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5.21.2012

O poço e o sorriso


A vida humana é um poço sem fundo feito de decepções e desencontros. Decepção com os outros e com nós mesmos, desencontros com outros e principalmente com nós mesmos. Buscamos o prazer da companhia alheia apenas porque tememos a solidão - não há o amor, o amor que os poetas cantaram é uma ilusão adocicada que nunca existiu. Em outras palavras, o que nos move para os braços uns dos outros é um desejo de se perpetuar, seja com a insanidade do nascimento, seja com a produção do sentimento de saudade - não importa, o substrato é o mesmo, a vontade de continuar existindo, seja no corpo da criança, seja nos pensamentos de alguém que chora. Vaidade das vaidades, estamos sempre ajoelhados frente a algo que nos deixa em polvorosa, em uma contraditória atitude de contemplação feita de uma matéria inquieta, incessante, até que o nosso olhar encontre um deus diferente, que nos faça sentir tédio de ali estar, e não sem esforço - porque a natureza complexa de nosso íntimo mistura ambos os venenos da agitação e do comodismo - levantamos para ir em direção ao templo de um novo deus que faça a nossa vaidade pulsar em um ritmo mais instigante. Somos isso, um amontoado de paixões cruas que não merece sequer uma lágrima quando enfim deixarmos o universo livre de nossa desnecessária presença. Entretanto, gostamos de acreditar na nossa importância que é nenhuma, nos esforçamos para continuamente provar algo que não somos, até chegar ao nível do mais completo ridículo. É esse o ponto em que me encontro agora, com os olhos bem abertos, com esse sorriso falso mostrando ao mundo a alegria que me exigem, para mostrar aos outros que tudo está bem, não se preocupem, se estou rindo é porque afinal não há nada de errado, que me deixem em paz com meu sorriso, nada peço a não ser o vosso perpétuo e imediato virar de costas para meu sorriso, onde observarei o seu corpo indo para cada vez mais longe de mim e então meu sorriso aumentará, será um enorme e vitorioso sorriso, será quase sincero, e já estarei esquecido do motivo que me fazia sorrir falsamente, serei apenas uma vaga lembrança de um ser que perdeu voluntariamente o contato com o mundo, que junto aos homens encontrou apenas um motivo para sorrir, e esse já se foi há tanto tempo que é risível agora lembrar, mas antes eu o estreitava contra meu peito como a coisa mais preciosa de todas, e então me lembro de que eu dizia ser capaz de matar em seu nome, para defender a beleza daquele amor, e percebo agora que o que me movia não era o enganoso sentimento, mas a impossibilidade de concretizar aquela felicidade sempre colocada no futuro - pois no fundo não quero ser feliz, é carregar comigo o sorriso satisfeito do homem comum, a vazia pretensão de pureza que vive em seus corações, a sensação de pertencimento a um nome de família. Por isso meu sorriso é feito de uma matéria enganosa que ludibria até a mim mesmo e me creio - ilusão das ilusões - o mais feliz de todos os homens. Não é motivo para a mais alta das vergonhas confessar isso diante de todos vocês? [Não, quem me ouve não é ninguém a não ser eu mesmo, mas imagino que tenho um público, que falo com alguém, quando na verdade estou sozinho em meu imundo apartamento, sem comer decentemente, rodeado de incertezas tão estúpidas quanto qualquer outro humano que detesto tão veementemente, imerso em meus delírios de falsa grandeza, desejos que são o testemunho de minha infeliz condição subalterna, desnecessária, tola e vulgar. Vejo a vida como um poço sem poço sem fundo porque estou dentro desse poço, regurgitando maldições que jamais serão ouvidas, rezando a deuses para sempre mortos...]

Nota: o texto acima foi escrito para a imagem que ilustra essa postagem. A autoria da imagem é de Guilherme Henrique Frammer Nahes Alonso, membro do grupo musical Sleepwalkers' Maladies e medalha de prata na Olimpíada de Hemp Tycoon. Alguns rabiscos e efeitos adicionais foram inseridos na imagem original por mim, mas devido ao meu estado semi-entorpecido no momento acabei por estragar algumas partes do texto, que ficaram ilegíveis. A postagem é uma tentativa de resgatar o texto original.

4.16.2009

Vênus sob o paralelo 23°

Enfim uma mesa vaga, sábado à noite os restaurantes da Grande Cidade invariavelmente ficam assim, repletos e barulhentos. Aqueles que se incomodam com longas esperas e conversas à mesa que mantenham distância dos restaurantes daqui, especialmente do Le Tartine e suas mesas-siamesas-de-tão-próximas, que a M. nunca incomodaram quando nos invernos passados ali vinha jantar com os amigos. Eram animadas conversas entre pratos de sopas borbulhantes, degustadas sem esforços como se estivessem já frias, e depois vinho, e depois gargalhadas e casacos pesados descendo a Consolação sentido centro.
Justificar
Certamente sopa não tomariam, prefeririam pratos mais adequados, mas sobre isso nem M. nem P. pensavam enquanto subiam a estreita escada daquele bistrô francês surrealisticamente implantado nos trópicos, que ocupava discreto um sobradinho antigo em uma rua sem importância. Terminada a escada logo viram a mesa, que ficava aos fundos de uma sala pequena repleta de outras mesas, todas cheias. Mas apesar do barulho e do calor ficaram felizes, pois perceberam a mesa onde jantariam estava ao lado de uma grande janela aberta, uma promessa de um pouco mais de ar e, com sorte, refrescantes brisas.

– A quiche daqui é uma delícia, você vai ver.
– Hum, adoro quiches.

Perderam os olhos no cardápio colorido e então chamaram o garçom. Pedido feito, bastava apenas esperar para saciar a fome. Não demorou muito e logo chegaram as bebidas. Goles que descem vigorosos, sorvidos com paixão, goles de vinho, este veneno de Vênus, que refrescava as gargantas quase secas de M. e P., naquela noite tão somente um casal qualquer de mãos entrelaçadas sobre a toalhinha-toda-detalhes que cobria a rústica mesa. Conversavam já afetados pelo rubor que precede a semi-embriaguez, experimentando a mistura de ardências tropicais com a divina bebida dos Césares. Não era possível saber do que falavam, mas isso não interessa ao leitor, basta saber que da mesma forma que todas as cartas de amor são ridículas [e não seriam cartas de amor se não fossem ridículas] assim também são as conversas dos amantes, e a conversa entre M. e P. não seria nem um pouco diferente de nenhuma outra conversa de namorados que o Le Tartine e seus garçons de sotaque esquisito já foram testemunhas.

As quiches ali são servidas junto com uma salada de rúcula e alface temperada com molho de mostarda e nozes. O neófito, ao ver o prato pela primeira vez, julga-o demasiado pequeno para satisfazer seu apetite. Seja pelos temperos empregados, seja pelo modo de preparação do prato, aquelas aromáticas quiches sempre surpreendem aos desavisados, mesmo os mais famintos, que terminam a última garfada já muito para além de satisfeitos. O prato, embora saborosíssimo, necessita de uma certa dose de esforço para ser consumido até o final. Mas não veja o leitor nisso qualquer espécie de sacrifício: é um esforço que se recompensa a cada nova mordida, verdadeira explosão de sabor e prazer palatal que deixa tanto a Deus quanto a seus anjos profundamente tristes, obrigados a omnipresenciar o pecado da gula pela trilionésima vez, tudo graças aos sibilinos talentos do cuisinier do Le Tartine.

– Gostou?
– Sim, perfeita.
– Quer um pedaço da minha?
– U-hum.

Ele cortou um pedaço de sua quiche de cogumelos e levou o garfo até a boca dela, que abocanhou a fatia vagarosamente, mastigando com olhos semicerrados. Isso causou uma tempestade de pensamentos nada singulares em M., e não é preciso que o leitor seja alertado a respeito de que tipos de pensamentos eram esses, homens em geral são muito previsíveis. Somente é necessário saber que ele gostou da idéia de partilhar os pedaços de sua quiche daquele modo tão próprio dos namorados.

– Quer mais um pedaço?
– Não, obrigada.
– Vamos, deixa eu colocar de novo na sua boca.
– Você tá sendo safado!
– Não, claro que não, quero apenas te dar de comer, só isso.

Um pedaço de quiche não tem absolutamente nenhuma condição erótica, mas a Malícia é capaz de transformar até uma refeição em um torneio de provocações mútuas. E foi assim que P. preferiu se concentrar no próprio prato, com olhos fixos nos olhos de M., e com gestos intensamente femininos cortava os pedaços de sua quiche, para depois passá-los pelo molho de mostarda e nozes da salada, de um lado ao outro, em um movimento ritmado, para subitamente levá-los à boca e mastigá-los decidida, quase feroz.

– Está uma delícia.
– Tô percebendo.

M. enche a sua taça de vinho enquanto fala alguma coisa, não precisamos prestar atenção [as cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas]. Depois pega a taça, a mão enlaçando-a completamente, as regras de etiqueta tão ridículas quanto as cartas dos enamorados repreenderiam este gesto de M., sussurrariam envergonhadas que se deve sempre pegar uma taça pela haste e com a ponta dos dedos, mas ele não daria ouvido a sussurro algum, queria apenas beber tão rapidamente quanto possível, e foi o que fez: a taça levada com delícia aos lábios, o pescoço sustentando a cabeça que se projeta para trás, o veneno de Vênus descendo garganta abaixo, já são ardências romanas que avivam a carne nesta divina bebedeira tropical.

– Quanta sede.
– É só o começo, neném.

Quiches acabadas, pediram a sobremesa. A torta de maçã com sorvete de creme é a suprema opção do restaurante, e seria quase como nunca ter ido lá se M. não fizesse P. prová-la: a torta é servida quente, com generosos pedaços de maçã caramelada, perfeita combinação para um cremoso sorvete-que-derrete, a esta altura Deus e seus anjos já devem ter cansado de chorar as almas perdidas dos clientes do Le Tartine. M. fez questão de, tão logo tenham chegado as deliciosas tortas, levar até a boca de P. um pedaço daquele doce terrível, que soltava fumaças tanto frias quanto quentes, curiosa síntese mal-resolvida.

– Gostou?
– Sim, e quero mais.

O leitor precisa saber: isso foi dito com uma intenção cruel. Só aos homens é possível compreender a vasta dimensão da crueldade de uma mulher dizendo quero mais enquanto passa a língua pelos lábios superiores. E da mesma forma são cruéis as mãos femininas que arrumam os cabelos por nada, são cruéis os atos de se espreguiçar sem estar realmente com preguiça, são cruéis as unhas vermelhas, são cruéis os brincos de argolas enormes e são cruéis muitas coisas que aqui não vou dizer, traição grave aos meus companheiros revelar assim nossas fraquezas. O que resta dizer sobre este jantar é que as cruéis palavras de P. funcionaram como um elemento ativador de todas as potencialidades venusinas do vinho, e de repente não importava mais o infernal calor dos últimos dias, não importava que as mesas estavam todas cheias de pessoas falando sem parar e com suas respirações aumentando ainda mais o calor no Le Tartine, não importavam as quiches nem as tortas de maçã e muito menos saber que só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas: para aqueles dois a única coisa importante era pagar a conta e desesperadamente voltar para casa o mais rápido possível.

12.11.2007

Excertos de uma confissão a um padre


"E então o demônio me convidou para dançar, e surgiu sob a forma de olhos verdes, incrivelmente verdes - e neles me perdi. Se estivessem perto, quão enorme seria o desastre! Pois meu coração busca o abismo, o abismo das sensações malditas, das sensações que enlouquecem e deixam cicatrizes.


Por que o anjo caído veio sussurrar ao meu ouvido novamente? E por que agora, quando a calmaria parecia novamente nascer? Existe um propósito nesta tentação? Pois nela eu já me vejo caindo de cabeça, já me vejo ali, escrevendo poemas para acompanhar os presentes idiotas que trocaremos, as cartas molhadas pelo sangue meu e dela."

11.15.2007

Caminhos indefinidos



"(...) E você ainda se interessa pelas pessoas? Puxa, isto é mágico. Já vi que cheguei no ponto que não consigo mais amar de forma pura. Quando um sentimento me assalta, eu imediatamente me questiono, é automático, sinto uma espécie de voz interior falando `O que você quer nesta pessoa, de verdade? São os sentimentos dela? As idéias? O corpo? Uma gozada? A possibilidade de dominá-la e fazê-la acreditar que você a ama para, depois da conquista, você rejeitá-la como já fez com tantas? Ora, M., seja sincero, você só ama os seus próprios desejos´. E eu devo concordar com esta voz: eu sou absolutamente egoísta. Até mesmo no sexo, mesmo que eu me preocupe em dar o máximo de prazer para a mulher que está comigo, é porque no fundo me move a suprema vaidade de me considerar uma espécie de deus do amor, capaz de vê-la(s) delirando, e pedindo mais, e eu negando em palavras o que proporciono com gestos. Pois é assim que funciono, que sempre funcionei, mas agora pareço que chego aos últimos estágios de desenvolvimento: eu como um mestre de mim, um déspota, um déspota que quer corações e mentes e corpos, e cuja vontade é insaciável."

"(...) Éramos muito imaturos, mas queríamos mudar tudo dentro de nós, quebrar tabus, criar nossas próprias regras, como se tudo isso estivesse sendo vivido pela primeira vez. Tudo diferente do que estávamos acostumados, diferente do modo que fomos condicionados a lidar com os outros e com nossos sentimentos. Sabe o peso do amor? Era esse peso que queríamos liquidar. E eram muitos sentimentos por muitas horas e ininterruptos. Amor demais. Paixão demais. Ódio demais. Raiva demais. Tristeza demais. Felicidade demais. Liberdade demais. Conversas longas, discussões e consenso. Criamos muito silêncio e caos simultaneamente. Conseguíamos sempre machucar um aos outros sem se ver. Constantemente silenciosamente atacados e atacando. Por ações tão comuns, distraídas. Em três instantes só eu tive tudo com todo mundo ao mesmo tempo. E tudo isso me fez ser cética, imoral, me fez destruir o ciúmes e muitas vezes buscar apenas o desejo. E o que mal existe nisso? Não existe mal. Que mal existe em querer sexo? Ou um corpo? Ou idéias? Precisamos saciar nossos desejos? Com certeza! Somos feitos de desejos. Eles estão dentro de nós e se não sacia-los, alguma hora eles comerão nossas entranhas. "

10.17.2007

Cachos negros

Dela M. apenas guardara o sorriso e a maneira cheia de sutilezas de arrumar os abundantes cabelos. Era uma forma tão graciosa de passar os dedos pelos cachos negros, e conduzi-los quase que por encanto para cima, para baixo, que M. esquece que está em plena Avenida P. dos carros famintos por asfalto. E se continuasse ali na calçada, contemplativo naquela paixão matinal, a esbarrar nas gentes que ali passavam, chegaria tarde no trabalho - e nenhum patrão no mundo, nem mesmo aquele que se dá ares de poeta, gosta de funcionários que atrasam 15 minutos por contemplar musas.

E então M. segue em frente, farol fechado paras as bestas a gasolina, e lá se foram os cachos negros em direção que não se sabe, a multidão na P. é um ultraje à libido, sequer podemos seguir com os olhos um belo par de pernas por mais de 20 segundos. No caso de M. os cachos negros eram bem mais que pensamentos sexuais, eram uma paixão mesmo, daquelas que fazem estragos, que deixam ruínas e de cujos efeitos muitos não se recuperam. Encontrava uma garota na rua, três olhares depois ela já se transformava na mulher de sua vida, se não fosse um recluso faria um convite simpático para um café perto do Parque T., lá conversariam, se reconheceriam, não demoraria muito e já estariam cheios de afagos e afetos, trocando cartinhas, trocando confidências: assim imaginava M. detalhes de cada relação com cada garota desconhecida que subitamente lhe inspirava paixão.

E era uma verdadeira paixão. A ponto de M. ficar triste quando, calado, observava a desconhecida tão sua indo embora para nunca mais. Pois a Cidade é imensa, e imensos caminhos a cruzam, e cada vez que os percorremos, parece que eles já não mais são os mesmos, ou talvez somos nós os que estão em mutação, o ovo ou a galinha, certas questões nascem para ser eternas. Mesmo assim, mesmo sabendo que apartado estava para sempre de cada uma de suas paixões instantâneas, M. cultivava a possibilidade de novamente encontrá-las, e em questão de segundos suas paixões o reconhecerem com um largo sorriso, eu lembro de você aquele dia em tal lugar, lembra de mim, te procurei tanto. Desce em direção a Alameda S. com a certeza de que ali, na esquina com a Rua A., aquela loirinha de brincos de argola estaria como naquela última quinta-feira. Sacola de compras na mão, e tão indiferente ao mundo ela parecia que M. acreditou que jamais se apaixonaria de novo, era tão somente ela e nenhuma outra, ali estava a companheira definitiva para as viagens e bebedeiras e contas atrasadas e noites de sexo. Mas as esperanças são apenas brinquedinhos que Deus fez para nós, brinquedinhos Dele, gastarmos o tempo tão pouco que aqui temos - e M. não encontrou sua loirinha de brincos de argola, assim como jamais encontrará os negros cachos novamente.

Obviamente ele não pensa estas coisas. Está muito atarefado em desviar dos caudalosos rios humanos que infectam as ruas dos Jardins. Mas no íntimo sofre a perda de suas paixões. E quando o leitor se depara com o verbo sofrer, deve se recordar das vezes que sentiu dor por alguém, e saber que é uma dor como esta que aflige M., e não acusá-lo de leviandade e de superficialidade de sentimentos. Pois é muito razoável que alguns vejam em M. tão somente um aventureiro; se assim o fosse, estaria ele imaginando tórridas cenas sexuais com os cachos negros, e não uma sala confortável com filhos e filhas a brincar no cantinho. Sim, ele a quis nua, os lábios dela desejou, os contornos que transbordavam volúpia, imaginou um perfume e um nome até - Juliana ela chamaria. Mas no momento do êxtase, sobre ela ele se estenderia com fúria, até que cachos negros ficasse quietinha, na semi-imobilidade que sucede o Excesso, e envolvendo-a em um abraço, diria Juliana, eu te amo, e seria o mais verdadeiro dos homens ao fazer isso.

Vinte minutos de atraso quando, finalmente, M. liga o computador no escritório. Felizmente, seu chefe ainda não tinha chegado. Ninguém perceberia seu atraso. Vai tomando um copinho de café enquanto vê a rua pela janela. Quantas ainda amarei até te encontrar, pensa, e naquele momento ele é triste e cheio de vida. Já não lembra mais de cachos negros e nem dos seus dedos sibilinos a balançar os fios para cima e para baixo. Aquela paixão, tão subitamente nasceu, tão subitamente foi embora. A multidão, porém, continua a mesma na Avenida P., produzindo desencontros, engolindo paixões e de todos nós embaralhando o Destino.

9.18.2006

Viagens


















São longas viagens de ônibus entre a rotina marmórea do trabalho até os sufocos reclusos de minha casa. Um trajeto que, em dias sem trânsito, não demoraria meros vinte minutos, transforma-se em uma epopéia que se arrasta vagarosa, verso após verso, por quase uma hora.

A imagem é equivocada. Epopéias têm heroísmo, vigor, um halo que sobrevive aos séculos – mesmo que nosso intenso gosto moderno boceje sobre os feitos de um Aquiles. O meu trajeto diário é mais modesto. Ele só durará a exata medida da paciência do chefe em tolerar meus atrasos. Quando ele cansar, a epopéia termina. Sem brilho, sem catarse ou reconhecimentos banhados em sangue. Apenas um carimbo na carteira, filas no RH e papeladas junto ao INSS.

Mas ainda é cedo para isso acontecer. É até preferível que eu demore um pouco mais nesse trabalho. Ficar em casa seria muito pior. Um casamento em crise somou-se a marretadas de uma nova obra. Um prédio luxuoso nasce ao lado, e a melodia das batidas quase marciais dá o tom para discussões infinitas, cobranças e lágrimas de mulher. Eu seguro as minhas pensando o quão horrível é esse barulho, o quão detestável é viver em apartamentos e o quanto seria agradável ter futuras vizinhas belas, disponíveis e que não chorem ao descobrirem que os romances acabam.

Nestas viagens diárias de ônibus, por vezes a Fortuna me brinda com um gracejo sincero e me concede um lugar para sentar e observar o mundo através da janela. A paisagem obviamente não é agradável e quase sempre a vontade que tenho é de simplesmente quebrar o vidro com murros de dor. Mas de qualquer forma é uma janela que emoldura uma paisagem, e mesmo a decadência tem seu charme. E procuro com olhos ávidos um sorriso, um gesto, uma frase pichada no sétimo andar, qualquer coisa que me faça pensar e preencher o trajeto, talvez ali encontrar um motivo para uma nova poesia ou simplesmente um comentário sarcástico; e sempre encontro um curioso elemento perdido no oceano de pessoas (uma briga entre casais, um velho andando assustado entre os carros, mendigos resmungando e rindo do tolo espetáculo do rush) que me faz pensar que eu passei em um ônibus lotado no exato momento em que aquilo acontecia, e que ninguém mais viu aquilo, e que talvez Deus quisesse que eu visse aquele acontecimento, e que nada mais era que um sinal da cólera divina brincando comigo, divertindo-se às custas do meu pensamento inútil sobre a inutilidade geral das coisas humanas.

Desisto de olhar pela janela e começo a prestar atenção nas vozes das pessoas. Existe algo de estúpido nas conversas de ônibus que me cativa ao infinito. Não paguei as contas ainda, Esperei o resultado da loto e nada, Você viu o jogo ontem, Minha mãe doente, Está um dia frio, Não entendo, Espera que em casa eu te ligo, Dá licença por favor, Um amigo me disse que, Tô cansada, Pode sentar eu desço no próximo - névoas de vozes, intensas verbalizações de futilidades vazias, cada qual brigando pela universalidade de suas queixas, como se o mundo dependesse daquelas dores, daqueles problemas. E após algumas viagens sempre no ônibus do mesmo horário, você reconhece a oratória típica de cada um dos falantes. O prolixo, o astuto, o cínico, o vaidoso, o mentiroso. Você forma tipos, você constrói histórias detalhadas para cada um deles, os amigos que ele visita nos dias de folga, os programas prediletos da TV, se gosta do trabalho que faz... Sim, é pura perda de tempo. Um exercício fútil de falsa criatividade. Mas os romanos escreveram elegias inventando uma vida de prazeres que não existiu e nunca foram criticados por isso. Eu estou apenas brincando com meus pensamentos, eles nunca serão escritos, eles nunca serão publicados; e da mesma forma que surgem, eu os amputo com volúpia e os deixo morrer cruentos assim que avisto na moldura da janela um novo motivo de reflexão.

Mas definitivamente não sou um homem visual. Prefiro sons a cores - o que me torna um desadaptado irremediável ao mundo de hoje. E volto com ouvidos agudos a buscar outras conversas, mais apetitosas que as anteriores, e ver se descubro novas deploráveis formas de existência. Isso me fez desenvolver uma opinião; e apesar do inegável egoísmo que a acompanha (e não é cada opinião particular a representação de um egoísmo?) ela me parece muito verossímil: as pessoas mais falantes pertencem a uma escala inferior. A fala não é expressão do raciocínio - ela atrapalha a organização dos pensamentos. O ordenamento saudável de relações entre neurônios fica comprometido quando abrimos a boca. No grande laboratório das ciências humanas que são as grandes cidades, eu, cientista social autodidata, descobri que o grande mal dos homens era, justamente, falar – e desde então desejo um universo de línguas decepadas e dislexias crônicas.

Um universo de homens mudos! Ah, sair na rua sem precisar dar um bom dia a quem quer que seja! Simplesmente empurrar as pessoas, ao invés de pedir licença! Apenas entrar em uma loja e comprar, sem ouvir torturantes ladainhas dos vendedores! Com dois olhares encontrar a mulher de uma noite sem precisar saber sequer o nome dela, e desmanchar-se num gozo frenético sem ouvir o pedido de um desnecessário segundo encontro! Teríamos menos problemas com certeza. Uma vida com mais tempo para gastarmos com as coisas certas. Eu não temeria chegar em casa todo dia, pois não haveria nenhuma discussão, simplesmente sentaríamos um ao lado do outro e os beijos saudosos seriam seguidos por ávidas carícias. Mas não: o universo é povoado de homens que falam, que insistem em falar nos ônibus lotados, nas casas, nas ruas, em todo lugar; foi graças ao dom da fala que hoje, ao chegar em casa, eu terei mais uma conversa sem fim, que não levará a parte alguma a não ser a gritos, a ameaças e a amontoados de ódio; foi pela fala que um romance começou, e é pela fala que ele se arrasta em um chão de cacos de vidro e faz com que eu prefira ficar eternamente nesse ônibus cheio, que fede a suor e a hálito de dentes mal escovados, ouvindo conversas que não me dizem respeito e vendo pela janela uma vida que não mais me emociona.