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10.11.2013

Algumas razões de não escrever mais aqui


Foi com algum tipo de surpresa que ontem, ao visitar o blog, constatei que em 2013 realizei simplórias seis postagens. Algumas poucas pessoas que acompanham as postagens aqui devem ter considerado a ausência como a morte do blog. Entretanto, eu nunca o considerei morto, talvez por uma espécie de mórbida afeição por coisas moribundas. Mas para prestar uma espécie de satisfação a todas as almas que aqui vinham, deixo algumas palavras de esclarecimento.

Se, nos anos anteriores, eu já tinha meu cotidiano marcado por um ritmo de trabalho frenético, 2013 tratou de acelerar ainda mais esse aspecto de minha vida. Nunca trabalhei tanto como nesse ano. Somado a isso, iniciei uma pós-graduação que consumia o já escasso tempo livre, como forma de aprimorar minhas qualificações profissionais. Em resumo: não contente com a quantidade de trabalho que eu tinha, tratei de aumentar o ritmo e criar condições para que novas responsabilidades sejam adquiridas no futuro. 

A esses dois fatores juntamos a preguiça. Na verdade, não é preguiça, mas um esgotamento físico e mental que me assola quando cruzo a porta de casa. É o preço a ser pago para tornar-se "eficiente". Busco conforto, então, em um prato de comida, na música (ouço agora os acordes de Dylan Carlson, esse oásis de calmaria em dias tão sempre repletos de caos), na leitura ou simplesmente na técnica que mais gosto: deitar no sofá, acender um cigarro e como que submergir nele, deixando que as almofadas me abracem, até que uma sonolência me capture - e então levanto, vou para o quarto e durmo, para começar no dia seguinte tudo de novo.

A pedra rola até o topo, cai, e você vai lá empurrando de novo para cima.

Gosto de imaginar que a vida é assim como todo mundo: envelhecemos e nos tornamos todos iguais. É extremamente confortável imaginar que se trata de um fatalismo, que mais cedo ou mais tarde até o mais irascível fã do Crass vai cogitar em fazer um seguro de vida. Mas isso é só uma crença, e como todas as crenças é duvidosa, em geral existe apenas como um frágil argumento para tornar a vida mais tolerável. Toda crença tem um pouco desse poder de permitir ao crente uma estratégia de fuga quando a situação se torna crítica. A minha é ver a minha vida se tornar medíocre e considerar que a de todo mundo é igual. 

O caminho para a mediocridade tem muita relação com a passagem do tempo e o acúmulo de compromissos que isso traz. Com vinte anos, eu tinha um conjunto de preocupações mais ou menos reduzido, mas certamente sem comparação com os que tenho hoje. Compromissos que envolvem dinheiro principalmente: esses são os mais nocivos. É através dessas dívidas que se multiplicam no tempo que somos arrastados para a vala comum dos vencidos. O dândi se transforma no proletário quando os juros do cheque especial batem à porta. A mediocridade é a transformação das relações humanas em um tipo onde o peso da matéria se acentua e passa de coadjuvante a protagonista - quanto mais envolvida nos véus da influência materialista, mais medíocre uma vida se torna. E isso não significa que apenas existências plenas de recursos materiais sejam medíocres. Não estou fazendo uma elogio do voto de pobreza, tão ao gosto desses tempos contaminados por uma moral de escravo. A vida medíocre se instala assim que preocupações materiais se tornem as principais, ocupando a maior parte do tempo/energia que temos.

Então, sempre quando chego em casa, olho com desdém um bar que fica em uma esquina próxima. Sempre vejo lá, sentado na mesma mesa, um homem gordo, que fuma e bebe às vezes sozinho, às vezes acompanhado. Tento imaginar que tipo de vida ele tem e só consigo vê-lo suado, rindo aquela sua gargalhada imbecil, rodeado de outros igualmente imbecis. Gosto de me imaginar uma pessoa incrivelmente mais interessante do que aquele gordo - afinal eu chego em casa e leio, enquanto ele fica lá se matando e engordando como um porco; eu escuto música decente, enquanto aquele infeliz tem uma experiência musical baseada em ritmos de FM e sons de botequim; mas principalmente eu chego em casa tarde, pois estava trabalhando, enquanto que ele fica todo dia em um bar jogando conversa fora. Em uma palavra: sinto-me superior àquele homem gordo mas, no momento seguinte, penso que tudo isso é simplesmente inveja, recalque, que na verdade tenho muito em comum com aquele homem que não conheço e já odeio, e então calo meus pensamento, subo pelo elevador, entro em casa, deito no sofá e morro.

Para começar no dia seguinte tudo de novo.

Entre uns momentos de descanso e outro, tenho rabiscado textos sem fim em um caderno. Eles fazem parte de um fanzine, que compilará uma série de pequenas histórias, cujo tema é o encontro amoroso. Eu já publiquei aqui no blog algumas dessas histórias, mas acho que quando se trata de amor, a tela do notebook é demasiado pobre. Amor é algo que se faz na base do tato, do encontro entre duas (ou mais) epidermes, é algo que é inseparável do contato. Por isso a insistência de levar para o impresso essas pequenas histórias, que estão sendo rabuscadas, geralmente, aos finais de semana. Dar qualquer prazo de quando isso estará pronto seria uma mentira a mais entre tantas que já contei, então digo apenas que, algum dia, se os deuses assim quiserem, essa publicação ficará pronta.

Isso tudo para dizer que cada vez menos frequentarei o Dissolve Coagula. Pelo menos até o final do ano. Não sei se é pelo fato de eu ter feito da Internet o meu ganha-pão, mas no tempo livre que sobra por vezes tenho um ciclópico cansaço de fazer qualquer coisa relacionada com a rede. Nos meses mais recentes, eu até cheguei a gastar um tempo considerável com redes sociais, me metendo inclusive em uma série de discussões. Mas foi tamanha a energia empreendida nessas "interações" que até isso me cansou e, além disso, sou péssimo em argumentar e defender meu ponto de vista, ainda mais em um ambiente onde, claramente, ninguém quer discutir nada, mas tão somente fincar pé em uma posição de modo bastante irrefletido e dogmático, ou então fazer piada com tudo e todos - e esse clima "irreverente" me cansou a um ponto que bloqueei tantas pessoas que preferi abandonar o uso do meu perfil, por não fazer mais sentido. No final das contas, a lição aprendida é que discussão na Internet é igual a Para-Olimpíadas: mesmo que a vitória seja sua, no final você sempre será um retardado. 

Escrever esse post enquanto os acordes do senhor Carlson ecoam pela sala foi uma exceção prazerosa, mas para esse sabor permaneça é necessário saber dosá-lo adequadamente. Quem sabe no final do ano escrevo de novo aqui. Agora, volto para o cotidiano estupidificante que me faz pensar o que estou fazendo de errado e se algum dia vou acordar com a sensação de que é tarde demais para mudar.

4.13.2012

Sobre a humildade


Captar frases soltas no transporte público, na rua ou em qualquer outro lugar onde a aglomeração de pessoas proporcione ao ouvido atento do cientista social autodidata um rico manancial para análise: um procedimento ao qual me dedico há anos, que já inspirou outros escritos nesse blog e que considero uma da melhores formas de captar a essência da realidade em seus aspectos mais interessantes. Interessantes porque escondidos nos sulcos mais profundos do discurso do homem comum, cuja vida é uma vulgaridade do despertar até a hora  do boa noite, e justamente por estarem ocultos sob uma grossa camada de tradições e hábitos têm aspecto de serem normais, naturais, benéficos até, ou mesmo males incontornáveis. Mas sabemos que discursivamente nada é normal, nem natural, nem benéfico ou maléfico em si: construções antes que dados da realidade, esses aspectos possuem significados que são transparentes para o homem comum, mas o envolvem e influenciam completamente. De modo bastante similar age a pressão atmosférica: não a vemos, mas sem parar um segundo sequer ela exerce seus poderes sobre nós.

Uma palavra que hoje ouvi em uma conversa dessas foi o adjetivo "humilde". Não sei exatamente por que exatamente essa palavra se fixou em minha mente, mas o fato é que ela foi responsável por uma série de anotações mentais que serviram de base para o que segue.

Emprega-se em geral para salientar uma qualidade positiva de um indivíduo perante os demais: diz-se que alguém é humilde por apresentar um misto de amabilidade, educação, cortesia, etc. Mas não é só isso: o humilde é também alguém que, em determinadas situações, tende a mostrar-se como ligeiramente inferior. Todavia, isso não ocorre de modo negativo ou fatalista - o humilde considera-se menor mas com um certo orgulho, em uma captação da benevolência alheia feita com sorrisos que chegam a ser rastejantes.

Há na atitude do humilde muito da etimologia da palavra: o adjetivo vem do latim humus, que significa "terra", "chão", "solo". De humus derivou-se então o adjetivo latino humilis que possuía, para o romano do Período Clássico (séculos II a.C a II d.C.), significados como estes:

  • de estatura baixa, rasteiro;
  • que é de condição baixa;
  • que tem sentimentos baixos;
  • abatido, desanimado;
  • covarde, fraco, mesquinho, vil.
 [acepções retiradas do Novíssimo Dicionário Latino-Português de F.R. dos Santos Saraiva, editado pela Livraria Garnier]


Há inúmeros registros na literatura clássica comprovando que, antes do cristianismo se transformar na religião oficial do Império, em 391 d.C com Teodósio I, a noção de humilis tinha uma carga altamente negativa, no sentido de descrever características contrárias ao ethos romano de virilidade, força e vontade afirmativa perante a vida: Cícero fala de humili animo ferre ("resistir com fraqueza"), Plínio o Jovem de humiles curae ("cuidados mesquinhos"). Com a expansão da religião cristã  principalmente nas classes baixas (o cristianismo sempre foi uma crença "plebéia", no sentido de oferecer aos desgraçados de toda sorte, sem distinção de classe, a idéia da "salvação", conceito praticamente inexistente no paganismo, que tinha cultos diferentes para cada porção da sociedade) o termo foi perdendo esse significado inicial para ganhar aspectos mais positivos. O humilde torna-se, então, um novo paradigma de felicidade e grandeza. Fundamental e termômetro dessa mudança é o Sermão da Montanha, no evangelho de São Mateus capítulo 5, onde Cristo começa dizendo isso:

Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus.

A mudança de acepção do termo é fácil de entender: o termo humilis era comumente empregado para, justamente, fazer referência a essas classes baixas, onde o cristianismo inicialmente se propagou. A mudança de significado é a vitória, no campo semântico, da moral de escravo nietzscheana sobre a dura ética romana da Antigüidade.

De certo modo, o humilde de hoje carrega, na tessitura mais profunda, essa carga de significados inicial que, mesmo após o cristianismo, ele jamais perdeu: o humilde é aquele "que se prostra perante o altar", que "cai de joelhos" defronte Deus, que ajuda os demais em uma atitude totalmente desinteressada onde descuida até mesmo de si. Tudo isso é ser humilde, mas não é só isso: o humilde é, também, um tipo que olha com desconfiança para qualquer altura com um misto de nojo e reprovação. Incapaz de alçar vôos para além de sua "natureza terrena", impregnado de um humus cultural que enxerga valor apenas no que é contingente e facilmente digerível, o humilde é um tipo que acredita na validade da arte apenas quando ela está à serviço do povo ou de uma causa. Conceituando o artista (seja escritor, músico, pintor, cineasta, etc) como um tipo social que deve estar em "conexão com o social", todos os que não se encaixam na regra lhe são tediosos, desnecessários, dignos de seu ódio. Ao mesmo tempo idealiza povo e o alcance de sua arte: o humilde opta por ter uma visão duplamente cega ao invés de uma cegueira simples. 

O vírus da humildade não está apenas presente nos artistas que buscam o "povo": até mesmo em um tipo de arte mais elitizada e que ocupa os salões de exposição freqüentados por branquelos bem-nascidos ele promove seus estragos, sobre a onipresente criação de "instalações interativas". O discurso que está por trás dessas bobagens é essencialmente o mesmo: o artista se nega o papel de mediador cultural definitivo e devolve para as mãos do público a própria construção da obra. Assim, em algumas o artista apenas coloca um, sei lá, amontoado de giz de cêra no chão e pede para que o público rabisque uma parede branca e então pluft!: nasceu a obra de arte, perfeitamente antenada com os tempos "democráticos" e "colaborativos" que vivemos. Não se trata mais de termos artistas que se dediquem a criar um conceito, e a partir dele passem dias em um esforço para transformá-lo em realidade, seja um quadro que instigue intelectualmente o observador, uma escultura que lhe faça reavaliar um dado da realidade ou que simplesmente proporcione um prazer estético que induza a fusão entre fruição estética e reflexão. Tudo isso que dissemos, de certa maneira, pede que tanto artista como público elevem-se a si mesmos para além da mediocridade diária. Difere sensivelmente de uma arte impregnada do senso do humilde, que tenta a todo custo puxar para o solo.

É assim que, tanto nas artes como em outros campos da vida, o humilde atua: pela força rastejante de mediar os homens e suas ações pelo princípio do humus, pela nivelação por baixo. Força afirmativa, desejos de grandeza, impulso para criar e ir além das limitações, medos e bloqueios: nada disso faz parte do espírito humilde. Ele é amigo do status quo, das tradições burras, do cotidiano miserável que mantém milhões em uma existência que pouco tem a ver com Vida - ou seja, da vida entendida não apenas como impulsos orgânicos mas sim realização, luta e superação de si mesmo. 

4.05.2012

Lista de ódios


Sujeita a inclusões - mas jamais a exclusões - de itens:
  • pessoas que ficam em bares todos os dias da semana;
  • crentes;
  • góticos;
  • pessoas que entregam folhetos na rua;
  • cabelos alisados com métodos pouco eficazes;
  • jovens de vinte e poucos anos fã de Beatles;
  • pessoas que andam na rua cantando;
  • pessoas que andam na rua sorrindo;
  • mulheres carregando bolsas enormes;
  • pessoas lentas;
  • pessoas apressadas;
  • carros;
  • crianças mal educadas que falam alto, que correm e esbarram nos outros sem pedir desculpas;
  • pais que batem em filhos mal educados em público, tratando de modo ainda mais errado o erro que colocaram no mundo;
  • escadas rolantes;
  • pessoas que param do lado esquerdo nas escadas rolantes;
  • vozes estridentes;
  • vozes insuportavelmente baixas;
  • vozes lentas e monótonas;
  • pessoas jovens que vivem reclamando de dores e que sempre estão doentes;
  • pessoas gordas que só comem doces e ficam tristes por serem gordas;
  • novelas;
  • entusiastas do futebol e outros esportes coletivos;
  • livrarias com áreas para crianças, que funcionam mais como um irradiador de barulho e confusão em um ambiente que, a princípio, deveria prezar o silêncio;
  • auto-ajuda;
  • pessoas que discutem com seriedade reality shows, novelas, programas de auditório e qualquer outro lixo televisivo;
  • ruas Oscar Freire, Augusta e Teodoro Sampaio;
  • pessoas desconhecidas que puxam papo;
  • pessoas que conversam encostando;
  • telefones celulares;
  • pessoas que ouvem música sem fone no telefone celular;
  • Greenpeace;
  • velhos que insistem em parecer jovens;
  • óculos de armação grossa;
  • combinação de terno com tênis;
  • combinação calça jeans e chinelo;
  • mulheres que vivem falando que nenhum homem presta;
  • axé, samba, pagode, funk, forró, rap, dance music, rock, hardcore melódico, heavy melódico, punk estadunidense e outras bobagens correlatas;
  • hiper-organização;
  • lugares sujos;
  • usuários de cocaína que falam sem parar;
  • mosquitos;
  • favoráveis a pena de morte que são contra o aborto;
  • férias em Miami e Nova York;
  • jeitinho brasileiro;
  • covardia;

3.18.2012

A festa, de Michel Houellebec


O texto do post de hoje foi indicação de um amigo que faz esse projeto de noise/eletroacústico, e fiquei subitamente estarrecido pela simplicidade e força que emana de suas poucas linhas. Seu autor é o francês Michel Houellebecq, cuja obra transita entre a poesia, o romance e a teoria literária.

É um texto que fala sobre o sentido da festa para nós, bestas humanas. E publico hoje como uma homenagem invertida ao dia de São Patrício, que será logo mais festejado nos bares de várias partes do mundo e, por incrível que pareça, até mesmo aqui no Brasil. Ridiculamente tentando emular uma tradição alheia, veremos pessoas vestidas de verde, pensando que estão em algum bar irlandês ou coisa que o valha. Para muitos a data serve simplesmente "como uma desculpa para beber" - o que parece um sintoma de que precisam dar para suas ações um posto mais elevado, um motivo nobre. Entretanto, vejo as comemorações brasileiras do Dia de São Patrício simplesmente como uma versão descolada da breguice em looping eterno que foi a tietagem em torno da recente visita do príncipe Harry aqui nas terras brasileiras. Como bons selvagens que somos, o forasteiro chega acenando com espelhinhos e ficamos imbecilizados, prontos para as manifestações mais baixas de subserviência. No caso do príncipe, os espelhinhos foram inúmeros (a visita ao Complexo do Alemão, a partida de polo, etc); no caso do Dia de São Patrício, os espelhinhos se traduzem na experiência de festejar (mais) uma data alheia, dando para o ato de festejar um sentido especial" e "irreverente". Mas no fundo a síndrome de jeca e a humilhação da breguice é a mesma.

Mas vamos ao texto do Michel Houellebecq. 

A festa
O objetivo da festa é nos fazer esquecer que somos solitários, miseráveis e destinados à morte. Dito de outra forma, nos transformar em animais. É por isto que o primitivo tem um sentido da festa muito desenvolvido. Uma boa fumarada de plantas alucinógenas, três tamborins e a coisa está resolvida: um nada o diverte. Ao contrário, o Ocidental médio não alcança um êxtase insuficiente senão a custa de raves intermináveis das quais sai surdo e drogado: ele não possui de forma alguma o sentido da festa.  Profundamente consciente de si mesmo, radicalmente estrangeiro aos outros, aterrorizado pela idéia da morte, ele é totalmente incapaz de aceder a uma fusão de qualquer tipo. No entanto, ele se obstina. A perda de sua condição animal o entristece, disso concebendo vergonha e despeito; ele gostaria de ser um festeiro, ou ao menos passar por tal. Ele está numa miserável situação.

O que que eu tenho a ver com estes babacas?
“Quando dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei ali no meio deles" (Mateus, 17, 13). Eis aí todo o problema: reunidos em nome de quê? O que poderia de fato, no fundo, justificar estarmos reunidos?

Reunidos para se divertir. É a pior das hipóteses. Neste tipo de circunstância (clubes noturnos, bailes populares, festinhas), que nada têm visivelmente de divertido, uma única solução: azarar. Sai-se então do registro da festa para entrar no de uma feroz competição narcísica, com ou sem opção penetração (considera-se classicamente que o homem tem necessidade da penetração para obter a gratificação narcísica almejada; ele experimenta então algo análogo ao estalo da partida gratuita nos antigos fliperamas. A mulher, na maioria das vezes, se contenta com a certeza de que desejam penetrá-la). Se este tipo de jogo lhe repugna, ou se você não se sente em condições de fazer boa figura, uma única solução: partir o mais rápido possível. 

Reunidos para lutar (manifestações estudantis, acampamentos ecológicos, talk-shows na periferia). A idéia, em princípio, é engenhosa: com efeito, o alegre cimento de uma causa comum pode provocar um efeito de grupo, um sentimento de pertencimento, e mesmo uma autêntica embriaguez coletiva. Infelizmente, a psicologia das multidões segue  leis invariáveis: termina-se sempre com a dominação dos elementos mais estúpidos e mais agressivos. A gente se vê então no meio de um bando de arruaceiros, talvez perigosos. A escolha então é a mesma daquela do clube noturno: partir antes que o pau quebre, ou azarar (agora em um contexto mais favorável: a presença de convicções comuns, os sentimentos diversos provocados pelo desenrolar do protesto podem abalar ligeiramente a carapaça narcísica). 

Reunidos para trepar (clubes de swing, orgias privadas, alguns grupos New Age). Uma das fórmulas mais simples e mais antigas: reunir a humanidade em função daquilo que ela tem, de fato, de mais comum. Atos sexuais têm lugar, mesmo se o prazer não esteja sempre ao alcance. Já é algo; mas é apenas isto.

Reunidos para celebrar (missas, peregrinações). A religião propõe uma solução totalmente original: negar audaciosamente a separação e a morte afirmando que, contrariamente às aparências, nós nos banhamos no amor divino, enquanto nos dirigimos para uma eternidade bem aventurada. Uma cerimônia religiosa em que os participantes tenham fé ofereceria então o único exemplo de  festa bem sucedida. Alguns participantes agnósticos podem mesmo, durante a cerimônia, se sentir conquistados por um sentimento de crença; mas eles correm o risco de uma ressaca terrível (um pouco como o sexo, mas pior). Uma solução: ser tocado pela graça. A peregrinação, combinando as vantagens da manifestação estudantil com as da viagem Novas Fronteiras [nota: uma popular agência de viagens francesa], tudo num ambiente de espiritualidade agravado pela fadiga, oferece de quebra condições ideais para azaração, que se torna quase involuntária ou mesmo sincera. Hipótese plausível após uma peregrinação: casamento + conversão. Em compensação, a ressaca pode ser terrível. Prever um prolongamento em uma temporada UCPA [“Union Nationale des Centres Sportifs de Plein Air”, agência de viagens dedicada a esportes ao ar livre] “esportes de patinação”, que sempre se poderá cancelar (informar-se previamente sobre as condições de cancelamento).

A Festa sem lágrimas.
Na realidade, basta prever que iremos nos divertir para ter certeza de que iremos nos aborrecer. O ideal seria então renunciar totalmente às festas. Infelizmente, o festeiro é um personagem tão respeitado que esta renúncia acarretaria uma forte degradação da imagem social. Os poucos conselhos que se seguem deveriam permitir evitar o pior (ficar sozinho até o final, em um estado de tédio evoluindo para o desespero, com a impressão errônea de que os outros se divertem).


  • Ter bastante clareza, previamente, de que a festa será forçosamente mal sucedida. Visualizar exemplos de fracassos anteriores. Não se trata aqui de adotar uma atitude cínica e  blasée. Ao contrário, a aceitação humilde e sorridente do desastre comum permite alcançar este sucesso: transformar uma festa mal sucedida em um momento de agradável banalidade.
  • Sempre prever que se voltará para casa só, de táxi. 
  • Antes da festa: beber. O álcool em doses moderadas produz um efeito sociabilizante e euforizante que permanece sem real concorrente. 
  • Durante a festa: beber, mas diminuir as doses (o coquetel álcool + erotismo ambiente conduz rapidamente à violência, ao suicídio e ao assassinato). É mais engenhoso tomar 1/2 Lexomil no momento oportuno Com o álcool multiplicando o efeito dos tranqüilizantes, observar-se-á uma sonolência instantânea: é o momento de chamar um táxi. Uma boa festa é uma festa breve.


Após a festa: telefonar para agradecer. Esperar tranqüilamente a festa seguinte (respeitar um intervalo de um mês, que poderá cair para uma semana em período de férias).

Enfim, uma perspectiva consoladora: com a ajuda da idade, a obrigação da festa diminui, a tendência à solidão aumenta; a vida real retoma o controle.

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Sobre o autor: Michel Houellebecq nasce em 1958 em La Réunion. Forma-se em Engenharia Agronômica em 1980. Em 1985 publica poemas na Nouvelle Revue e lança uma biografia de Lovecraft (Lovecraft. Contre le monde, contre la vie). No mesmo ano aparece Rester Vivant. Sua primeira coletânea de poemas, La poursuite du bonheur, recebe o prêmio Tristan Tzara de 1992. Em 1994 aparece o romance Extension du domaine de la lutte, traduzido em várias línguas. Colabora com L'Atelier du roman, Perpendiculaires e Les Inrockuptibles. Sua segunda obra poética, Le Sens du combat, obtém o Prix de Flore de 1996. Interventions, antologia de textos críticos e crônicas, é lançado juntamente com seu segundo romance, Les Particules élémentaires, traduzido em mais de 25 línguas e premiado com o Novembre. Em 1999 publica Renaissance, nova coletânea de poemas, e Lanzarote (textos e fotografias). Passa a viver na Irlanda e, após a publicação de Plataforme (romance), na Espanha. Ali escreve La possibilité d'une île, lançado em 2005. No Brasil estão publicados A extensão do domínio da luta (Sulina, 2002), Partículas Elementares (Sulina, 1999), Plataforma (Record, 2002) e A possibilidade de uma ilha (Record, 2006). Site oficial: http://www.houellebecq.info/

A tradução aqui apresentada é de Alexandre Soares Carneiro e encontrei o texto nesse site .


12.25.2011

Ciclos


Termina 2011 como um ano onde, após muita expectativa, meu primeiro livro, o "Tudo o que é grande se constrói sobre mágoa", finalmente foi lançado. O lançamento oficial ocorreu em 10 de dezembro, como foi noticiado aqui na ocasião, e a venda pelo correio começará em 2 de janeiro, segundo a Ugra Press. Aos que estão em busca do livro, aguardem a atualização da loja da Ugra nessa data: http://ugrapress.wordpress.com/ugra_meg/

Além do livro, esse ano que está prestes a terminar também foi importante para a retomada dos projetos musicais, e tive a honra de participar da criação de duas aberrações:

THE CRACKWHORES: 100% sujeira noisecore, sem meios termos, sem tentativas de soar musical.
DISPERARII: minimalismo, lentidão, psicodelia de Mão Esquerda.
Para 2012 os planos são concretizar esses dois projetos musicais. Sem nenhuma pretensão de vê-los como portadores dos vícios de qualquer cena, mais do que certeza que ambos jamais se apresentarão ao vivo. Tocar ao vivo foi, por anos com o Life is a Lie, uma experiência das mais extremas. Hoje, porém, não vejo nenhum sentido em uma apresentação ao vivo, pelo menos nos projetos com os quais estou envolvido. Isso porque me lembro de como foi a experiência com as últimas apresentações do Life is a Lie, onde a vontade que eu tinha era de desaparecer tão logo as últimas notas ecoavam. Talvez porque os shows aconteciam praticamente todos os finais de semana e, então, perderam o sentido... Talvez. Seja como for, pelo menos por agora, nenhuma chance nem do DISPERARII nem do THE CRACKWHORES tocarem ao vivo.

Também estou escrevendo um novo livro. Será um romance dessa vez. O ambiente, os principais personagens e o enredo estão prontos, faltando agora o trabalho braçal de excomungar daqui de dentro a história que imaginei. Pretendo tê-lo pronto no final de 2012, se os deuses me forem favoráveis. Ainda não está decidido, mas talvez saia pela Ugra Press também.

Top acontecimentos/discos/leituras de 2011:

1) lançar em livro os contos do Dissolve Coagula
2) mudar de apartamento
3) ganhar um Mate-couro de 500ml
4) descobrir Devil Makes Three
5) o "Void", do Craft
6) o "Ultimacy", do Blood Axis
7) "A morte de Bunny Munro", de Nick Cave
8) "O livro dos mandarins", de Ricardo Lísias
9) "História do Olho", do G. Bataille

8.22.2011

E o mundo será ateu...


Um mundo ateu: obedecendo a uma teleologia que mescla desenvolvimento econômico e esclarecimento sobre questões existenciais, o futuro pertencerá aos homens livres de deus. Pelo menos, assim será segundo o estudo divulgado pela Folha na semana passada: http://f5.folha.uol.com.br/estranho/957024-estudo-diz-que-ateismo-vai-tomar-lugar-das-religioes.shtml

Os dados são esses: a Suécia, paraíso do bem-estar social, com seu seguro-desemprego vitalício e chances reais de todos terem uma “boa” vida, tem alto percentual de ateísmo (64% da população assim se declara no gélido país escandinavo). Já a África sub-saariana, uma das regiões mais miseráveis do mundo, o percentual de ateus nem chega a 1%. De acordo com essa pesquisa (a ser divulgada em finais de agosto, integralmente) o que explica as diferenças imensas de percentual são as comodidades que o dinheiro introduz na vida das pessoas. Quanto maior segurança para lidar com os problemas terrenos, menos interesse por qualquer tipo de transcendência.

As conclusões desse estudo me fizeram voltar no tempo, revendo os passos dados até aqui.

10.20.2010

Sobre a covardia

 A Covardia tem o seu devido lugar nas coisas humanas. Ela preserva o ser de, em um ímpeto, colocar a sua existência em risco; protege, com o cuidado de uma mãe carinhosa, os espíritos acanhados, os que falam e repetem ameaças escondidos nas trincheiras de sua pequenez. O covarde brada por destruição, vingança, justiça; paradoxalmente nenhum esforço empreende para destruir, para vingar, para equilibrar os acontecimentos na balança de sua deusa cega. Assemelha-se nesse aspecto ao demagogo, cujas palavras são feitas de vazio. Mas a este é pelo menos possível premiar pela ausência de escrúpulos em mentir para os homens, principalmente para os mais desgraçados, sem ao menos ruborizar. O leitor deve ter imaginado uma coleção imensa de homens públicos com tais características; é bom sempre lembrar , contudo, que há muitos outros, menos ilustres, que superam enormemente a estes na arte de inventar mentiras. A biografia de qualquer cidadão, escolhido por acaso, pode ser surpreendente: nossa espécie é uma criação única feita de violência, amor e mentiras.

6.26.2010

Renovação


Os que visitam o blog regularmente já perceberam as mudanças que fiz por aqui. Fontes maiores, serifadas, área de leitura mais espaçada e um novo header. Não poderia deixar de colocar nesse header uma máscara de gás, uma de minhas fascinações.

5.17.2010

Resultado de um dia inteiro dentro de casa, tomando remédios

Um domingo é um dia de tédio, e ele se torna pior quando, após um sábado apetitoso, você acorda com a garganta arranhando e dores espalhadas pelo corpo como se um caminhão de toneladas tivesse te atropelado.

Foi isso o que aconteceu comigo esse final de semana.

Reconheço: dizer tais coisas é vazio e minha vida não é interessante. Aliás, nenhuma vida é, quando vista de muito perto. A admiração se conquista com a distância. A proximidade é boa quando desejamos conquistar sexo ou prêmios mais ordinários, mas em geral ela destrói mais do que edifica. Comigo tem sido assim, mas reconheço que a culpa é mais minha do que da proximidade. Então, não direi mais nada a não ser que tomei duas doses de Tylenol de uma vez, ou seja, quatro comprimidos ao invés de dois. Experimente você também, se você gosta de ver tudo dobrado, como se o seu astigmatismo quadruplicasse em questão de minutos.

Como já falei em outros posts, estou com um projeto chamado UGRA PRESS. Nesse último sábado trabalhamos em nosso segundo vídeo. O primeiro ilustrou o post Queime sua própria igreja. Esse novo vídeo já terá um conceito diferente, contará com personagens, cenários, etc. Gravaremos na semana que vem, após o almoço dominical. Espero que eu sobreviva até lá, não porque eu ache que vou morrer de uma gripe, mas porque gosto do sabor trágico de imaginar que, sempre, tudo está prestes a ruir e se transformar em pó.

Possivelmente, esse vídeo ficará pronto em duas semanas. Até lá, eu tenho planos de colocar aqui o Canto II da Narrativa Mitológica de Curitiba, continuar minha leitura de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister e começar Cien Años de Soledad (sim, é uma vergonha não tê-lo lido ainda). Aliás, há muitos livros que nunca li e que juntos compõe um buraco em minha formação, como uma nuvem de vergonha a me acompanhar para onde quer que eu vá. E apesar de em partes concordar com Nick Hornby nesse artigo, não me sinto confortável em ver a literatura apenas como entretenimento, como algo que é feito para passar o tempo. Talvez seja uma visão demasiado carrancuda do ato de ler; mas quando vejo aquele discurso de que qualquer atividade só é válida quando nos garante "prazer", em geral esse dito prazer é apresentado como algo próximo da fanfarronice. Não preciso dizer o quanto isso me desagrada e o quanto isso se distancia da minha forma de enxergar as coisas do mundo -que se não precisam ser sempre sérias, igualmente não precisam nos fazer rir para serem importantes. Há muito mais que essa febre de hedonismo que guia a todos os corações atualmente.

4.12.2010

A realidade é aquilo que eu acredito


Nesse final de semana eu tive uma overdose de trabalho tão incrível que me fez perceber que o ridículo pode de fato tomar conta da vida de qualquer um. Ontem resolvi, então, fazer uma vingança simbólica: ficar acordado durante toda a madrugada não fazendo nada. Isso mesmo, não fazer nada, como um exercício calculado de ócio. Deu certo.

A madrugada rendeu uma evolução dos apontamentos para o novo texto que estou produzindo, o Narrativa Mitológica de Curitiba, relato de minha última visita aos amigos daquela simpática cidade. É um texto bem diferente de todos os que eu já fiz, pela mescla de realidade e fantasia que surge a cada momento. De qualquer maneira, tudo o que estará ali é verdade -já que a linha tênue entre verdade e ilusão que nos quiseram fazer acreditar não existe. Tudo é discurso, construção, vontade; lembro das últimas cenas de "A Montanha Sagrada" de Jodorowsky, da câmera se afastando e mostrando a equipe de filmagem, os atores e todo o resto ao mesmo tempo. Um filme é uma mentira, um conjunto de signos que se pretende real quando, na verdade, é apenas uma história. Mesmo a nossa vida não é, ao fim e ao cabo, aquilo que queremos lembrar? Tudo são escolhas. Eu, em geral, só faço as erradas. Deve ser por isso que eu não passo um dia sequer sem rir de tudo o que me acontece.

Narrativa Mitológica de Curitiba vai pro ar na quinta-feira. Isso pode ser mentira, aviso. Até lá, ouçam Crystal Castles. É a essência da AIDS em forma de música. Funciona muito bem, principalmente quando você está há 30 horas sem dormir nenhum segundo e luzes estranhas piscam no seu campo de visão. Eu teria medo dessas luzes no passado, sintomas de uma nova crise epiléptica. Mas a realidade é aquilo no que eu acredito -e eu não boto fé que vou cair no chão e começar a babar e tremer. Pelo menos, não hoje, não agora..

3.10.2010

Trecho de um diário de Lúcio Cardoso


Desde a leitura que fiz de Crônica da casa assassinada -talvez o livro mais injustiçado da literatura brasileira- o nome de Lúcio Cardoso figura na minha lista dos escritores que conseguiram fazer de seus textos uma espécie de organismo vivo, um texto que vibra e pulsa em cada novo período.

Relendo anotações velhas antes de ir para a cama, encontrei esse trecho que transcrevi de seu diário, obra lançada em 1970 pela José Olympio. Os diários são sempre fabulosos: isentos dos caprichos estilísticos que muitas vezes afogam as explosões do sentimento, suavemente transmitem uma autenticidade que o romancista se esforça para obter. As personae são abolidas, e o escritor não tem motivos para esconder os recalques, as taras e as imprecisões que os editores observariam com severidade. Fluem os ódios e os abismos, a intimidade é devassada, o desejo voyerista do leitor farta-se aos montes. E no trecho que compartilho com vocês, vemos um Lúcio algo profético, que vê na Tijuca dos anos 1960 um pesadelo hedonista que estava apenas começando, sintomas da Kali-yuga que hoje vivenciamos em estado hipertrofiado:

"Vou com Fregolente à Barra da Tijuca, onde durante algum tempo, infeliz e sem repouso, viajo através de uma multidão feia, triste e sem nenhuma dúvida profundamente desgraçada. Só a desgraça alimenta uma tal sede de divertimento. Aliás, é sempre este o aspecto de um aglomerado que se reúne à procura de esquecimento: os limites humanos surgem com avassaladora nitidez e o rebanho festivo adquire um aspecto confrangedor, de coisa abandonada e amaldiçoada. Não é precisamente nesses minutos, nesses e não em outros, que ousamos desejar para toda essa gente uma catástrofe comum, uma guerra, uma inundação ou até mesmo um ataque coletivo de insânia ou de crueldade - qualquer coisa enfim que agite essas carnes moles que se estendem ao sol, domesticadas pela preguiça, pelo álcool e por uma sensualidade grosseira e sem profundidade?

Talvez o amanhã pertença a gente dessa espécie - talvez sejam eles os coordenadores do mundo em que começamos a viver. Mas são tão melancólicos e tão estritamente confinados à sua miséria, que possivelmente estão muito longe de perceber o que se passa. O Deus antigo, o Deus do terror e das hecatombes, bem poderia agora esparzir esse sangue bruto ao longo das areias mornas - bem poderia brandir um raio ou soprar uma rajada morna de demência - qualquer coisa finalmente que fizesse sangrar essas almas cativas, tornando-as acordadas e viris. Há uma determinada sonolência da alma, que só o castigo e o medo conseguem afastar. Os ferros do tempo dos escravos ou as tenazes ardentes da Inquisição, tudo serviria para fazer vir à tona das faces uma sombra de sentimento ou de espírito. Mas é inútil sonhar, eles apenas vivem uma agonia sem sentido, enquanto aconchegam ao sol brando, sem amor e sem piedade, as velhas carnes mal-tratadas.

(Inútil conter, é muito forte o sopro de impiedade que me atravessa. Ó carnes abastadas e domingueiras! Custa a crer que tenha havido um mistério da Encarnação, e que um Deus autêntico tenha descido a este mundo para redimir tal rebotalho... Sim, as revoluções, que são exteriores, podem lidar com isto - mas a religião, que fará desta vontade assassinada?) "

Em tempo: Lúcio Cardoso era um católico. Por católico não entenda a "religião" de Padres Marcelos ou outros alucinados quaisquer. Muito menos busque pontos de contato com a degeneração evangélica, que nada mais que é que um culto do desespero e da moral de rebanho em uma configuração ideal. O catolicismo de Lúcio se explica por um forte sentimento de antimodernidade, por uma rejeição do materialismo filosófico e por uma atitude trágica perante a vida. Sobre esse assunto, qualquer coisa que eu diga seria desnecessária, já que nesse artigo tudo está dito com muito mais propriedade: http://www.filologia.org.br/soletras/8/02.htm

1.13.2010

Paris sob água

2010 começou com chuvas torrenciais em São Paulo, deixando a cidade submersa em dezenas de lugares - tal como a Paris de 1910.

Isso mesmo, Paris. As enchentes que devastaram a Cidade Luz inspiraram uma exposição. As fotos deste post são de lá.

As enchentes paulistanas de hoje serão as obras de arte de amanhã? Duvido muito que o mundo dure mais cem anos, e eu pensei em aplicar o ditado "quem viver verá" mas acredito que neste caso não cabe. A vida em geral está muito a curto prazo, nestes tempos de Kali-yuga.



12.25.2009

Feliz dia de Mitra

25 de dezembro é e sempre será para mim o dia de Mitra, mesmo que cantem neste dia parabéns ao Nazareno.

Pode ser tão contraditório ver o 25 de dezembro como o dia de Mitra quanto colocar renas finlandesas com pisca-pisca coreanos em um país tropical, mas em geral as contradições e as mentiras, mais do que as certezas e as verdades, movem os destinos do mundo.

Mas deixemos as teorizações de lado, pelo menos por enquanto. Beba a Mitra na noite de hoje e seja feliz entre os seus.

Mithras, Lord Of Ages, below you we march!
Invincible sun, the flame of life, you dwell within our hearts!
(refrão de Lord of Ages, do Blood Axis)

11.21.2009

As cruzes que os homens carregam

As cruzes humanas, pesadas, megalíticas cruzes, atormentam as costas dos desgraçados que as carregam. Suas formas são as mais diversas: ora são dívidas, às vezes são paraísos artificiais, outrora uma família que nos deixava feliz e agora só nos vitima com desgostos.

Há cruzes que são filhos inesperados, os quais é obrigatório amar, mesmo que nada nos ligue a eles a não ser as lembranças de um coito sem brilho, apenas mais um coito entre tantos, e que resultou em um ventre fecundo e um novo ser amaldiçoado desde a concepção. Para outros a cruz é um amor cuja voracidade engoliu a tudo, até mesmo da dignidade este amor fez refeições, a tudo devorou, como em geral acontece.

Tudo isso, todas essas cruzes, quando compartilhadas, pesam menos - é o que dizem. Mas a aqueles que renunciaram à própria renúncia, a aqueles cujo prazer supremo é rolar a pedra depois e depois, que mediante o efeito das noites em claro compreenderam a cíclica marcha das eras, lua após lua, sol após sol, a esses nenhuma cruz será mais pesada que o ar que os constrangem. A esses que, do peso infinito das horas, em uma alquimia que apenas os fortes conhecem, são capazes de rir e manter-se firmes, as cruzes que carregam jamais poderão ser compartilhadas totalmente - e cientes disso caminham para as altas montanhas, cientes disso descem para as profundezas dos abismos.

11.17.2009

As listas e a cultura

Hoje eu li uma entrevista com o Umberto Eco onde ele fala da importância que as listas desempenham para a cultura ocidental. Segundo ele, listar coisas faz parte do desejo humano de criar uma certa ordem em meio ao caos e estabelecer limites para o incompreensível. Daí surgiram dicionários, enciclopédias, legislaturas, museus - realizações estas que são como as grande listas de nossa cultura, registros das conquistas e criações dos homens nos mais diversos campos do conhecimento.

Fazer listas é inegavelmente um ato cultural, e na literatura elas ocorrem amiúde. E no cânone da literatura ocidental, uma das mais marcantes listas ocorre na Íliada. Conhecida como "o catálogo das naus", extende-se dos versos 484 a 877 do canto II , e é uma enorme lista de todos os povos e generais que participaram do cerco a Tróia, enumerados um a um, com as respectivas quantidades de navios e homens levados para a expedição guerreira.

De certa forma, o catálogo é um corpo estranho no poema: quebra-se a narrativa para enumeração de soldados. Há um debate secular sobre este trecho da Ilíada, mas todos concordam que um dos efeitos da passagem é mostrar a grandiosidade nunca vista da expedição, para que o leitor pudesse medir as dimensões do confronto; e justamente estas dimensões, épicas por excelência, foram as responsáveis pela popularidade da guerra. É mais ou menos isso que Eco diz neste trecho da entrevista:

Na "Ilíada", ele tenta transmitir uma impressão do tamanho do exército grego. Primeiro ele usa metáforas: "Assim como um grande fogo florestal investe contra o topo de uma montanha e sua luz é vista de longe, enquanto marchavam, o brilho de suas armaduras reluzia nas alturas do céu". Mas não fica satisfeito. Ele não consegue encontrar a metáfora certa, então implora às musas para que o ajudem. Então ele chega à ideia de listar os nomes de muitos, muitos generais e seus navios.

Na edição bilíngüe com tradução de Haroldo de Campos, pouco antes de começar a lista das naus, o poeta evoca as musas com os seguintes versos:

(...) o total de nomes da multidão, nem tendo dez bocas, dez línguas, voz inquebrantável, peito brônzeo, eu saberia dizer, se as Musas, filhas de Zeus porta-escudo, olímpicas, não derem à memória ajuda, renomeando-me os nomes."

O gênero épico prescreve a evocação das musas como auxílio ao poeta, para o sucesso da narrativa. E momentos antes de efetuar a lista dos povos que se movem contra Tróia, nada mais adequado: a tarefa, o poeta sabe, é enorme. Justamente sobre essa dificuldade Eco fala logo em seguida:

O trabalho de Homero se depara constantemente com o tópos do inexpressível. As pessoas sempre farão isso. Sempre fomos fascinados pelo espaço infinito, pelas estrelas incontáveis e galáxias além das galáxias. Como uma pessoa se sente olhando para o céu? Ela acredita que sua língua não é suficiente para descrever o que vê.

Foi lendo este ponto da entrevista que me lembrei da mais recente versão para o cinema da guerra de Tróia, lançada em 2004. Procurei rememorar como a tediosa listagem das embarcações feita por Homero foi transposta para as grandes telas. Se você viu o filme, talvez se lembre de uma cena presente na primeira meia hora, que não dura mais do que poucos segundos, onde o mar Egeu aparece coalhado por milhares de embarcações. A cena é breve, mas a impressão produzida pela imagem de um mar repleto de barcos dá a dimensão da guerra que está prestes a começar.

O que podemos concluir disso? Que a sintaxe própria da linguagem do cinema, estruturada na imagem, difere da do texto épico, baseada na escrita. A escrita não tem a simultaneidade radical da tela do cinema, onde todos os barcos podem ser vistos ao mesmo tempo: é o acúmulo descritivo da lista que permite ao texto homérico criar a impressão de grandiosidade do exército que acompanha Agamêmnon.

De certo modo, a literatura força o leitor a produzir a imagem da armada gigantesca, em um esforço imagético impulsionado pela leitura. Claro que o nível de detalhamento da imagem do Egeu dominado por naus dependerá em larga medida do repertório do leitor, dos seu nível de interesse pelo texto lido e também da tradução utilizada. Mas se a leitura do texto épico proporciona este exercício mental, ou melhor, se a literatura é ela inteira um exercício de (re)criação de imagens, a transposição de textos literários para as telas do cinema anula este prazeroso desafio e nos dá as imagens prontas, acabadas. No caso específico da Ilíada, a grandiosa lista de Homero me obrigou a vencer, na primeira leitura que dela realizei, uma espécie de enfado por tão longa e tediosa descrição; contudo o efeito almejado é soberbo, e ainda terei a paciência (e o tempo, recursos escasso) para fazer um mapa com os nomes das regiões citadas (e não a lista uma espécie de atlas escrito daqueles tempos?). Já no cinema, nenhuma referência geográfica é dada: mostra-se o mar infinito tomado por barcos de todos os tipos e tamanhos. A visão é terrível, acentuada pelo movimento da câmera e pela trilha sonora; adequa-se, para citar Paul Veyne, ao nosso intenso gosto moderno, que só admite a arte como excesso, grandiosidade, estremecimento.

Neste sentido, a lista proposta por Eco não satisfaz mais. Em geral são chatas, para alguns até mesmo insuportáveis. O cinema nos fornece uma possibilidade de reproduzir a impressão de grandiosidade da lista poupando o esforço intelectivo de recriar a imagem da armada enorme. São linguagens diferentes e, claro, é preciso entendê-las tal e qual; mas as deficiências da lista como recurso literário não são abordadas por Eco na entrevista. Poderíamos levar em conta que a Ilíada é um exemplo demasiado gasto, com seus 26 séculos de idade; mas mesmo em autores recentes, como Eça de Queirós, a leitura das partes descritivas (que nada mais são do que listas) é por muitos evitada. Mesmo para os que gostam de literatura e até mesmo para aqueles que a encaram como profissão. Listas demandam cuidado, apuro, paciência. São inegavelmente um produto cultural escrito (ou mesmo falado, se pensarmos que a Ilíada e muito da tradição épica antiga são sobretudo versões escritas de poemas orais, e nisso Milman Parry é a melhor fonte a consultar).

Frente a isso, retomo certos aspectos de meu post anterior para finalizar dizendo que certamente seria muito interessante ver Eco problematizando as listas de nossa cultura (uma cultura fundada em inúmeras listas), contrapondo-a com um ambiente onde a imagem ganha mais espaço e deixa a leitura como um item necessário, porém fadado a simplificações de forma e conteúdo que, se as previsões pessimistas se confirmarem, tornará cada vez mais difícil a formação de leitores capazes de efetuar leituras em profundidade. Isso ode ser uma boa explicação para a crescente popularidade dos romances históricos, que transformam a árida matéria dos livros de História em excitantes enredos. Ou mesmo para o fenômeno Dan Brown, cujos livros recheados de informações sobre arte, literatura, arquitetura, etc são verdadeiras minas de ouro para as editoras, e os leitores em geral oferecem, ao final da leitura, uma confortável sensação de inteligência e erudição - feita de retalhos toscos, mas mesmo assim garante um certo brilho de sagacidade na mesa do bar. Nada contra a mesa do bar, mas esta sensação de conhecimento é apenas isso mesmo, uma sensação, e nada mais além disso.

11.09.2009

O romance e os novos processos de leitura


Este post é uma espécie de continuidade da idéia apenas esboçada no post anterior -de que romances com uma "sintaxe cinematográfica" poderiam ser um fator de inovação da linguagem romanesca. Embora eu não tenha encontrado uma resposta definitiva, logo após a publicação do post deparei com dois artigos que me fizeram pensar mais a respeito, ampliando o escopo do problema.

O primeiro foi um artigo publicado no The New York Times, que comenta sobre "Level 26: dark origins", o novo romance de Anthony Zilker, criador da série CSI. O romance, lançado em setembro, está disponível, além da versão impressa, em formato e-book, áudio livro e também para iPhones. Mas não é só isso: os leitores do romance são encorajados a visitar um site com vídeos baseados em passagens do livro.

O NYT chama livros como "Level 26" de "hybrid books" ou, de forma ainda mais ousada, de "vooks" (neologismo de gosto duvidoso, sem dúvida). Ainda neste artigo, Judith Curr, editora da Atria Book, diz que "você não pode mais ser linear com o seu texto" e que "todo mundo está tentando pensar em como livros e informação [multimídia] ficarão melhor combinados no século 21". Esta combinação do livro com vídeos e sites, diz-se, proporcionarão uma interação maior do leitor com a obra, em uma experiência cognitiva que não se limitará mais a leitura do que está no papel.

Além da interação leitor-obra, as redes sociais e os blogs poderão ser meios de criar/potencializar um tipo de interação que nos anos passados era muito mais difícil (e na maioria dos casos impossível): a interação autor e leitor. Através destas ferramentas, o autor pode escrever um livro online e, mediante os comentários recebidos, promover (ou não) alterações. Susan Katz, editora da Harper Collins Children´s Books, aposta que no futuro será mesmo muito comum que "o autor seja visto como um líder de um grande grupo e escolherá a dedo a partir destas sugestões [dos leitores]". Isso, aliás, já está acontecendo: Kevin Kelly, desde 2004, está escrevendo um livro que conta com a participação de muitos de seus leitores. Cada post é discutido por uma série de pessoas em todo o mundo, e o próprio Kelly incentiva a prática neste texto onde explica suas motivações colaborativas.

O processo de leitura é de natureza linear. Formamos palavras através de letras, orações através de palavras e enfim textos com a (co)ordenação de tudo isso. E essa linearidade típica da leitura ocorre essencialmente no tempo. Os elementos discursivos são como que somados, colocados um na "frente" do outro, e daí se produzem os sentidos. Agora, com todas as possibilidades de interação promovidas por vídeos e redes sociais nos processos de leitura, ocorre como que uma quebra neste percurso linear. Romances como "Level 26" pretendem ampliar a experiência cognitiva, conferindo-lhe aspectos de simultaneidade. O texto "salta" do papel de uma forma muito mais concreta do que apenas na imaginação do leitor.

Esssa mescla do visual com o romance é algo ruim? Nenhuma resposta convincente pode ser dada a esta pergunta, pelo menos por enquanto. Considero até mesmo a minha pergunta um absurdo: juízos de valor sobre fatos culturais em geral deformam nossa visão sobre o fato. E o fato é que o romance, gênero literário essencialmente problemático (pois produto do zeitgeist da modernidade), está sofrendo abalos consideráveis em um contexto onde a imagem ganha espaço cada vez maior. Já em 1974 o alemão Adorno tinha dito que

"Assim como a pintura perdeu muitas de suas funções tradicionais para a fotografia, o romance as perdeu para a reportagem e para os meios da indústria cultural, sobretudo para o cinema."

E mais isso aqui:

"Noções como a de 'sentar-se e ler um livro' são arcaicas. Isso não se deve meramente à falta de concentração dos leitores, mas sim à matéria comunicada e à sua forma." (as duas citações extraídas de Notas de Literatura I, página 56, Duas Cidades/Editora 34, 2008)

As partes grifadas corroboram meu ponto de vista: a forma do romance está aquém de nosso tempo. Sua forma não corresponde mais totalmente aos anseios do homem atual. Isso já está sendo discutido há tanto tempo que me sinto idiota ao ler o que escrevi (digo isso como um alerta, para que o leitor não pense que descobri isso sozinho; sou de um convencimento absurdo, mas para certas coisas é preciso ter modéstia); e apenas para lembrar uma experiência radical de questionamento da linguagem romanesca, eu cito "Memórias sentimentais de João Miramar", de Oswald de Andrade, romance devastador que empurra os limites expressivos do romance para um pouco mais além das linhas estabelecidas naquele Brasil de 1924.

Voltemos ao mundo dos processos de leitura e das inovações promovidas por vooks e redes sociais. Neste artigo interessantíssimo do site The Frontal Cortex, discute-se como a leitura pelo computador se relaciona com os processos neurais. O que me chamou a atenção não foi saber que a dificuldade e incômodo que muitos expressam ao ler pelo computador é, neurologicamente falando, o mesmo que nos afeta ao ler um texto impresso com fonte não amigável (por exemplo, a letra gótica medieval), e que a prática contínua da leitura online elimina o desconforto da mesma forma que nos acostumamos com fontes indecifráveis (é incrível como a minha namorada, que é mais nova do que eu, lê com muita naturalidade no computador, e isso me faz pensar que há uma questão geracional ainda não devidamente estudada sobre por que as pessoas reclamam que não gostam de ler no computador). O que me suscitou interesse nesse artigo foram as palavras da neurocientista Maryanne Wolf, que acenou para a necessidade de estudar, até mesmo fisiologicamente, os processos cognitivos das novas gerações, submetidas que estão a vídeos, fotos e gifs animados que interferem no processo de leitura. Nunca se produziu tanto conhecimento e livros como hoje em dia, mas frente a tantas distrações , segundo ela será cada vez mais difícil a formação de leitores capazes de imersão profunda em textos longos e complexos.

Cortázar disse que o romance não tem leis, "a não ser a de impedir que a lei da gravidade entre em ação e o livro caia das mãos do leitor." Hoje a literatura ocorre além das páginas dos livros e se funde com vídeos, música, discussões em redes sociais. Muitas vezes, o romance que cai das mãos do leitor só faz isso para deixá-las livres e assim investigar um site onde o personagem conta detalhes da trama apenas sugerida nas páginas de papel. Se isso não é uma reconfiguração das leis do romance, então não sei o que pode ser.

9.03.2009

O Consumidor (ou o supremo mimado)

Como vivemos em um mundo onde a ética do dinheiro prevalece sobre absolutamente todos os aspectos da existência, qualquer verme pode se dar ao direito de vociferar e inflar-se de "orgulho" por simplesmente ter dado algum valor monetário para adquirir alguma coisa (em geral bastante estúpida). O homem, então, deixa de ser um indivíduo: transforma-se nessa abstração doentia, o "consumidor".

Preciso admitir que paulistanos são os mais afetados por essa demência. Reclamam de tudo, como crianças mimadas. Principalmente em restaurantes e hotéis: queixam-se dos copos sujos, lanches que demoram, camas mal arrumadas, garçons grosseiros. Gostam de ser tratados como nobres, mas se esquecem -ou melhor, não possuem a decência de admitir a desgraça- de que somos todos miseravelmente plebeus neste mundo de shopping centers e fundos de pensão.

8.10.2009

Deus, escutai a nossa prece

Por favor, Deus, dê-me 50 gotas de Dramin, um sono pesado de 12 horas ininterruptas, um expurgo de todos os muitos pecados do passado (meus pecados retornam como pesadelos, acordo suado no meio da noite, grito e não há ninguém aqui para ouvir); uma manhã com sol, um calor luminoso das primeiras horas, para que eu desperte como um bicho qualquer, desses que vivem sem eira nem beira e dependem somente da Natureza-mãe-bastarda-de-todos; sim, Dramin, dê-me minhas 50 gotas que tanto preciso, ou qualquer outra coisa que coloque a alma em profunda paz, em profundo repouso e faça meus olhos doloridos mais tranqüilos; pois cansa-me buscar respostas para tantas perguntas, cansa-me estar sempre alerta, cansa-me muito a maldita consciência sempre alerta o tempo todo, todos os dias.E peço a Ti, Deus para o qual nunca mais orei desde a perda da Inocência, quero um novo batismo no Letes e deixar-me ser levado, em completo esquecimento, nas águas sem glória deste rio que a tudo absolve...

7.30.2009

A mística do guarda-chuva


Dias atrás tomei uma decisão fulminante: vou comprar um guarda-chuva decente. Um guarda-chuva caro. Um guarda-chuva incapaz de se dobrar ao vento, como todos aqueles últimos colecionados nos anos passados, comprados às pressas na saída de algum metrô em imprevisíveis dias chuvosos. É quase como uma mudança de eras que ocorre com um homem quando este decide finalmente comprar o guarda-chuva definitivo, aquele que não durará uma estação e sim anos, longos anos, e o acompanhará por dias e noites em pluviais travessias pela cidade.

Certamente há algo de ridículo no que acima escrevi. Mas o ridículo é uma questão de perspectiva, de interpretação, e é possível encontrá-lo em qualquer acontecimento, mesmo aqueles que se querem sérios e carrancudos. Eu mesmo achei engraçado quando um amigo contou-me meses atrás sobre sua decisão de comprar um guarda-chuva decente após anos utilizando aqueles cujas varetas entortam inexplicavelmente. Mas não há nada de engraçado nisso e agora eu consigo entender perfeitamente a mudança espiritual que um homem sofre após comprar seu primeiro guarda-chuva de verdade.

É necessário que eu explique melhor.

Primeiro de tudo é importante dizer que o primeiro guarda-chuva decente de um homem não pode ser comprado em um camelô. Isso serve para quem está com pressa e definitivamente não é disso que estou falando. Este guarda-chuva decente é antes de tudo um símbolo e, portanto, sua aquisição deve ser realizada obedecendo a uma determinada liturgia. Em outras palavras: deve ser adquirido em uma loja, e quanto mais especializada melhor. Esqueça os shopping centers: eles tornam o ritual um fracasso. Uma loja de rua, aquelas antiquadas, sem nenhum apelo de modernidade, com seu dono vetusto do outro lado do balcão e incapaz de sorrir porque a vida de hoje já lhe causa enjôos, é o templo ideal, o Pantheon onde se encontra não só guarda-chuvas, mas bolsas, chapéus, luvas, bengalas e utensílios para tabacaria. O preço deve ser no mínimo dez vezes maior do que o dos camelôs, a haste curva, ter uma ponta perfurante e me recuso a dizer que para este guarda-chuva a única cor aceitável é negra.

Depois da compra o primeiro passeio com o guarda-chuva é tão importante quanto sua aquisição (tanto melhor se estiver chovendo, já se deixa a loja batizando-o com as gélidas águas ex caelo). E é neste momento, neste passeio na rua munido de um guarda-chuva, que opera-se uma espécie de curiosa alquimia, ou revelação, arrisco a dizer quase iniciática, entre um homem e seu primeiro guarda-chuva. Sentir-se protegido por este objeto secular, cuja forma nunca foi superada mesmo após tantas descobertas científicas, é quase como experimentar uma comunhão mística com todos os homens de eras de antanho (sou da opinião de que objetos/lugares antigos estão impregnados de uma carga energética das pessoas que os utilizaram no passado). O passeio é agradável e parece que estamos distantes (espiritualmente distantes) de toda a agitação ao redor. Olha-se com desgosto para os guarda-chuvas coloridos , prova inconteste do mau gosto e da deselegância. Às mulheres em geral utilizam cores variadas para suas sombrinhas: o guarda-chuva negro só tem transcendência mesmo para um homem. A mulher o utiliza como um objeto que a impede de ficar molhada; já para um homem o guarda-chuva é uma espécie de cetro. Uma mulher com um guarda-chuva negro é uma visão urbana totalmente aceitável; um homem apressado que abre um guarda-chuva multicolorido não consegue ser levado a sério.

O formato fálico do guarda-chuva, acho, é um elemento que explica por que somente homens são capazes de manter com estes objetos uma relação quase fraternal: todo homem é amigo do próprio pênis e teme por ele mais do que pela própria vida, e esta relação se estende ao guarda-chuva. Perceba também que o guarda-chuva tem o mesmo formato de uma espada ou uma lança, objetos que são por excelência masculinos e que ao longo da história foram símbolos de poder, tanto espiritual quanto temporal. Até hoje são comuns garotos brincando com guarda-chuvas como se fossem gladiadores, o que mostra a especial ligação que o homem possui com este objeto. Bengalas também se assemelham a guarda-chuvas e figuram ao lado deles como objetos de elegância e masculinidade.

Graciliano Ramos andava para qualquer lugar que fosse com seu guarda-chuva negro debaixo do braço. Certa vez, de viagem (se não me engano ao Rio de Janeiro), em um dia de pleno sol, lhe perguntaram o porque levar um guarda-chuva em um dia tão bonito, sem nenhuma nuvem. Respondeu em um resmungo: “A gente nunca sabe.” Certamente o escritor alagoano, com seu estilo duro, azedo, implacável, foi um dos iniciados na mística do guarda-chuva. Lamentava aqueles que não o traziam consigo. Detestava aqueles que chegavam molhados aos encontros, com as roupas grudadas no corpo, os cabelos desalinhados pelas gotas sem clemência. O (suposto) Borges de “Instantes” (“Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas”) odiaria a resposta de Graciliano. Assim como Graciliano desprezaria este Borges fictício autor de poemas hippies, e o trataria como um moleque, como um cego reacionário que nada entende da grandiosidade interior que um guarda-chuva negro, adquirido no momento certo e mediante determinado ritual anteriormente explicado, confere àquele que o possui.

E nas tempestades que arrasam as ruas, hoje caminho com meu guarda-chuva negro, elevando-o tal como um objeto de culto (o que de fato ele é, apesar da incredulidade geral). Ao fazer isso, sou indivíduo do presente, mas estabeleço uma conexão metafísica com um tempo que já passou. Há melancolia na figura do homem que caminha sob a chuva empunhando um guarda-chuva; uma espécie de nostalgia também; mas nenhum destes sentimentos é acompanhado de compaixão. Ao contrário: a melancólica e nostálgica imagem do homem que caminha com seu guarda-chuva negro é uma imagem de nobreza, de sobriedade, de afirmação de uma vontade de permanecer incólume perante as atribulações, as desgraças, os descaminhos. O comprar o primeiro guarda-chuva decente é, para um homem já feito, o equivalente ao Crisma na tradição católica: confirma-se a introdução do indivíduo no universo adulto. E tal como na celebração da Eucaristia, o homem que sai de casa com seu guarda-chuva negro renova um pacto entre o presente e o passado. E este pacto, que no catolicismo é a hóstia consagrada, na mística do guarda-chuva é um novo olhar, um melancólico e nostálgico olhar para o presente, um olhar que não se perde nas primeiras gotas de chuva, por mais densa que esta seja, e consegue ir além da cortina da água, consegue escapar da força das úmidas rajadas ex caelo e permanecer distante e livre de seus efeitos.



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5.21.2009

O julgamento

Sem simpatia pela ignorância alheia.

Sem simpatia pelo sofrimento alheio - toda cruz é mais leve quando compartilhada, toda pedra empurrada ao cume de uma montanha parece uma pluma quando outras mãos que não as de um Sísifo cansado a força pelo caminho íngreme.

Sem simpatia pelas criações estéreis e cheias de otimismo e cor e esperança, prefiro os ventos e tempestades vindos de Bucareste, o cinza de paisagens que jamais se alteram, o olhar corajoso para um futuro que se repete sempre e que não dá a mínima para a repetição de suas tragédias e erros. Os erros, obstáculos infindáveis para miseráveis acertos insignificantes da história dos homens, estes animais cheios de arrogância e cheios de altos ideais, espécie de compensação mal alinhada para a baixeza de seu valor moral, sempre pronto a vender-se, a prostituir-se e enlouquecer no torpor dos genocídios.

Sem simpatia pela fé, seja ela qual for. Homens que acreditam tendem a se tornar indelicados e rasos de julgamento, prontos a tudo e neste tudo eu incluo até mesmo aquilo que os repugna.

Sem simpatia pela diminuição de si mesmo.

Sem simpatia pelas expressões vazias de almas vazias, pelas construções que nada são a não ser vaidade, vaidade e vaidade.

Sem simpatia por mim e minhas noites perdidas, jogado em camas que nunca foram minhas, noites em claro sendo Nero e Cristo, Calígula e São Paulo (só a loucura equaliza a todos eles, estes tiranos, estes homens santos e incrivelmente loucos). Noites em que eu não dormia, em que eu me atrevia a tudo, noites de violência e sexo que só deixaram minha alma ainda mais depravada e doente. Sim, eu me julgo de forma parcial, injusta e obtusa, mas qual julgamento não é, do começo ao fim, a expressão de um erro? Qual julgamento não é, ele mesmo, o canto degenerado de uma Vontade de Poder que se alimenta de Vida?