realidade tão forte quanto o seu próprio
corpo. Citando Veyne, com o cristianismo “a nossa existência sobre a terra já
não apresentava o absurdo de uma breve passagem entre dois nadas”; na época de
Constantino, o debate sobre o que existia após a morte era o grande debate, e nada no paganismo se assemelhava à idéia cristã
da “salvação”. Os deuses pagãos pareciam completamente distantes: quando muito
favoreciam uma colheita, faziam vencer uma guerra, curavam uma doença; o Deus
dos cristãos ouvia as preces de todos, confortava os corações, prometia uma
vida de eterno deleite ao seu lado após a morte. Para alguém que estivesse em
apuros, desiludido de tudo e todos, ir a uma igreja parecia uma alternativa
melhor do que sacrificar uma pomba a Júpiter; na igreja, em comunhão com outros
cristãos, todos seus irmãos, suportar
o mundo de repente se tornava mais fácil.
Outro ponto onde Veyne investe em polêmica: certo discurso
coloca o cristianismo como uma religião monoteísta e, portanto, superior ao
politeísmo, colocado como algo mais “arcaico”, menos “civilizado”. Nada mais
equivocado: vale lembrar que o Deus Uno cristão é, ao mesmo tempo, três (Pai,
Filho e Espírito Santo); que a figura dos santos é imensamente forte no
catolicismo, e certas devoções os colocam no mesmo patamar dos pequenos deuses
do paganismo; que Maria, mãe de Jesus, que nos evangelhos tem um papel não mais
que secundário, ocupando algumas poucas páginas, no catolicismo ganha o epíteto
de Mãe de Todos os Homens, em uma espécie de re-significação do culto à Grande
Mãe de eras ainda mais afastadas. Não é, portanto, por seu pretenso “monoteísmo”
que o cristianismo vence, mas pelos demais elencados. Apesar disso, é certo que
a religião de um deus único é, em comparação com a miríade de deuses do
paganismo, uma “religião mais forte”. Devido a isso, certa crítica de esquerda
coloca o monoteísmo como algo menos “democrático” que o politeísmo; Veyne
rebate isso muito bem, ao dizer que “não é o monoteísmo que pode tornar
ameaçadora uma religião, mas o
imperialismo de sua verdade” (grifo meu). E é aí que está a diferença
essencial entre o “monoteísmo cristão” e o paganismo: enquanto que, em um
debate qualquer, um devoto de Júpiter poderia falar para um devoto de Vênus que
“o meu deus é muito mais poderoso que
o seu”, um cristão falaria de modo sutilmente diferente que “o meu Deus é o verdadeiro, e os seus são
superstições”. Em uma palavra: no paganismo não se colocava em cheque a
existência de outros deuses: todos eram válidos, até mesmo os dos inimigos, e
no máximo o que se colocava era uma questão de poder e glória; com o
cristianismo, há uma desqualificação da crença do outro, colocada em um patamar
de irrealidade, de mentira, e que seus adoradores estão enganados.
Esse imperialismo de crença motivou as ações de Constantino
e seus sucessores, até que em 8 de novembro de 392, Teodósio proclama o cristianismo
como religião oficial do Império e torna todos os cultos pagãos ilegais. A motivação para isso não foi nada religiosa:
era uma foram de esmagar um golpe de Estado orquestrado
pela ala pagã resistente nas entranhas do poder. Mas passado isso, essa ala não
se levantará mais. O cristianismo tinha se tornado a religião do Império e
formada estava uma dinastia que o levava no coração e na alma. O “mundo” já era
cristão e as massas, principalmente nas regiões mais urbanizadas, estava nas
mãos da estrutura hierárquica da Igreja. Demoraria ainda alguns séculos para todos os resquícios do
paganismo serem extintos completamente, principalmente no Oriente, que não
vivenciou uma ampla cultura eclesiástica e beata como no lado ocidental do
Império.
Paul Veyne, sensualizando |
Paul Veyne, nascido em 1930 em um meio popular que ele gosta
de definir como “inculto”, é um historiador afeiçoado a teses polêmicas e com
certeza o homem mais feio do mundo. Especializado em Roma Antiga, formado pelo
Collège de France e atuando lá até hoje como professor honorário, suas obras
são amplamente traduzidas no mundo todo.
Compre Quando o nosso mundo se tornou cristão
p.s.: a foto que ilustra o post é o grafite mais genial que já pude ver na minha vida, e é obra do Urso Morto
p.s.: a foto que ilustra o post é o grafite mais genial que já pude ver na minha vida, e é obra do Urso Morto
sem desmerecer o livro, que parece ótimo mesmo, mas eu me interessei bem mais pelo trabalho do Urso Morto...
ResponderExcluirPaul Veyne é brilhante. Parabéns pela tua resenha. Estou montando uma biblioteca sobre o Império Romano e vou adquirir essa obra. Do mesmo escritor, recomendo A HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA, volume I (na verdade ele organizou o livro, e escreveu o primeiro capítulo, "Império Romano", que esclarece numerosos aspectos do cotidiano dos romanos). Leitura agradabilíssima!
ResponderExcluirObrigado, Tiberivs. Veyne é um autor que gosto, e muito. Tive a oportunidade de conhecer esse texto que você citou na universidade, em um curso de História Antiga.
ResponderExcluirCom certeza, em futuros posts, Roma e Veyne aparecerão ;-)
Obrigado a ti pela resenha, meu caro, e em futuros textos sobre Roma e/ou Veyne, por favor, avisa-me...
ResponderExcluirAbraços
Obrigado a ti pela resenha, meu caro, e em futuros textos sobre Roma e/ou Veyne, por favor, avisa-me...
ResponderExcluirAbraços