3.01.2021

O que o Precâmbrico pode nos ensinar


O Precâmbrico é o período geológico que compreende desde a formação da Terra, há cerca de 4,6 bilhões de anos, até o início do Período Cambriano, 541 milhões de anos atrás. O Precâmbrico representa 88% de todo o tempo de existência do planeta. Como a parte inicial desse texto basicamente fala sobre o tempo, uma referência temporal mais adequada para nossa compreensão: os Neandertais, antepassados mais longínquos do ser humano de hoje, surgiram há 200.000 anos atrás - cerca de 0,0043% da idade da Terra. O contraste dá uma dimensão, mesmo que rasa, da enormidade do que estamos falando.

Os bilhões de anos do Precâmbrico são tão incompreensíveis para nossa limitada capacidade cerebral que a ciência usa o termo aeon para designar os vastos períodos de tempo geológico que o compõe. Aeons são durações de tempo de milhares de milhões de anos. Intensa atividade marca esse período formativo do planeta, no limite do cataclismo, onde os antepassados mais longínquos dos vulcões atuais ainda nem sonhavam existir. Aliás, pense que tudo que hoje temos de grandes rochas, montanhas, mares e oceanos, e que chegamos a considerar como coisas que sempre aqui estiveram, ainda nem haviam se formado: era um amálgama louco de gases, material rochoso, metais e outros elementos desconhecidos, em uma suruba frenética infinita por períodos, para nossa minúscula consciência geológica, que podemos considerar eternos. 

É também no Precâmbrico que a Lua se forma: estudos mostram que uma massa planetária do tamanho de Marte colidiu com aquela Terra antiquíssima, e nesse encontro uma imensa quantidade de matéria foi expelida no impacto - tentemos imaginar a magnitude desse evento com nossa diminuta, ridícula consciência. A beleza lunar ali teve início, num fortuito encontro entre duas massas amorfas de gases e tantos outros parentes primitivos dos elementos da tabela periódica.

Para o leitor refletir comigo: quantos elementos foram extintos no Precâmbrico? Quantos ali nasceram e ali mesmo morreram, naquelas condições formativas extremas, vivendo uma eternidade de, sei lá, 100 milhões de anos? Pois olha como são as coisas: 100 milhões de anos, esse período em que uma vida humana média de 70 anos seria repetida mais de 1,4 milhões de vezes, mesmo essa eternidade sem fim representa apenas 2,5% do total do Precâmbrico. Os primos distantíssimos do mercúrio, do magnésio e do zinco de repente duraram até menos do que isso, e de seus destroços fagulhinhas foram dispersas e, cataclisma após cataclisma, se transformaram nos contemporâneos elementos Hg, Mg e Zn.

As primeiras formas de vida surgem no segundo aeon do Precâmbrico, chamado de Arqueano, que durou do ano 4.000.000.000 até 2.500.000.000. Por vida, o leitor entenda organismos unicelulares extremamente simples, chamados de procariontes. Cientistas encontram resquícios fossilizados desses seres que quase antecedem o Ser. Mas é tudo tão frágil, e tudo tão remetido a hipóteses com comprovação bastante fragmentária, que podemos ser turrões e perguntar, da mesma forma que fizemos sobre os elementos, quantas outras formas de vida - primos desses procariontes - simplesmente nunca saberemos da existência. Pensemos nas glaciações pela qual o planeta passou nesse período (sim, foram diversas) e outros tantos períodos com intensas temperaturas que consumiriam as sociedades atuais em questão de horas: é improvável pensar que alguns seres tiveram seus traços para sempre apagados, impossibilitando que fossem descobertos pelos cientistas? A que nível de soberba chegamos para que nós - cuja participação nesse planeta, lembremos sempre, corresponde a cerca de 0,0043% de sua existência - afirmemos que procariontes foram as únicas formas de vida do Arqueano? Eu jamais sustentarei sofismas tipo "devemos sempre desconfiar da ciência" - quem em geral faz isso é gente burra que de ciência nunca estudou nada. Aqui estou apenas exercitando a imaginação com probabilidades feitas de pura licenciosidade poética. Rigor científico que se cobre de cientistas, não de diletantes blasé como eu. 

o nascimento da Lua

O Precâmbrico é apaixonante por todo o mistério que provoca. Ele existe fora da História. A ciência dura que se faz sobre ele tem uma forma completamente hermética: nós, mortais comuns fora dos círculos científicos da Geologia, lemos os textos dos especialistas com prazer e assombro. Assombro pela nossa pequenez infinita diante da grandiosidade aeônica precambriana, impossível de ser apreendida pelo nosso cérebro humano, demasiado humano - apenas os deuses conseguirão entender esse tipo de dimensão temporal. Ler sobre o Precâmbrico me despertou a mesma avidez de quando percorri pela primeira vez trechos dos Vedas e Upanishads descrevendo as Yugas. São textos muitas vezes recheados de comentários de estudiosos ocidentais, que buscam socorrer o leitor para entender os conceitos complicadíssimos grafados em sânscrito e acomodar as datas ali presentes ao nosso calendário: ali descobri que estamos em Kali-yuga, a última das eras, onde todas as degenerações, crimes e pecados se multiplicam; e que a primeira das eras, chamada Satya-yuga, onde imperava a perfeição e os homens viviam imortais junto aos deuses, tinha acabado há milhões e milhões de anos. O retorno a ela, na cosmovisão cíclica hindu, ainda levaria centenas de milhares de anos. Aquilo alargou meu horizonte de expectativas para sempre, mostrando com certa beleza poética como somos diminutos na escala do tempo. A geologia cumpriu esse mesmo papel, mas em proporções diferentes e menos melancólicas do que imaginar a história como decadência.

Me explico.

Da perspectiva da Era Cenozóica, que é onde estamos agora e que começou há meros 65 milhões de anos (cerca de 1,4% da história geológica da Terra: calcule o leitor o quanto corresponde a presença humana de 200.000 anos nesse período que, infinito na nossa perspectiva, é um nada em termos geológicos) observar o vasto e solene Precâmbrico me parece um bom exercício não apenas para relativizar nossas dores mas, também, para mostrar que a nossa essência mais primitiva tem uma profunda dimensão de resistência. Nem mesmo uma grave pandemia como a atual, que ceifa vidas aos milhões, parece fazer sentido diante da imensidão precambriana. Ela anula, impiedosamente, qualquer pedido de socorro, qualquer explicação para as lágrimas, qualquer necessidade de consolo. O Precâmbrico olha para nós, bilhões de anos atrás, e diz friamente perante nossas queixas:

- E daí?

Sua fria indiferença não é fruto da crueldade. A crueldade criamos nós mesmos, categorizando em coordenadas humanas o que disso não tem nada - de todos os períodos geológicos, o Precâmbrico é o mais inumano. Ele então pode nos olhar de fora, para entendermos melhor o que acontece aqui dentro de nossos tortuosos mentais e nos calabouços de nossos corações. Sua inumanidade abrasiva, no final das contas, tem um efeito inesperado: torna evidente aquilo que carregamos de mais intensamente humano dentro de nosso ser, isto é, nossas falhas e limitações. Cristalinas elas se nos apresentam quando conseguimos sair um pouco de nós mesmos, e embora essa visão não nos agrade, parece que a única forma de evoluir na vida é ter essa consciência, se quisermos algo mais do que uma vida média qualquer. 

O Precâmbrico, porém, não pode - ou melhor, não deveria - ser usado como um pretexto para automutilação. Muitas vezes, a crítica de si mesmo nos leva a isso. Devo assumir aqui, leitor: sou o meu mais implacável crítico. E por anos, exerci essa autocrítica feroz nesses pesados moldes precambrianos. E ao invés de ajudar a criar uma forma de viver melhor, o resultado foi exatamente o inverso: o fim do processo estava em um tipo de degeneração da crítica, onde o alvo não era a falha mas eu mesmo. Ferir a si, não lapidar-se. Conduziu-me a processos de anulação interna e consequente deterioração de relações com os outros em uma escala bastante problemática. Hoje consigo ver bem mais nitidamente as brechas existentes, e de que modo aplicado eu criei cataclismos que nem precisavam existir, afastando pessoas e minando possibilidades incríveis. 

Falei sobre como o Precâmbrico pode nos ensinar a relativizar nossas dores e falhas, vendo-as sob novas perspectivas. Isso, porém, não é o que ele tem de mais interessante para nos ensinar: é na força cataclísmica dos aeons precambrianos que vejo também uma nova inspiração para renovar os dias nesses tempos pandêmicos onde o caos, sempre onipresente, tomou de assalto os últimos resquícios de ordem.
 


Choques contra massas planetárias em formação; erupções vulcânicas cuja potência seria o equivalente a 10 milhões de Krakatoas; rios de lava com larguras de países; nuvens de gases pesados que fariam o concreto das cidades contemporâneas instantaneamente em pó; tremores impossíveis de medir na escala Ricther - a lista dos eventos cotidianos do Precâmbrico poderia ser alongada consideravelmente. Pensemos por um momento em todos esses tumultuosos eventos, ainda que com nossa imaginação bastante limitada para dar conta até mesmo de 1% de tudo isso - o que eles nos dizem? O que esses eventos nos deixaram como herança? 

Um fato: a bela esfera azul que astronautas observam quando voam ao espaço é produto daqueles "tempos difíceis". A Terra "sofreu" um bocado nisso tudo - e se manteve ali, impassível, resistindo. E se transformando nesse processo. Para quem resistiu ao impacto de uma massa planetária do tamanho de Marte, o que representa uma glaciação que cobriu 30% do planeta com camadas quilométricas de gelo maciço? O que representa um terremoto com força para separar continentes?

Essa força incomparável de resistência – impregnada em cada elemento constitutivo da Terra; em cada rocha multimilenar, erodidas por pequeninos fios das primeiras águas; erosão que levaria microscópicos pedacinhos de rocha a se espalharem com a formação dos antepassados dos primeiros rios; antepassados esses hoje já há milhares de milênios extintos, que desaguavam nos primitivos parentes de nossos oceanos; oceanos primevos que, quando ainda eram jovens, abrigaram formas de vida completamente maravilhosas, tão estranhas para nosso olhar moderno, primos vinte milhões de graus distantes do que seriam os antepassados do que chamamos hoje de peixes, no início do período Cambriano; proto-peixes que, primeiros dos primeiros do que seriam milhões de anos depois os vertebrados, mantém aquela mesma dureza precambriana ainda presente, repassada das rochas para as águas e assim em uma sucessão infinita de trocas, aquela insistência de continuar existindo mesmo que contra todas as condições e contra todas as probabilidades; e nesses seres ao mesmo tão frágeis quanto destemidos, neles podemos estabelecer o elo que geraria, milhões e milhões de anos depois, o que hoje chamamos de reino animal, e dentre eles a curiosa espécie humana - resumo aqui de forma absolutamente rasa essa incrível cadeia de transferências de uma essência primitiva presente em cada fagulha de matéria mineral desse planeta. Matéria com a qual não nos identificamos. Matéria que tendemos a ver como separada de nós mesmos, e que na verdade é o que temos de mais primitivo e ancestral em uma dimensão que tristemente negligenciamos.

Pois é isso: se nem mesmo erupções semelhantes a 10 milhões de Krakatoas extinguiram esse planeta, devemos tomar isso como inspiração. E recordar que a essência dessa força descomunal existe em nós. Mesmo que oculta sob mil véus. Véus que são colocados por meio de legiões de fatores - mercado de trabalho, relações familiares, valores morais, sistema educacional, tabus religiosos, etc. Elencar aqui a lista de “inimigos a vencer” seria apenas reproduzir coisas que o leitor que chegou até aqui já conhece. E não se trata de uma ridícula abordagem de autoajuda, que visa mediante uma metáfora mostrar a força interna que existe em nós. Aqui retomo o ensinamento da tradição dos Sete Reinos da Quimbanda, onde a Kalunga, isto é, o cemitério, que tem mais do que naturais relações com as energias ctônicas: não por acaso, a primeira iniciação de reino que um adepto deve realizar é no Reino da Kalunga, não apenas como forma de ser propriamente apresentado às energias da Morte, mas também como forma de reconhecer a Kalunga como início e fim de tudo e, também, como a base que o sustentará em sua jornada espiritual. É na terra, portanto, na sua essência mais natural como elemento, que encontramos as respostas e a força necessária para enfrentar dificuldades e fincar os alicerces. 

O Precâmbrico nos desafia a olhar para além de nós mesmos, não apenas para entendermos que ao final das contas nossas dores são transitoriamente pequeninas, mas também como inspiração para criarmos um novo tipo de ser com a essência titânica que ele nos deixou como herança. Fazer da vida uma grande aventura, tão gigantesca como as explosões primordiais; correr em busca de realizar projetos com a mesma ferocidade dos rios de lava de larguras quilométricas; ter a impetuosidade de amar com toda a força explosiva das grandes nuvens de gases pesados; renascer a cada dia com mais apetite por transformações, solidificando em rocha duríssima nossos caráter; e olhar as cicatrizes do passado como aprendizados para que, em novas configurações tectônicas, se formem as bases para voos mais altos e amplos dos nossos sonhos. Estranho usar a palavra "sonho" em um texto sobre o Precâmbrico, essa era geológica tempestuosamente selvagem, tão distante de nós em um período incompreensível em termos humanos, mas é como eu o enxergo daqui ao chegar no final desse texto: um período tão estranho e interessante que só pode se assemelhar a um tipo de sonho. Que os nossos sejam alimentados com essa essência onírica precambriana, reverberando em nosso cotidiano toda a sua potência mítica e criadora.