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12.28.2012

O burguês, por Hermann Hesse


"O “burguês”, como um estado sempre presente da vida humana, não é outra coisa senão a tentativa de uma transigência, a tentativa de um equilibrado meio-termo entre os inumeráveis extremos e pares de opostos da conduta humana. Tomemos, por exemplo, qualquer dessas dualidades, como o santo e o libertino, e nossa comparação se esclarecerá em seguida. O homem tem a possibilidade de entregar-se por completo ao espiritual, à tentativa de aproximar-se de Deus, ao ideal de santidade. Também tem, por outro lado, a possibilidade de entregar-se inteiramente à vida dos instintos, aos anseios da carne, e dirigir seus esforços no sentido de satisfazer seus prazeres momentâneos. Um dos caminhos conduz à santidade, ao martírio do espírito, à entrega a Deus. O outro caminho conduz à libertinagem, ao martírio da carne, à entrega, à corrupção. O burguês tentará caminhar entre ambos, no meio do caminho. Nunca se entregará nem se abandonará à embriaguez ou ao ascetismo; nunca será mártir nem consentirá em sua destruição, mas, ao contrário, seu ideal não é a entrega, mas a conservação de seu eu, seu esforço não significa nem santidade nem libertinagem, o absoluto lhe é insuportável, quer certamente servir a Deus, mas também entregar-se ao êxtase, quer ser virtuoso, mas quer igualmente passar bem e viver comodamente sobre a terra. Em resumo, tenta plantar-se em meio aos dois extremos, numa zona temperada e vantajosa, sem grandes tempestades ou borrascas, e o consegue ainda que à custa daquela intensidade de vida e de sentimentos que uma existência extremada e sem reservas permite. Viver intensamente só se consegue à custa do eu. Mas o burguês não aprecia nada tanto quanto o seu eu (um eu na verdade rudimentarmente desenvolvido). À custa da intensidade consegue, pois, a subsistência e a segurança; em lugar da posse de Deus cultiva a tranqüilidade da consciência; em lugar dos ardores mortais, uma temperatura agradável. O burguês é, pois, segundo sua natureza, uma criatura de impulsos vitais muito débeis e angustiosos, temerosa de qualquer entrega de si mesma, fácil de governar. Por isso colocou em lugar do poder a maioria, em lugar da autoridade a lei, em lugar da responsabilidade as eleições."

Trecho de "O lobo da estepe", do Hermann Hesse.

9.11.2012

A mercantilização do livro: o "manifesto dos 451"


Livros são um excelente negócio. Por mais tenebrosas que sejam as estatísticas mostrando que o brasileiro lê menos de dois livros por ano, o mercado editorial cresce (ainda que timidamente). Em números absolutos, foram produzidos no ano passado 499.796.286 unidades de livros que correspondem a 58.192 títulos (entre inéditos e reimpressões): uma oferta quase infinita de possibilidades de leituras, que transforma as livrarias em verdadeiros shopping centers, elevando algumas ao pomposo status de atração cultural de algumas cidades - é o caso da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, na capital paulista. 

Amantes de livros, e de literatura em especial, tenderiam a ver esse cenário como positivo. Afinal, melhor ter  essa abundância de livros do que não alguns poucos e mirrados lançamentos. Entretanto, o que estaria nos bastidores dessa opulência editorial, fenômeno que não é restrito ao Brasil? Como a produção de e-books e  e-readers estimula esse crescimento? Que interesses ocultos (perversos?) estão presentes nos preços fabulosos oferecidos pela Amazon? As sociedades estão de fato se beneficiando desses processos? Ou tudo não passa de um sintoma da decadência cada vez mais acelerada, onde a cultura é tão somente mais um aspecto da vida a se degradar?

São questionamentos como esses que motivou a criação do grupo "Les 451", em Paris, que lançou o seu manifesto no último dia 5 de setembro nesse site e assinado por 451 profissionais do mercado livreiro (revisores, editores, escritores, bibliotecários, etc). Entre seus signatários, o filósofo italiano Giorgio Agamben, autor que já tive a oportunidade de ler/comentar alguns textos e que foi um dos motivos a colocar aqui uma tradução do manifesto, publicado de modo inédito em língua portuguesa graças à iniciativa de Bolívar Torres e Juliana Fausto. Fica aqui meu agradecimento a ambos.

Sem mais delongas, o manifesto.

O livro e a armadilha da mercadorização
Nós, o coletivo de 451 profissionais da cadeia de negócios do livro, começamos a nos reunir há algum tempo para discutir a situação presente e futura de nossas atividades. Tomados em uma organização social que separa as tarefas, a partir de um sentimento comum – fundado em experiências diversas – de uma degradação acelerada das maneiras de ler, produzir, compartilhar e vender livros, consideramos que hoje a questão não se limita ao setor, e procuramos soluções coletivas para uma situação social que nos recusamos a aceitar.

A indústria do livro vive em grande parte graças à precariedade que aceitam muitos de seus trabalhadores, seja por necessidade, paixão ou engajamento político. Enquanto estes tentam difundir ideias ou imagens capazes de mudar nossos pontos de vista sobre o mundo, outros têm entendido que o livro é sobretudo uma mercadoria com a qual é possível conseguir lucros substanciais

Sabendo tanto como se apropriar dos grandes princípios de independência ou de democracia cultural quanto praticar a avalanche publicitária, a exploração salarial e a diversidade do monopólio, as Leclerc, Fnac, Amazon, Lagardère e outros grandes grupos financeiros querem nos fazer perder de vista uma das dimensões essenciais do livro: um elo, um encontro.

Enquanto isso, quer se trate de profissionais simbolicamente reconhecidos ou de pequenos serviços indispensáveis à toda cadeia econômica, cultural e social, as profissões ligadas ao livro são desqualificadas e substituídas por operações técnicas nas quais tomar tempo se torna inconcebível.

A indústria do livro não tem de fato necessidade senão de consumidores impulsivos, de networkers de opinião e de outros temporários maleáveis? Muitos de nós se encontram então presos às lógicas do mercado, desprovidos de qualquer pensamento coletivo ou de perspectivas de emancipação social – hoje em dia terrivelmente ausentes do espaço público.

Enfraquecida pelo critério do sucesso, a produção de ensaios, de literatura ou de poesia se empobrece, os recursos de livrarias ou de bibliotecas se esgotam. O valor de um livro se dá em função de seus números de venda e não de seu conteúdo. Não será mais possível ler senão o que é bem-sucedido. Ora, enquanto o CEO da Amazon, Jeff Bezos, declara que “atualmente as únicas pessoas necessárias para a edição são o leitor e o escritor”, certas pessoas continuam a trabalhar com livros, livrarias, gráficas, bibliotecas ou em editoras em escala humana. Apesar de nossa vontade de resistir, nós somos, como a imensa maioria, cercados pela informática, pelas lógicas gerenciais e pelos finais de mês difíceis.

Embarcamos igualmente em uma pseudodemocratização da cultura, que continua a se nivelar por baixo, e se reduzir ao empobrecimento e uniformização das ideias e dos imaginários, para corresponder ao mercado e à sua racionalidade. Atônitos, tentamos nos manter atualizados: nos viramos com os programas, as encomendas on-line, os corretores automáticos, as deslocalizações, a avalanche de novidades rasas, as ameaças dos bancos, a alta dos aluguéis e as digitalizações selvagens.

Todavia, não podemos resolver reduzir o livro e seu conteúdo a um fluxo de informações digitais e clicáveis ad nauseam; o que nós produzimos, compartilhamos e vendemos é antes de tudo um objeto social, político e poético. Mesmo em seu aspecto mais modesto, de divertimento ou de prazer, fazemos questão de que permaneça cercado por seres humanos.  

Rejeitamos claramente o modelo de sociedade que nos está sendo proposto, alguma parte entre a tela e a grande superfície, com seus bip-bips, seus néons e seus fones crepitantes, e que tende a conquistar todas as profissões. Pois, pensando na atualidade das profissões, nós pensamos igualmente em todos que vivem situações similares demais para serem anedóticas.

Dessa maneira, os médicos segmentam seus atos para melhor contabilizar, os trabalhadores se esgotam preenchendo tabelas de avaliação, os carpinteiros já não podem plantar um prego que não seja ordenado por um computador, os pastores são  convocados a equipar suas ovelhas com chips eletrônicos, os mecânicos obedecem às suas ferramentas informatizadas e a mochila eletrônica nas escolas é para daqui a pouco.  

A lista é tão longa que é preciso se agrupar para parar esta máquina cega de progresso. Em vez de esperar a próxima medida europeia de rigor ou o enésimo ataque do ministério da cultura contra a cadeia de profissões do livro, preferimos nos organizar desde já.

Por exemplo, encontrando alternativas, criando cooperativas mútuas de compra, unindo-nos por melhores condições salariais, ou ainda inventando lugares e práticas que convêm melhor à nossa visão de mundo e à sociedade em que desejamos viver.

É justamente porque tomamos a medida do desastre atual que estamos otimistas: tudo está para ser construído. Antes de mais nada, queremos parar de jogar eternamente a culpa uns nos outros e cortar na raiz a resignação e o derrotismo ambientes. Lançamos então um chamado a todos aqueles e todas aquelas que se sentem interessados a se encontrar com o objetivo de compartilhar nossas dificuldades e necessidades, nossos desejos e projetos.  


Versão original em http://les451.noblogs.org/

3.01.2012

"O deserto dos tártaros", de Dino Buzatti



“- Estou bem – repetiu Drogo quase não reconhecendo a própria voz – Estou bem e quero ficar.


- Ficar aqui no forte? Não quer mais ir embora? O que lhe aconteceu?


- Não sei – disse Giovanni. – Mas não posso ir embora.”

É nesse momento, ao final do capítulo 9, que o personagem principal renuncia à vida na cidade e decide seu destino de reclusão no livro “O deserto dos tártaros”, do italiano Dino Buzzati. Esse post será uma brevíssima resenha desse angustiante romance.

Lançado em 1945, “O deserto dos tártaros” narra a história do jovem Giovanni Drogo que, após formar-se na escola de oficiais do exército, é designado a servir no antigo forte Bastiani, localizado nos limites extremos do império (não há uma referência espacial precisa, o que acentua ainda mais o caráter fabuloso do livro). Lá, nas muralhas do forte, vislumbra-se um imenso deserto, entremeado por montanhas inacessíveis, terrenos ressequidos e uma solidão tão imensa quanto a dureza das rochas milenares que o circundam. E nesse cenário de absoluto isolamento, soldados atentamente observam a planície sem fim, ansiosos de que os inimigos do Norte, os tártaros, enfim façam seu ataque há anos esperado.

Nessa espera absurda por um inimigo que não existe, Drogo encontra muitos homens que vivem no forte há décadas. Com paciência inumana, fielmente observam procedimentos de vigília das muralhas, de exercícios militares, de patrulhas metódicas em uma planície que é apenas um nada arenoso. No momento inicial, Giovanni observa tais comportamentos com um pouco de perplexidade; e temendo pelos efeitos negativos que poderiam macular sua carreira caso permanecesse por muito tempo naquele forte tão distante das oportunidades da cidade, pede transferência para outro posto logo no primeiro dia. O major Matti o aconselha a esperar pelo menos quatro meses: seria o tempo necessário para que o médico do exército viesse para os exames rotineiros, e ocasião perfeita para que Drogo alegasse algum tipo de problema ocasionado pela elevada altitude do forte e, então, conseguisse uma transferência sem risco de desonras, que poderia acontecer caso formalizasse um pedido desses logo nos primeiros dias.

Os quatro meses são suficientes para que o jovem Drogo fosse contaminado, ainda que em um grau mínimo, pela rotina do forte. Tempo o bastante para que ele também observasse o vasto deserto com paixão, na irracional espera pelos tártaros. Assim como os outros que ali estavam, para ele também a possibilidade de guerra contra o inimigo do Norte configurava-se como passaporte para um valor heróico de brilho sem igual – e então Drogo resolve esperar.  O romance avança no detalhamento de um cotidiano onde os dias de Giovanni passam como segundos, os meses como minutos, os anos acumulam-se sem ao menos que ele perceba. Para Drogo e todos os outros soldados ali confinados, em uma prisão voluntária das relações ditas normais, a espera tornava a glória do futuro combate ainda maior. Consumiam a vida na vigília constante das planícies do Norte, esperando os temíveis tártaros, aguardando um momento que nunca chegará, ao mesmo tempo convictos de que a guerra aconteceria e que tudo isso – a espera, os exercícios militares, as trocas de turno de guarda com seu rigor procedimental – que tudo isso não passava da mais absoluta perda de tempo. 

O romance foi muitas vezes considerado como uma alegoria da inutilidade do poder e suas convenções. O autor, em uma entrevista de 26 de maio de 1959 ao jornal Il Giorno, relacionou-o com “o amesquinhamento cotidiano e a condição humana em geral”. Uma boa interpretação, também sustentada pelo próprio Buzatti, é que o romance retrata uma sensação extremamente moderna: o consumir inutilmente a vida em uma tarefa sem fim, sem propósito, enquanto se espera um acontecimento espetacular que agirá como um divisor de águas – momento mágico que nunca se concretiza. Assim, a realização da vida se projeta sempre para frente (a conquista do “verdadeiro amor”, de uma casa, um bom emprego, etc, apenas para citar os exemplos mais banais) enquanto que a vida mesma se esvai em espera e amargura:

“Do deserto do norte devia chegar a sorte, a aventura, a hora milagrosa, que, pelo menos uma vez, cabe a cada um. Para essa vaga eventualidade, que parecia tornar-se cada vez mais incerta com o tempo, os homens consumiam ali a melhor parte de suas vidas.”

A passagem do tempo: talvez seja esse o grande tema do romance, o fio que amarra e ordena todas as suas partes. Como os homens experimentam essa passagem do tempo, como relacionam suas vidas, projetos, ambições e desejos com o fluxo incessante dos segundos. Buzatti mostra que a espera da felicidade futura é suficiente para preencher uma vida, mesmo que com as areias da ilusão. O velho Drogo, doente e esquecido pelo alto comando do forte, prepara-se nas páginas finais do romance para enfrentar os tártaros que enfim iniciam seu ataque – e é um rebotalho de homem, um velho doente e incapaz até de andar sozinho que pega o sabre, um homem que sabe muito bem que não tem mais condições de lutar. Nem mesmo esse ataque temos certeza que é, de fato, aquele tão esperado: não seria apenas mais um alarme falso, como outros do passado? Mas nada disso importa: está sustentando pela fé de toda uma vida, por anos esperando aquele acontecimento divisor de águas que transformaria para sempre a existência. 

As mentiras são capazes de muitas coisas, até mesmo de fazer um homem passar décadas no meio do nada, e de fazê-lo esquecer que no fundo o sentido do tempo é unicamente conduzir o ser ao seu término. A esperança de que as coisas um dia irão mudar radicalmente – essa fé que anima os corações de legiões de Drogos pelo mundo – muitas vezes nos priva da experiência da vida mesma, de seus perigos, tropeços, solavancos, explosões. É porque somos uma raça de descontentes: ansiamos por diferentes maravilhas e catarses o tempo todo. Nosso cotidiano é cinza, a rotina se baseia na estupidez, o amor torna-se cansativo e as promessas de eternizá-lo acabam por tornar os afetos um tipo de martírio – e passamos a desejar o nosso ataque dos tártaros sob a forma de um enriquecimento momentâneo, de uma viagem internacional ou de uma paixão que renove nossos instintos. É a compensação mentirosa que precisamos para suportar o deserto da vida.

Há uma adaptação do romance para o cinema, dirigida por Valério Zurline e lançado em 1976. Com trilha sonora de Enio Morricone, consegue reproduzir muito bem o clima desolador e angustiante do livro. Um vídeo com diversos trechos do filme:




2.24.2012

Igreja do Livro Transformador


Desde a infância gosto de igrejas católicas. Formado em um lar onde as imagens de Jesus e Maria estavam (ainda estão) presentes, a admiração por templos do catolicismo conviveu pacificamente com o ateísmo militante que nutri durante anos. Deve ter sido por isso que o nome Igreja do Livro Transformador causou em mim uma sensação de imediata admiração e curiosidade.

Imaginei a princípio que se tratasse de uma dessas novas acefalias evangélicas, que inventam 14778 novo nomes diariamente para seus ridículos cultos que agigantam contas bancárias na exata proporção em que diminuem mentes. Para minha surpresa o livro em questão não era a Bíblia, a transformação não era pela fé, a igreja não era divina: era um convite para as pessoas darem testemunhos sobre o livro que, após lido, proporcionou alguma importante mudança em suas vidas.

A Igreja do Livro Transformador começou como uma brincadeira do escritor Luiz Ruffato, e terminou se espalhando em sites e eventos literários pelo Brasil todo. Novos convertidos ao credo do Livro Transformador ajudaram a espalhar a boa nova, que tomei contato através do site InterrogAção. Lá, eles convidam os novos adeptos a algo muito simples: gravar um depoimento em vídeo sobre o livro que transformou sua vida. 

Eu até gostaria de ter coragem de me filmar falando algo sobre isso, mas todas as vezes que apareço frente a uma câmera o resultado é desastroso, então prefiro a covardia da escrita para fazer isso e dizer que o meu Livro Transformador - assim mesmo, com letras maiúsculas, pois se trata de algo para se venerar - foi Noites Brancas, do Dostoiévski. Essa diminuta novela me ofereceu a oportunidade de mergulhar, profunda e completamente, na desgraça que é experimentar um amor não correspondido. É na primeira juventude que a decepção amorosa acontece como se fosse uma experiência do absoluto, e eu tinha dezesseis anos quando isso aconteceu. Se não me engano, comprei Noites Brancas em um sebo no centro de Santo André, onde eu morava na época, e o li em apenas uma tarde. A dor do personagem era a minha dor, a Nastienka que vai embora e deixa o narrador sozinho em uma rua deserta era a minha Nastienka, para sempre longe e distante. Acho que nunca me envolvi emocionalmente em tão alto grau com um livro, a ponto de a imagem de Nastienka acompanhar-me por longos e longos anos como um arquétipo pessoal do amor sexual não realizado, da promessa impossível de uma felicidade sem limites. 

Mas não foi apenas a produção de fantasmas que esse livro gerou: ele também me ensinou que a literatura pode servir como ponte para experiências internas extremas. O sofrimento intensificado pela leitura de Dostoiévski foi a primeira dessas experiências, e talvez sem a leitura de Noites Brancas, exatamente naquele momento, eu jamais teria me relacionado com a literatura da maneira como faço hoje em dia. 

Abaixo um vídeo de Luiz Ruffato, explicando melhor os preceitos da Igreja.

1.14.2012

"Tudo o que é grande se constrói sobre mágoa" disponível no site da Ugra Press


As últimas cópias do livro foram enfim finalizadas pelo mestre encadernador da Ugra, herr Douglas Utescher, e está disponível para venda pelo correio.

O livro sai por R$ 20,00 + frete (R$ 6,00 em carta registrada ou R$ 3,00 em carta simples). Você pode pedir o seu pelo e-mail ugra.press@gmail.com

Foram feitas 100 cópias de Tudo o que é grande se constrói sobre mágoa, sendo que metade foi vendida no dia do lançamento, em dezembro passado. Restam pouquíssimas cópias e não há previsão de uma segunda edição por enquanto.

11.03.2011

Trecho de "História do olho", de Georges Bataille


Para os outros, o universo parece honesto. Parece honesto para as pessoas de bem porque elas têm os olhos castrados. É por isso que temem a obscenidade. Não sentem nenhuma angústia ao ouvir o canto do galo ou ao descobrirem o céu estrelado. Em geral, apreciam os "prazeres da carne" na condição de que sejam insossos.

Mas, desde então, não havia mais dúvidas: eu não gostava daquilo a que se chama "os prazeres da carne" justamente por serem insossos. Gostava de tudo o que era tido por "sujo". Não ficava satisfeito, muito pelo contrário, com a devassidão habitual, porque ela só contamina a devassidão e, afinal de contas, deixa intacta uma essência elevada e perfeitamente pura. A devassidão que eu conheço não suja apenas o meu corpo e os meus pensamentos, mas tudo o que imagino em sua presença e, sobretudo, o universo inteiro.

(página 58, edição da Cosac Naify de 2003)

4.11.2011

A morte de Bunny Munro: uma tentativa de resenha


Nick Cave talvez dispense apresentações. Mas a regra da clareza me impõe uma introdução, aquela lambidinha básica que todos gostamos antes de... bem, isso  com certeza você sabe.

Então é isso: músico australiano que começou sua carreira nos anos 80 com o The Birthday Party, banda relativamente desconhecida quando colocada ao lado do monstruoso The Bad Seeds, o musical dream team que acompanha Cave desde o fim de sua primeira banda. Canções como “Red right hand", “The weeping song” ou “Straight to you” são verdadeiros hinos catárticos que provam que o universo da música pop é (ou era) capaz de oferecer algo mais do que hits de verão descartáveis. Morou em São Paulo por muitos anos e reza a lenda que freqüentou os puteiros da Rua Augusta em uma época onde aquele ponto da capital paulistana não tinha o aspecto hype dos dias atuais. Além de tudo isso, Mr Cave já escreveu o argumento do filme The Proposition (2007), assinando também a trilha sonora. Também compôs a trilha de “O assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford” (2007) junto com Warren Ellis, seu comparsa no Bad Seeds e no Grinderman, banda na qual Cave se dedica a músicas com uma veia mais rock e visceral.

2.01.2010

Novidades sobre o livro

Terminei agora a revisão do livro que reunirá, em versões modificadas, os posts que considero os mais representativos do Dissolve//Coagula.

Serão dezenove textos que, em meu entendimento, sintetizam a produção que desenvolvo aqui desde setembro de 2006.

As mudanças empreendidas nos textos foram variadas. Em alguns, reescrevi passagens inteiras; em outros, suprimi trechos supérfluos; também inseri muitas coisas novas, principalmente nos textos mais antigos. Revisei todo o conteúdo, até onde me lembro, quatro vezes (e eu acho que ainda foi pouco, mas por fatores externa e bons conselhos de amigos mais próximos resolvi deixar a obsessão crítica de lado e entregar o produto tal como ele está).

O interessante nesse processo foi perceber como fatos vividos desencadearam textos que se distanciaram e muito das minhas vivências. Em outras palavras: por mais que experiências pessoais possam influenciar o processo criativo, elas não foram determinantes para a composição de boa parte do que escrevi até agora. A fantasia divide com a experiência direta o palco onde meus personagens vivem, sofrem e cometem atos desvairados. Talvez não ainda da forma como eu gostaria, pois sempre me sinto um enorme aprendiz do ato de escrever, principalmente quando leio os mestres de sempre (Dostoiévski, Cortázar, Cioran). Apesar disso, o resultado geral me deixou satisfeito.

Perguntaram-me quem irá lançar o livro. Será um editora nova, que estou construindo em companhia de um velho amigo. O objetivo é produzir trabalhos de uma forma especial, arrisco a dizer artesanal, e com meios próprios. Não leia nisso trabalhos-faça-você-mesmo-precários-e-toscos. Justamente o oposto: edições artesanais e únicas, mas primorosas. Feitas para serem apreciadas em uma confortável poltrona, manuseados enquanto se fuma um cigarro, levados na mochila nas viagens. Uma tentativa algo quixotesca de reavivar o impresso em tempos digitais, uma bandeira hasteada com orgulho em prol das prensas de Gutenberg.

Quando estará disponível, agora eu não sei dizer. Mas posso dizer que a parte mais complicada, que era a revisão, terminou. As novidades eu conto logo mais.

11.26.2009

Em defesa do romance - Vargas Llosa


No site da Revista Piaui há um ótimo texto do Mario Vargas Llosa, cujo mote principal é a defesa da literatura. Para ele, "um mundo sem literatura teria como traço principal o conformismo, a submissão dos seres humanos ao estabelecido. Seria um mundo animal."

Embora o texto tenha excelentes momentos (como quando aborda a relação entre literatura e prazer sexual, no qual Llosa sustenta que tanto o amor quanto o prazer "seriam mais pobres, privados de delicadeza e de distinção, da intensidade a que chegam todos aqueles que se educaram e estimularam com a sensibilidade e as fantasias literárias") a aposta que o leitor faz na literatura como um fator humanizante chega a dar sono. A depuração do intelecto nem sempre vem acompanhada da depuração do caráter. Sarney, por exemplo, é um dos maiores bibliófilos do Brasil. Esse é um dos pontos onde o texto de Llosa falha vergonhosamente.

Outro ponto é a aposta na literatura como passaporte para a civilização. Ele diz:

"Uma humanidade sem romances, não contaminada pela literatura, se pareceria com uma comunidade de tartamudos e afásicos, atormentada por problemas terríveis de comunicação causados por uma linguagem ordinária e rudimentar."

Não preciso sublinhar no trecho acima a desconfiança de Llosa pelas culturas não letradas. Em certa medida, ele está correto: parece haver um salto qualitativo nas realizações culturais de um povo quando este passa da oralidade para a escrita. Mas voltemos os olhos para outras culturas, onde literatura tal como a defendida por Llosa nem de longe existia.

A Índia, por exemplo. O Rig Veda, composição poética de mais de seis mil anos (para alguns doze mil anos) era eminentemente oral. Não eram textos literários, no sentido ocidental do termo. Sua função era eminentemente religiosa. Contudo as noções morais ali colocadas, os dilemas humanos e tudo o mais revelam um apuro comunicativo altamente desenvolvido, muito distantes da animalização que Llosa julga encontrar nas sociedades que não lêem/produzem romances.

E para nos atermos a exemplos mais próximos no tempo e espaço, podemos lembrar dos incas, subjugados pelos letradíssimos espanhóis na sua sede por ouro, e que mesmo não possuindo literatura deram mostras inegáveis de uma cultura desenvolvida em grande escala. Os relatos dos primeiros colonizadores, em muitos pontos, salientam as maneiras educadas e respeitosas nos tratos entre si dos povos originários.

Llosa, longe de perceber estes fatos incontestáveis, faz uma aposta ilusória no fator humanizante da literatura. Tal afirmação só pode sobreviver pela arrogância ocidentalizante de que o conhecimento, por si só, é capaz de moldar o caráter. A vivência acadêmica na USP tratou de esfregar na minha cara que essa é uma das maiores mentiras já inventadas.

Obviamente não defendo o embrutecimento e a opção voluntária pela burrice Uma das coisas mais irritantes para mim é a ignorância. Mas afirmar que a literatura é o motor principal da abertura das consciências soa como piada aos meus ouvidos.

Parece que o conhecimento depura o ser apenas quando acompanhado de vivências e reflexões. Da mesma forma que não basta ler Alfred de Musset para se tornar um exímio amante, sendo necessário algumas garotas (ou garotos) para se realizar como tal. O mundo, a grande experiência do mundo, os perigos e oportunidades que ele oferece compõem a arena onde nos arriscamos diariamente. E nesses riscos diários as páginas dos livros, por mais importantes que sejam, parecem não são ser decisivas.

11.25.2009

Preâmbulos

Há dias em que apenas uma chuva de ácido sossegaria minha sede de mandar este universo e cada uma dos seres humanos que nele habitam para o nada de onde todas as coisas que existem, definitivamente, nunca deveriam ter saído.

Até lá, preencherei os dias entre a contemplação deste desastre e tentativas de tornar menos miserável o dia-a-dia. Há sempre o fracasso como possibilidade entre um e outro, e é bom lembrar disso, como maneira de equilibrar a arrogância, natural companheira minha.

Hoje ainda posto umas reflexões que tive sobre este texto do Mario Vargas Llosa. Ou talvez amanhã. A herança colonial sempre será a desculpa para o eterno para-depois e para-amanhã que costumamos aplicar a quase tudo. Gosto de boas desculpas, essas fantasias que em geral encobrem a fraqueza.

11.17.2009

As listas e a cultura

Hoje eu li uma entrevista com o Umberto Eco onde ele fala da importância que as listas desempenham para a cultura ocidental. Segundo ele, listar coisas faz parte do desejo humano de criar uma certa ordem em meio ao caos e estabelecer limites para o incompreensível. Daí surgiram dicionários, enciclopédias, legislaturas, museus - realizações estas que são como as grande listas de nossa cultura, registros das conquistas e criações dos homens nos mais diversos campos do conhecimento.

Fazer listas é inegavelmente um ato cultural, e na literatura elas ocorrem amiúde. E no cânone da literatura ocidental, uma das mais marcantes listas ocorre na Íliada. Conhecida como "o catálogo das naus", extende-se dos versos 484 a 877 do canto II , e é uma enorme lista de todos os povos e generais que participaram do cerco a Tróia, enumerados um a um, com as respectivas quantidades de navios e homens levados para a expedição guerreira.

De certa forma, o catálogo é um corpo estranho no poema: quebra-se a narrativa para enumeração de soldados. Há um debate secular sobre este trecho da Ilíada, mas todos concordam que um dos efeitos da passagem é mostrar a grandiosidade nunca vista da expedição, para que o leitor pudesse medir as dimensões do confronto; e justamente estas dimensões, épicas por excelência, foram as responsáveis pela popularidade da guerra. É mais ou menos isso que Eco diz neste trecho da entrevista:

Na "Ilíada", ele tenta transmitir uma impressão do tamanho do exército grego. Primeiro ele usa metáforas: "Assim como um grande fogo florestal investe contra o topo de uma montanha e sua luz é vista de longe, enquanto marchavam, o brilho de suas armaduras reluzia nas alturas do céu". Mas não fica satisfeito. Ele não consegue encontrar a metáfora certa, então implora às musas para que o ajudem. Então ele chega à ideia de listar os nomes de muitos, muitos generais e seus navios.

Na edição bilíngüe com tradução de Haroldo de Campos, pouco antes de começar a lista das naus, o poeta evoca as musas com os seguintes versos:

(...) o total de nomes da multidão, nem tendo dez bocas, dez línguas, voz inquebrantável, peito brônzeo, eu saberia dizer, se as Musas, filhas de Zeus porta-escudo, olímpicas, não derem à memória ajuda, renomeando-me os nomes."

O gênero épico prescreve a evocação das musas como auxílio ao poeta, para o sucesso da narrativa. E momentos antes de efetuar a lista dos povos que se movem contra Tróia, nada mais adequado: a tarefa, o poeta sabe, é enorme. Justamente sobre essa dificuldade Eco fala logo em seguida:

O trabalho de Homero se depara constantemente com o tópos do inexpressível. As pessoas sempre farão isso. Sempre fomos fascinados pelo espaço infinito, pelas estrelas incontáveis e galáxias além das galáxias. Como uma pessoa se sente olhando para o céu? Ela acredita que sua língua não é suficiente para descrever o que vê.

Foi lendo este ponto da entrevista que me lembrei da mais recente versão para o cinema da guerra de Tróia, lançada em 2004. Procurei rememorar como a tediosa listagem das embarcações feita por Homero foi transposta para as grandes telas. Se você viu o filme, talvez se lembre de uma cena presente na primeira meia hora, que não dura mais do que poucos segundos, onde o mar Egeu aparece coalhado por milhares de embarcações. A cena é breve, mas a impressão produzida pela imagem de um mar repleto de barcos dá a dimensão da guerra que está prestes a começar.

O que podemos concluir disso? Que a sintaxe própria da linguagem do cinema, estruturada na imagem, difere da do texto épico, baseada na escrita. A escrita não tem a simultaneidade radical da tela do cinema, onde todos os barcos podem ser vistos ao mesmo tempo: é o acúmulo descritivo da lista que permite ao texto homérico criar a impressão de grandiosidade do exército que acompanha Agamêmnon.

De certo modo, a literatura força o leitor a produzir a imagem da armada gigantesca, em um esforço imagético impulsionado pela leitura. Claro que o nível de detalhamento da imagem do Egeu dominado por naus dependerá em larga medida do repertório do leitor, dos seu nível de interesse pelo texto lido e também da tradução utilizada. Mas se a leitura do texto épico proporciona este exercício mental, ou melhor, se a literatura é ela inteira um exercício de (re)criação de imagens, a transposição de textos literários para as telas do cinema anula este prazeroso desafio e nos dá as imagens prontas, acabadas. No caso específico da Ilíada, a grandiosa lista de Homero me obrigou a vencer, na primeira leitura que dela realizei, uma espécie de enfado por tão longa e tediosa descrição; contudo o efeito almejado é soberbo, e ainda terei a paciência (e o tempo, recursos escasso) para fazer um mapa com os nomes das regiões citadas (e não a lista uma espécie de atlas escrito daqueles tempos?). Já no cinema, nenhuma referência geográfica é dada: mostra-se o mar infinito tomado por barcos de todos os tipos e tamanhos. A visão é terrível, acentuada pelo movimento da câmera e pela trilha sonora; adequa-se, para citar Paul Veyne, ao nosso intenso gosto moderno, que só admite a arte como excesso, grandiosidade, estremecimento.

Neste sentido, a lista proposta por Eco não satisfaz mais. Em geral são chatas, para alguns até mesmo insuportáveis. O cinema nos fornece uma possibilidade de reproduzir a impressão de grandiosidade da lista poupando o esforço intelectivo de recriar a imagem da armada enorme. São linguagens diferentes e, claro, é preciso entendê-las tal e qual; mas as deficiências da lista como recurso literário não são abordadas por Eco na entrevista. Poderíamos levar em conta que a Ilíada é um exemplo demasiado gasto, com seus 26 séculos de idade; mas mesmo em autores recentes, como Eça de Queirós, a leitura das partes descritivas (que nada mais são do que listas) é por muitos evitada. Mesmo para os que gostam de literatura e até mesmo para aqueles que a encaram como profissão. Listas demandam cuidado, apuro, paciência. São inegavelmente um produto cultural escrito (ou mesmo falado, se pensarmos que a Ilíada e muito da tradição épica antiga são sobretudo versões escritas de poemas orais, e nisso Milman Parry é a melhor fonte a consultar).

Frente a isso, retomo certos aspectos de meu post anterior para finalizar dizendo que certamente seria muito interessante ver Eco problematizando as listas de nossa cultura (uma cultura fundada em inúmeras listas), contrapondo-a com um ambiente onde a imagem ganha mais espaço e deixa a leitura como um item necessário, porém fadado a simplificações de forma e conteúdo que, se as previsões pessimistas se confirmarem, tornará cada vez mais difícil a formação de leitores capazes de efetuar leituras em profundidade. Isso ode ser uma boa explicação para a crescente popularidade dos romances históricos, que transformam a árida matéria dos livros de História em excitantes enredos. Ou mesmo para o fenômeno Dan Brown, cujos livros recheados de informações sobre arte, literatura, arquitetura, etc são verdadeiras minas de ouro para as editoras, e os leitores em geral oferecem, ao final da leitura, uma confortável sensação de inteligência e erudição - feita de retalhos toscos, mas mesmo assim garante um certo brilho de sagacidade na mesa do bar. Nada contra a mesa do bar, mas esta sensação de conhecimento é apenas isso mesmo, uma sensação, e nada mais além disso.

11.09.2009

O romance e os novos processos de leitura


Este post é uma espécie de continuidade da idéia apenas esboçada no post anterior -de que romances com uma "sintaxe cinematográfica" poderiam ser um fator de inovação da linguagem romanesca. Embora eu não tenha encontrado uma resposta definitiva, logo após a publicação do post deparei com dois artigos que me fizeram pensar mais a respeito, ampliando o escopo do problema.

O primeiro foi um artigo publicado no The New York Times, que comenta sobre "Level 26: dark origins", o novo romance de Anthony Zilker, criador da série CSI. O romance, lançado em setembro, está disponível, além da versão impressa, em formato e-book, áudio livro e também para iPhones. Mas não é só isso: os leitores do romance são encorajados a visitar um site com vídeos baseados em passagens do livro.

O NYT chama livros como "Level 26" de "hybrid books" ou, de forma ainda mais ousada, de "vooks" (neologismo de gosto duvidoso, sem dúvida). Ainda neste artigo, Judith Curr, editora da Atria Book, diz que "você não pode mais ser linear com o seu texto" e que "todo mundo está tentando pensar em como livros e informação [multimídia] ficarão melhor combinados no século 21". Esta combinação do livro com vídeos e sites, diz-se, proporcionarão uma interação maior do leitor com a obra, em uma experiência cognitiva que não se limitará mais a leitura do que está no papel.

Além da interação leitor-obra, as redes sociais e os blogs poderão ser meios de criar/potencializar um tipo de interação que nos anos passados era muito mais difícil (e na maioria dos casos impossível): a interação autor e leitor. Através destas ferramentas, o autor pode escrever um livro online e, mediante os comentários recebidos, promover (ou não) alterações. Susan Katz, editora da Harper Collins Children´s Books, aposta que no futuro será mesmo muito comum que "o autor seja visto como um líder de um grande grupo e escolherá a dedo a partir destas sugestões [dos leitores]". Isso, aliás, já está acontecendo: Kevin Kelly, desde 2004, está escrevendo um livro que conta com a participação de muitos de seus leitores. Cada post é discutido por uma série de pessoas em todo o mundo, e o próprio Kelly incentiva a prática neste texto onde explica suas motivações colaborativas.

O processo de leitura é de natureza linear. Formamos palavras através de letras, orações através de palavras e enfim textos com a (co)ordenação de tudo isso. E essa linearidade típica da leitura ocorre essencialmente no tempo. Os elementos discursivos são como que somados, colocados um na "frente" do outro, e daí se produzem os sentidos. Agora, com todas as possibilidades de interação promovidas por vídeos e redes sociais nos processos de leitura, ocorre como que uma quebra neste percurso linear. Romances como "Level 26" pretendem ampliar a experiência cognitiva, conferindo-lhe aspectos de simultaneidade. O texto "salta" do papel de uma forma muito mais concreta do que apenas na imaginação do leitor.

Esssa mescla do visual com o romance é algo ruim? Nenhuma resposta convincente pode ser dada a esta pergunta, pelo menos por enquanto. Considero até mesmo a minha pergunta um absurdo: juízos de valor sobre fatos culturais em geral deformam nossa visão sobre o fato. E o fato é que o romance, gênero literário essencialmente problemático (pois produto do zeitgeist da modernidade), está sofrendo abalos consideráveis em um contexto onde a imagem ganha espaço cada vez maior. Já em 1974 o alemão Adorno tinha dito que

"Assim como a pintura perdeu muitas de suas funções tradicionais para a fotografia, o romance as perdeu para a reportagem e para os meios da indústria cultural, sobretudo para o cinema."

E mais isso aqui:

"Noções como a de 'sentar-se e ler um livro' são arcaicas. Isso não se deve meramente à falta de concentração dos leitores, mas sim à matéria comunicada e à sua forma." (as duas citações extraídas de Notas de Literatura I, página 56, Duas Cidades/Editora 34, 2008)

As partes grifadas corroboram meu ponto de vista: a forma do romance está aquém de nosso tempo. Sua forma não corresponde mais totalmente aos anseios do homem atual. Isso já está sendo discutido há tanto tempo que me sinto idiota ao ler o que escrevi (digo isso como um alerta, para que o leitor não pense que descobri isso sozinho; sou de um convencimento absurdo, mas para certas coisas é preciso ter modéstia); e apenas para lembrar uma experiência radical de questionamento da linguagem romanesca, eu cito "Memórias sentimentais de João Miramar", de Oswald de Andrade, romance devastador que empurra os limites expressivos do romance para um pouco mais além das linhas estabelecidas naquele Brasil de 1924.

Voltemos ao mundo dos processos de leitura e das inovações promovidas por vooks e redes sociais. Neste artigo interessantíssimo do site The Frontal Cortex, discute-se como a leitura pelo computador se relaciona com os processos neurais. O que me chamou a atenção não foi saber que a dificuldade e incômodo que muitos expressam ao ler pelo computador é, neurologicamente falando, o mesmo que nos afeta ao ler um texto impresso com fonte não amigável (por exemplo, a letra gótica medieval), e que a prática contínua da leitura online elimina o desconforto da mesma forma que nos acostumamos com fontes indecifráveis (é incrível como a minha namorada, que é mais nova do que eu, lê com muita naturalidade no computador, e isso me faz pensar que há uma questão geracional ainda não devidamente estudada sobre por que as pessoas reclamam que não gostam de ler no computador). O que me suscitou interesse nesse artigo foram as palavras da neurocientista Maryanne Wolf, que acenou para a necessidade de estudar, até mesmo fisiologicamente, os processos cognitivos das novas gerações, submetidas que estão a vídeos, fotos e gifs animados que interferem no processo de leitura. Nunca se produziu tanto conhecimento e livros como hoje em dia, mas frente a tantas distrações , segundo ela será cada vez mais difícil a formação de leitores capazes de imersão profunda em textos longos e complexos.

Cortázar disse que o romance não tem leis, "a não ser a de impedir que a lei da gravidade entre em ação e o livro caia das mãos do leitor." Hoje a literatura ocorre além das páginas dos livros e se funde com vídeos, música, discussões em redes sociais. Muitas vezes, o romance que cai das mãos do leitor só faz isso para deixá-las livres e assim investigar um site onde o personagem conta detalhes da trama apenas sugerida nas páginas de papel. Se isso não é uma reconfiguração das leis do romance, então não sei o que pode ser.

5.23.2008

Sobre Literatura, Lukács e Crítica


Lendo Lukács, encontrei esta passagem:

"A literatura baseada na observação e descrição elimina sempre, em medida crescente, o intercâmbio entre a praxis e a vida interior. Talvez nunca tenha havido uma época na qual, como ocorre na nossa, ao lado da grande literatura oficial, pululasse tanta literatura de aventuras vazia e simplista. E não nos iludamos pensando que tal literatura seja lida somente por `gente inculta´ e que as elites se atenham à grande literatura moderna: comumente, dá-se o contrário. No mais das vezes, os modernos clássicos são lidos em parte por senso de dever e, em parte, pelo interesse no que concerne ao conteúdo que reflete (se bem que de modo enfraquecido e atenuado) os problemas do tempo. Para distração, entretanto, devoram-se os romances policiais" (LUKÁCS, György. Ensaios sobre Literatura, Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1965).

Trata-se de trecho do ensaio "Narrar ou Descrever", onde o autor examina as duas técnicas e suas implicações, para além das dimensões puramente literárias. Inicialmente comparando dois romances modernos, Naná de Zola e Ana Karênina de Tolstói, Lukács escolhe um elemento comum aos dois: a presença, em um dado momento, de uma corrida de cavalos. Enquanto Zola, com o seu rigor, descreve em minúcia cada detalhe da corrida, com uma enorme riqueza de detalhes mas sem, contudo, integrar tal descrição de modo orgânico ao romance - podendo até mesmo ser descartada para a compreensão geral da trama - em Tolstói a narração da corrida está intimamente ligada ao andamento dos fatos, e cada etapa da corrida corresponde a uma ação decisiva entre os personagens - e isto é tão fortemente marcado que, ao término da corrida, o enredo toma rumos absolutamente diferentes, com Ana confessando a Karenin, seu esposo, o envolvimento com Wronski, um dos participantes da corrida. Em outras palavras: enquanto que o descrever é puramente acessório e "se perde no inessencial", como diz Lukács mais à frente, o narrar mostra-se como o próprio vir-a-ser das personagens e das situações por eles vividas. A descrição não se preocupa com o processo: o produto lhe é suficiente. Já a narração não existe sem o processo: é pela exposição deste que ela ganha vida. Assim, a literatura que se vale da descrição é, de certa forma, conservadora, por não mostrar a própria dinâmica de formação das coisas do mundo. A narração, por ser uma elucidação das relações entre os homens e as coisas e dos homens entre si, produz um tipo de texto onde a realidade pode ser desvendada em seus fundamentos, um texto repleto de dinâmicos elementos humanos.

Muitas outras idéias são arroladas no andamento do ensaio; mas como este post não tem a pretensão de esgotá-lo, mas tão somente discutir brevemente algumas das idéias nele contida, ficarei apenas com a crítica presente no trecho acima citado, que diz respeito a uma literatura que pouco ou nada diz sobre "os problemas do tempo". Crítica que, como vejo, permanecesse atualíssima, e que podemos inclusive transplantar para o domínio de outras artes - a música, por exemplo - para nos conscientizarmos de que há a ausência total de uma arte que consiga captar os convulsos movimentos deste zeitgeist que nos envolve a todos - e que me perdoem a silepse e seu exagero, mas ela é proposital e visa marcar com cores fortes o momento.

Um pouco adiante Lukács fornece uma "fórmula" para vencermos esta esterilidade:

"A íntima poesia da vida é a poesia dos homens que lutam a poesia das relações inter-humanas, das experiências e ações reais dos homens. Sem essa íntima poesia não pode haver epopéia autêntica, não pode ser elaborada nenhuma composição épica apta a despertar interesses humanos, a fortalecê-los e avivá-los. A epopéia - e, naturalmente, também a arte do romance - consiste no descobrimento dos traços atuais e significativos da praxis social. A arte do poeta épico reside precisamente na justa distribuição dos pesos, na acentuação apropriada do essencial. A sua ação é tanto mais geral e empolgante quanto mais este elemento essencial - o homem e sua praxis social - aparece, não na forma de um rebuscado produto artificial virtuosístico, mas como algo que nasceu e cresceu naturalmente, quer dizer, como algo que não é inventado e sim, apenas, descoberto"

Desculpemos o marxismo de Lukács, ou melhor, ignoremos por completo as opções políticas deste autor e suas (nem tão secretas) vontades de instrumentalizar a literatura para as barricadas da revolução, e dele apanhemos o que nos interessa aqui, ou seja, sua arguta análise a respeito de como somente quando a literatura se vale da mais pura matéria humana esta consegue ganhar o viço que todo clássico tem; de como somente quando o escritor espreme as palavras, arquiteta as sentenças, passa horas a buscar a exata expressão, somente aí, no esmero de sua arte, é que nos vemos perante obras literárias de fato. Ou, para exemplificarmos de um modo mais específico: literatura como arte - e não literatura como entretenimento, aquele tipo de leitura que nos mantém ocupados nos fins de semana, nas rodoviárias, entre um aeroporto e outro (e cujo papel é exatamente este: fazer passar o tempo) sem nos proporcionar uma outra percepção sobre o ser.

Perante tudo isso, pergunto: que artistas, hoje em dia, estão à altura desta missão? Que mentes, iluminadas por uma audaciosa chama, têm forças para definir as novas fronteiras da conveniência, empurrando para o esquecimento os conceitos gastos que determinam nossa visão da vida? Uma arte tal, como creio e Lukács aponta, necessita, de modo a obter a matéria bruta necessária, vincular-se de modo umbilical à relações inter-humanas. Mais do que isso: precisa ter em si uma disposição de elevar estas relações a um patamar renovado, para longe do círculo da mediocridade atual; e aqui retomo a distinção entre narrar e descrever de Lukács, comentando que a representação da vida cotidiana em toda a sua miséria, por si só, nada tem de potencialmente transgressor. Pode servir, no máximo, como um retrato da decadência, muitas vezes digna das lágrimas dos bem-afortunados ou da simpatia das almas filantrópicas que julgam a si mesmas como socialmente ativas, mas cujas existências nada mais fazem que reproduzir ipsis litteris tudo aquilo que dizem repudiar. Contudo, incapazes de absorver a essência mesma da vida cotidiana, se apegam em sua camada mais superficial. Esta literatura nada mais faz que descrever, como um porco jornal policial, sem ir para além dos fatos, sem colocar a "íntima poesia da vida" em evidência.

2.02.2008

Good Reads

Se você esquece de comer, tomar banho, fazer a barba e encontrar sua namorada quando está lendo, Goodreads é o seu site ideal. É mais um site de "relacionamento", sim, mas dedicado aos
livros: você faz uma lista dos livros preferidos, que leu ou está lendo, faz seus comentários e deixa o mundo saber disso.

Ainda estou no processo de aprendizagem dos recursos oferecidos pelo Goodreads. Mas aproveita e vá lá no meu perfil ler a resenha que fiz sobre "Identidade", do Zygmunt Bauman. Abaixo, trecho do livro para despertar seu interesse, especialmente escolhido por tratar de Internet e, ironicamente, da onda de sites de "relacionamento" (sim, sempre com aspas):

Hoje em dia, nada nos faz falar de modo mais solene ou prazeroso do que as "redes" de "conexão" ou "relacionamentos", só porque a "coisa concreta" - as redes firmemente entretecidas, as conexões firmes e seguras, os relacionamentos plenamente maduros - praticamente caiu por terra.

Agora chega. Vá ler minha resenha e conhecer mais sobre este interessante escritor polonês.




11.27.2007

Escrever é Exorcizar


Concordo e assino embaixo, e com letra bonita:


"Só tenho vontade de escrever num estado explosivo, na excitação ou na crispação, num estupor transformado em frenesi, num clima de ajuste de contas em que as invectivas substituem as bofetadas e os golpes. (...) Escrevo para não passar ao ato, para evitar uma crise. A expressão é alívio, desforra indireta daquele que não consegue digerir uma vergonha e que se revolta em palavras contra os seus semelhantes e contra si mesmo. A indignação é menos um gesto moral que literário, é mesmo a mola da inspiração. E a sabedoria? É justamente o oposto. O sábio em nós arruina todos os nossos élans, é o sabotador que nos enfraquece e nos paralisa, que espreita em nós o louco para dominá-lo e comprometê-lo, para desonrá-lo. A inspiração? Um desequilíbrio súbito, volúpia inominável de se afirmar ou de se destruir. Não escrevi uma única linha na minha temperatura normal. (...) Escrever é uma provocação, uma visão infelizmente falsa da realidade, que nos coloca acima do que existe e do que nos parece existir. Competir com Deus, ultrapassá-lo mesmo apenas pela força da linguagem, esta é a proeza do escritor, espécime ambíguo, dilacerado e enfatuado que, livre da sua condição natural, se entregou a uma vertigem magnífica, sempre desconcertante, algumas vezes odiosa. Nada mais miserável do que a palavra, e no entanto, é através dela que atingimos sensações de felicidade, uma dilatação última em que estamos completamente sós, sem o menor sentimento de opressão. O supremo alcançado pelo vocábulo, pelo próprio símbolo da fragilidade! Pode-se alcançá-lo também, curiosamente, através da ironia, com a condição de que esta, levando ao extremo sua obra de demolição, cause arrepios de um deus às avessas. As palavras como agente de um êxtase invertido... Tudo o que é realmente intenso participa do paraíso e do inferno, com a diferença de que o primeiro só podemos entrevê-lo, enquanto o segundo temos a sorte de percebê-lo e, mais ainda, de senti-lo. Existe uma vantagem ainda mais notável de que o escritor tem o monopólio: a de se livrar de seus perigos. Sem a faculdade de encher as páginas me pergunto o que eu viria a ser. Escrever é desfazer-se de seus remorsos e rancores, vomitar seus segredos. O escritor é um desequilibrado que utiliza essas ficções que são as palavras para se curar. Quantas angústias, quantas crises sinistras venci graças a esses remédios insubstanciais!"

[Confissão Resumida, páginas 123 e 124;
"Exercícios de Admiração", de E. M. Cioran]

9.12.2006

Initium


"(E a chuva cai...) Meu Deus! Que insuportável Mundo!
Vivalma! (O vento geme...) O que farão os mais?
Senhor! A Vida não é um rápido segundo:
Que longas horas estas horas! Que profundo
Spleen mortal o destas noites imortais!"
(Antônio Nobre, poeta português)

Para um início, penso, os versos de A. Nobre são exemplares e darão a tônica do que estará por vir. As minhas conversas cá comigo, antes mudas tentativas de comunicação, agora estarão aqui, plenas, servidas aos olhos de algum interessado.

Um exercício futil, sem dúvida. Um maneirismo dos mais estéticos, uma brincadeira com ar de literatura. Somente isso, para muitos. Para mim, é mais uma estratégia de fuga, um esconderijo - e ele é delicioso.

A peridiocidade de meus escritos aqui será tão regular quanto às tempestades que devastam minha vida vez por outra - em outras palavras, a minha presença aqui obedecerá ao signo do Caos. Só sei escrever tomado pela emoção. Isso certamente me torna um escritor menor. A almejada arte, em seu sentido antigo, nunca foi minha amiga fiel.