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7.29.2012

O horror urbanístico de São Paulo

Foi o espírito de porco de um jacú classe média que transformou São Paulo na cidade horrível de hoje, assim como é esse mesmo espírito que a mantém como uma das metrópoles mais feias que já tive a oportunidade de conhecer. 

É sobre isso que fala o texto a seguir, surrupiado do blog Sorry Periferia, comentando sobre o documentário Entre rios. Ele ajudou a clarear muitos aspectos da cidade, trazendo dados sobre a história urbanística de São Paulo, e ajudando a entender por que uma cidade antes elegantíssima se tornou a vanguarda do mau gosto até chegar no limite da inviabilidade.

Sem mais delongas, eis o texto + o vídeo.
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Nos anos 1920, a encruzilhada urbanística em que São Paulo se perdeu



Em 2007, o chef americano Anthony Bourdain veio a São Paulo e começou seu programa de TV definindo a cidade assim: 

 “São Paulo é feia. Ou melhor: é feia à beça. É como se Los Angeles vomitasse em Nova York”. 

 O comentário causou alguma indignação, ainda mais vindo de um americano de Nova York que, se não é feia, ao menos não é famosa por sua beleza. Mas é impossível negar o fato de São Paulo ser paisagisticamente uma das sucursais do inferno na Terra, embora ela compense em outros fatores (como a gastronomia, elogiada por Bourdain no Sem reservas). 

 Vivo nela há 11 anos e tenho o hábito de me debruçar na janela que dá vista para o Minhocão lá no fundo enquanto penso sobre os descaminhos urbanísticos dessa vida. Eu, que nasci em Jundiaí, uma província cuja única vantagem sobre a capital são o ar respirável e os constantes pontos verdes ao alçance da visão, nunca me acostumei à filosofia paulistana, onde ganhar dinheiro e tolerar o microondas de angústias urbano são a marca registrada (não que eu não goste de ganhar dinheiro, mas essa não pode ser a única filosofia possível de um lugar pra se viver). 

Graças ao amigo Thiago Foresti, conheci um documentário curta-metragem chamado Entre Rios, trabalho produzido pelo coletivo Santa Madeira, que deu várias respostas ao que eu há anos tentava entender.

Resumidamente: a São Paulo de hoje é a confluência da cultura brasileira do “vai do jeito que dá e tem que ser logo”, especulação imobiliária e caipirismo de elite ao estilo “precisamos ser a Europa e os EUA na América do Sul”. 

São Paulo foi surgindo na confluência de vários rios. No início do século 20, as doenças causadas por mosquitos e a especulação imobiliária (sempre ela) fizeram com que o Anhangabaú fosse canalizado, e o Tamanduateí, modificado em seu percurso e tamanho. O Tamanduateí passava onde hoje é a 25 de março, daí a existência da Ladeira Porto Geral – era ali o porto do rio. 

Nos 1920, época de desenvolvimento e de reformulação urbana nas principais cidades do país, houve o embate entre dois nomes da engenharia urbanística. De um lado, Saturnino de Brito, o homem que projetou com sucesso os canais de Santos, viu a metrópole caminhando pra cima dos rios Tietê e Pinheiros e passou a pregar a organização de parques no entorno dos dois rios. Como os rios tinham cheias no verão, a várzea deles seria preservada, ninguém ali construiria e teria-se um enorme cinturão verde em torno deles. Isso faria com que São Paulo fosse brilhantemente verde. 

Do lado oposto de Saturnino de Brito havia Francisco Prestes Maia. Era o jacu classe média/elite tipicamente brasileiro: queria transformar São Paulo numa metrópole americana, com arranhas-céus e carros, e sempre do jeito mais fácil possível. Em vez de desapropriar casas pelo caminho, o projeto dele previa simplesmente canalizar ou encurtar os rios e fazer avenidas sobre eles. Prestes Maia ganhou a queda de braço e ainda tornou-se prefeito entre 1938 e 1945. E assim nasceram a 23 de maio, Consolação, Pacaembu, Ricardo Jafet, 9 de julho, Turiaçu, do Estado, Sumaré, Águas Espraiadas, Cupecê e tantas outras. Não preciso nem lembrar o quanto esse projeto também foi malsucedido socialmente (claro, não só por causa disso): as periferias cresceram sem qualquer ordenamento. 

Hoje não temos mais rios limpos, tampouco navegáveis – e do jeito que São Paulo era interligada por eles, poderíamos ter um complexo hidroviário impressionante nos dias atuais. Assim deu-se a expansão paulistana. O jeitinho brasileiro também deu as caras na arquitetura, que segue padrão nenhum (o padrão quem escolhe são as construtoras), os prédios não fazem sentido no ambiente do bairro ou da cidade, como deveriam fazer. O transporte público até hoje é preterido pelo automóvel, e as novas faixas das marginais estão aí para não me deixar mentir. 

Acima, você pode assistir ao Entre Rios. Tem só 20 minutos, recomendo muito. O documentário me fez lembrar daquele momento no De volta para o futuro em que Marty e o Dr. Brown voltam para 1985, mas tudo estava diferente. A conclusão era que eles pegaram uma outro caminho na linha do tempo que desembocava em uma outra vida em 1985, e que precisariam voltar correndo para a 1985 deles. Esse momento na vida paulista foi entre 1920 e 1940. Infelizmente, na vida real paulistana, não temos muito o que fazer.

4.23.2012

Sempre que possível, fique em casa

 

Ontem à tarde eu tinha desistido da vida social quando amigos me chamaram para ir na exposição sobre o Angeli no Itaú Cultural. Acostumado a ter finais de semana confinados em casa, aceitei o convite. 

Apesar da disposição um pouco apertada do farto material, composto de reproduções e muitos originais, a exposição oferece um amplo panorama sobre o trabalho do cartunista, criador de míticos personagens do imaginário contracultural dos 80 e 90, como Bob Cuspe, Rê Bordosa e Os Skrotinhos. A exposição também dedicou uma sala para obras mais putanheiras, onde algumas das memoráveis fotonovelas da Chiclete com Banana podem ser vistas. Há também obras mais recentes, como a República das Bananas, cuja capacidade crítica reside na construção de tipos ideais de indivíduos cotidianamente banais. 

Entretanto, um alerta é necessário: se possível, não vá à exposição. Não se arrisque a ser um otário como meus amigos e eu fomos e ir ao Itaú Cultural no sábado  às 18h00 - a não ser que o seu objetivo seja ter um contato semi-promíscuo com outros seres humanos em um lugar ridiculamente apertado. De minha parte, gosto de contatos promíscuos desde que com pessoas que EU possa escolher. Do contrário, tudo que ocorrer será experimentado com nojo. Ainda mais em exposições e, especialmente, em  uma exposição sobre um cartunista: a quantidade de designers presentes chega a ser espantosa.

[Como eu sabia que a maioria ali era composta por designers? A resposta é simples: por puro preconceito. Cachecol, óculos de armação grossa, roupas descoladas, barba por fazer, camisetas com frases engraçadas, iPhone, cores em profusão e algumas outras características me ajudam a encontrar designers em meio à multidão.]

Seja como for, a lição que fica é: sempre que possível, veja exposições em casa. Faça de tudo para descobrir uma forma de ver online o que está nas paredes de uma galeria. Não vale a pena arriscar o conforto de seu sofá trocando-o pelo risco de ouvir comentários sobre as obras ditos por pessoas que você teria vontade de aplicar aborto retroativo. Ou pelo menos vá em horários onde poucas pessoas estarão presentes - o que é uma tarefa praticamente impossível em São Paulo. Mas morreremos tentando descobrir que horário é esse. Aí eu posto aqui. 

Ou melhor, não.

A música que resume o estado de espírito pós saída da exposição:




3.11.2012

Postos de gasolina e as devoções paulistanas


São Paulo amanheceu no dia 6 de março de 2012 subitamente sem gasolina nos postos de combustível. Acostumados a utilizar o carro até para ir à padaria da esquina, o paulistano sentiu-se quase violentado pelos inescrupulosos motoristas de caminhão que transportam esse líquido supremo, espécie de sangue que mantém vivo o organismo monstruoso da megalópole. Vivo? Quando muito São Paulo é uma carcaça semimorta, apodrecida, constantemente maltratada por todos os seus habitantes – tanto os que aqui nasceram quanto os que escolheram a cidade como lar.

Uma cidade sem gasolina significa não menos carros nas ruas, mas sim o contrário: o desespero tomou conta de muitos e os postos de gasolina receberam um bando de paulistanos ávidos por abastecimento. E com todo o deselegante oportunismo que o caracteriza, os paulistanos resolveram tirar vantagem da “desgraça” alheia, e muitos postos aumentaram o valor por litro: foram relatados postos cobrando até mesmo quase cinco reais. Enquanto uns choram, outros estão ali a vender o lencinho: como sempre os problemas alheios podem ser lucrativos.

E então o melhor acontece: editoriais raivosos atacando o absurdo de uma cidade como São Paulo sofrer da falta de gasolina; âncoras televisivos esbravejando enquanto câmeras aéreas mostram postos repletos de carros; especialistas em abastecimento com predições apocalípticas de que tudo se normalizará em intermináveis dez dias; e claro as conversinhas do vulgo nos botecos, nas redes sociais, no cafezinho vespertino, assombrados com o caos generalizado que tomou conta da cidade, onde até mesmo as forças policiais entraram, salvaguardando a tranqüilidade dos fura-greves que, como bons paulistanos, desejam manter o abastecimento em ordem, a paz reinante, a gasolina para todos.

Nesse ponto a sensação de que o vômito está prestes a subir pela garganta já produz aquele desejo de ir embora da frente do computador; de deixar de lado todas essas questões que rigorosamente não me pertencem; de aceitar que o paulistano é assim mesmo, um sujeito derrotado, desprovido de qualquer sensibilidade, de qualquer ambição que esteja além das linhas do microcosmo que é ele mesmo e seus prazeres imundos. Porém, mesmo assim, com o borbulhar do vômito na garganta, vou além para comentar um fato ocorrido na quarta-feira 7 de março, produto da falta de combustível na cidade: um homem que foi assassinado após ter furado a fila em um posto.

Alguns conhecidos comentaram tristemente a notícia, exalando certa perplexidade. E de fato essa notícia causa isso: um nojo, uma sensação de que estamos diante de algo inominável. E justamente pela dificuldade em nomeá-lo me faz acreditar que esse caso não pode ser tido como algo isolado, que se destaca da realidade como um desvio da ordem, um crime, mas sim como sintoma do ambiente mental de São Paulo, essa cidade habitada por insetos que vivem como que em estado de sonambulismo perpétuo, escravos servis de tudo que é baixo, ridículo, violento e estúpido.

Tento imaginar o quadro de forma resumida ao extremo, me colocando no papel do assassino: estou há duas horas tentando abastecer o meu amado veículo; um sujeito espertalhão entra na minha frente, abusadamente tentando abastecer antes de mim; discutimos; e tomado de um ímpeto feroz, que não sei de onde nasce, mas julgando-o como correto e convicto de que estou em meu direito, mato o sujeito que tentou passar na minha frente; a espera de duas horas justifica-me, o estresse que me atormenta, a desavergonhada tentativa de me fazerem de idiota - talvez eu tenha exagerado demais, romantizando as escolhas e reflexões do assassino, mas basicamente a história é essa. Trata-se de um assassinato não por honra, por uma causa, por legítima defesa: matou-se porque alguém tentou furar uma fila. Um degrau é descido rumo à imersão completa no lodo da selvageria.

Essa fúria chegará ao transporte público? Faço profecias de que duelos a base de faca serão travados nas escadas dos metrôs insuportavelmente lotados de São Paulo. A demência dos usuários do transporte público já os insensibilizou dos empurrões nas plataformas: tidos como inevitáveis, aqueles que lamentam as trombadas são os errados, vítimas de sarcásticos olhares de repreensão daqueles que interiorizaram a violência. E nos vagões dos trens estão em gestação exércitos de seres prontos para, quem sabe, matarem outros tantos que algum dia furarem filas, ou que sejam vagarosos, ou que se neguem a fazer parte do empurra-empurra generalizado. Motivos é que não faltam para matar.

Havia mais brilho quando as brigas cotidianas eram motivadas por questões amorosas, diferenças políticas, defesas territoriais. Mas não: mata-se porque alguém furou uma fila. Se mortes ocorrem por nada é porque estamos naquele nível onde viver igualmente já não significa absolutamente nada.

Ou talvez tenha sido assim desde o princípio: os homens sempre morrendo por coisa alguma. A diferença é que antes esse nada tinha uma figuração mais atraente: uma mulher, uma utopia, uma bandeira. Agora a decomposição, atingindo uma efervescência mais acentuada, dá-nos como objeto de devoção alguns litros de gasolina. Essa devoção mostra muito a nosso respeito, refletindo-se em uma cidade contrária ao pedestre e ao caminhar lento e irresponsável; em um urbanismo pautado em vias que façam o trânsito fluir rápido; em condomínios afastados do centro, repletos de áreas verdes, feitos para atender a uma demanda por "tranqüilidade" tipicamente burguesa de certa fatia de privilegiados, e que nada mais são que simulacros de bem-estar protegidos por muralhas de medo; em todo um conjunto de áreas de entretenimento onde só se chega de carro, ou que é mais conveniente ir em um; enfim, nossa devoção pela gasolina, que ficou mais evidente com a crise no abastecimento, mostrou que esse derivado do petróleo modela em larga escala a própria dinâmica da cidade, sua geografia, sua divisão dos espaços - e também nossa maneira de ser. O que é algo triste de admitir. De qualquer maneira a essa altura, dia 11 de março, o abastecimento de gasolina já está normalizado em praticamente toda a cidade, e não se alcançou um estado realmente crítico. A lição que tiro é que, se alguma vez isso se repetir, alguém poderia distribuir armas entre todos os motoristas, como uma espécie de teste, apenas para vermos o que poderia acontecer.


1.15.2012

A pressa paulistana



São Paulo: a maior cidade do hemisfério sul, a capital da locomotiva bandeirante do Brasil, a desordenada aglomeração urbana que conjuga todas as contradições do horror chamado Brasil em versões cruas e sanguinárias.

9.26.2011

Mensagens cifradas em lágrimas

Gosto de buscar conexões entre os dados da Realidade e neles encontrar mensagens cifradas. Esse exercício, repetido desde sempre, está algo próximo da Patafísica, mas também da idiotice. E como nem sempre a Realidade é algo razoável, encontrar explicações, mesmo que absurdas, para os acontecimentos do cotidiano acabou por se tornar um vício, uma obsessão, uma tara que faz rir na maioria das vezes e em outras me deixa extremamente preocupado (mesmo sabendo do sabor arbitrário de todas as explicações que encontro através desse método).

5.17.2011

Rua Augusta, quase três anos depois


 "Let me take your little hand, let me make you understand /That the world is not as beautiful and free, like you believe" (A song for the Emperor, Ordo Rosarius Equilibrio)

É curioso observar o quanto a paisagem muda no Centro, como os pedaços de memória  presentes na geografia urbana se esvaem de acordo com as ondas da especulação imobiliária.

5.06.2010

Cidade Orgia


No noticiário daquela manhã S. viu que uma terrível onda de calor assolava as cidades do Nordeste. Na TV as mesmas imagens dos bois magros, dos poços vazios, das famílias de Fabianos famintos e humilhados. Parecendo se alimentar do Sol, a imensa caatinga crescia como um invencível monstro de aridez que ria da desgraça dos homens. E entrando no elevador para ir embora o calor nauseante fez com que se lembrasse das imagens vistas pela manhã e que aqui, mais ao sul, os tempos vividos eram também tempos de seca: chegava ao final mais uma semana de trabalho, a noite de sexta-feira era deslumbrante e fazia um mês, doze dias e só-o-diabo-sabe-quantas-horas que S. não fodia.

Isso às vezes ocorre com um cara. Uma espécie de piada de mau gosto (de péssimo gosto, diria S.) que a Natureza reserva aos seus filhos, mesmo que eles estejam em forma, bem vestidos, com barba aparada e escorrendo testosterona. Vai a bares, shows, baladas, festas e volta para casa tão sozinho quanto antes; reativa contatos com amigos; liga para um caso antigo e descobre que a desgraçada casou; e com exceção das velhas querendo lugar no metrô, para todas as demais mulheres do planeta o sujeito tem certeza que se tornou invisível ou desnecessário, como se ali, no espaço ocupado pelo corpo de um homem em apuros, só existisse algo cujo destino é ser ignorado (o necessitado é, antes de tudo, um exagerado).

S. saiu do elevador e em dois passos já estava nas ruas. A sexta-feira tinha sido muito quente. Já fazia quase uma hora que o sol sumira atrás dos imensos prédios, mas sua incandescente presença permanecia nos decotes generosos, nas saias que balançavam ao ritmo de coxas firmes, nas sandálias de salto alto que eram como altares para pezinhos suculentos. E se para um homem que passou a noite anterior transando até às quatro da madrugada o efeito desta moda provocativa é considerável, que o leitor tente sentir (e a leitora faça um esforço para imaginar) como um infeliz na condição de S. (um mês, doze dias, só-o-diabo-sabe-quantas-horas) sofria ao ver aquele cortejo de decotes, saias e sandálias de salto alto.

Como aquela noite estava quente e a avenida Paulista tomada de carros, S. desistiu do ônibus e confiou a volta para casa aos seus sapatos. Poderia assim desfrutar do agradável calor por um caminho que não era muito longo. E com tantas pessoas pelas ruas e, principalmente, com tantas mulheres (decotes, saias, sandálias) que também voltavam para casa, a andança seria um ótimo passeio e –quem sabe– poderia reservar algumas surpresas, oportunidades e aventuras (o necessitado é, antes de tudo, um esperançoso).

A avenida Paulista estende-se em uma linha reta por sete estações de metrô, dois shopping centers, dois museus, cinco livrarias e incontáveis prédios de ambos os lados. Estes se elevam do chão aos céus às dezenas como longuíssimos falos, rijos e sedentos caralhos apontados para o alto, para a enorme bunda de Deus, sentado lá nas nuvens a observar o mundo horrível que criou. A Mãe Terra salpicada de falos que apontam para o céu, eis uma ironia terrível, uma mãe com falos, hermafroditismo curioso que a obsessiva mente de S. poderia muito bem criar se já não estivesse ocupada com outra analogia inesperada, que brotou quanto viu entrando, no túnel que fica no final da Paulista, um enorme caminhão pipa; o gigantesco veículo lentamente cruzava a entrada do túnel, quase encostando em seu teto com sua volumosa e roliça carcaça metálica. Isso ainda me bota doente, pensou, mas a sugestão da imagem nem por isso deixou de persegui-lo; reviveu em flashes lembranças de fêminas ancas, levantadas em posição canina, com ondulações apetitosas, suculentas, e lembrou-se como suas mãos se encaixam naquelas curvas, o contato das peles suadas, os gemidos que o túnel não dá, os jorros espasmódicos que ao caminhão não são permitidos, e S. calculou se talvez não estivesse a um passo de se tornar um maníaco (o necessitado é, antes de tudo, um desconfiado).

S. continuou caminhando de volta para casa e (nem é preciso dizer), sempre em alerta a qualquer movimento feito por qualquer mulher em um raio de vinte metros. (um mês, doze dias, pergunte-ao-filho-da-puta-do-diabo). Seus olhos vivazes flanavam entre camisetas delineando seios perfeitos, frentes únicas exibindo costas macias e calcinhas levemente à mostra que S. tinha certeza que eram ridiculamente pequenas, expediente que segundo ele era utilizado de forma deliberada e com o único intuito de provocar. E devido ao seu estado excepcional, S. cometia com uma freqüência maior um equívoco que todo homem já cometeu: a captação de flertes até mesmo onde não tem. Pois se é possível reconhecer alguma habilidade em um homem necessitado, essa está em uma imaginação sem limites que entende um simples olhar como convite a um ménage.

Foi algo parecido o que aconteceu com S. na esquina da avenida Paulista com a rua Augusta: lá estava ele misturado entre muitos outros pedestres parados no farol vermelho, esperando uma chance de atravessar, um rebanho de animais cansados querendo voltar para casa em uma sexta-feira quente; após um tempo de espera o farol ficou verde, o rebanho estoura, os animais se cruzam; só isso e nada mais, apenas pedestres que se cruzam em um farol, todavia S. acreditou que uma ruiva peituda vindo na direção contrária lançou sobre ele um olhar diferente. Obviamente que se trata de algo absurdo e que a suspeita de S. é claramente fruto de seu estado, mas mesmo assim ele quis voltar e puxar conversa com a ruiva de alguma forma (o leitor sabe que conversas desse tipo necessariamente não precisam de assunto: fala-se apenas, intercalam-se futilidades com restos de estupidez, permite-se que o nada construa a sintaxe do discurso; a “eficácia” de uma conversa dessas, cujo objetivo é obter sexo, é tão maior quanto menor for o conteúdo da conversa). Após algumas palavras arriscaria convidá-la para ir até a sua casa; inacreditavelmente ela aceitaria, excitada com a irresponsável aventura; não demoraria muito e estariam nus na cama de S., esfregando-se como bichos, lambendo-se como bichos; descontrolados, entregues a uma animalidade de fluídos corporais, para aqueles dois pouco importaria que não se conheciam - tanto melhor assim, o anonimato permitiria todas as obscenidades. Foderiam com uma intensidade primitiva, ofegantes e malcheirosos após um dia de trabalho, e para S. seria algo realmente fantástico aquela mulher gemendo embaixo dele e pedindo mais, pedindo mais para um estranho qualquer que teve a ousadia de segui-la e propor sexo com palavras completamente vulgares, e que após uma conversa vazia se apresentou dizendo seu nome, nome que ela já tinha esquecido e isso não fazia mais a mínima importância agora que S. se espalhava dentro dela de uma forma quente, densa e viscosa.


Mas nada disso aconteceu a não ser na imaginativa mente de S. Ele continuou seguindo em frente, e a ruiva também. Ficará no leitor a dúvida se o olhar dela guardava algo de mundano ou se os pensamentos de S. afinal são produtos de uma mente acostumada a ver filmes da Buttman. Não importa discutirmos isso: dados menos de dez passos, S. não mais se lembrava da ruiva. É que a capacidade de encontrar flertes onde não tem possui um sistema de defesa contra as decepções, que faz com que o pretensioso conquistador se esqueça de todas as suas fantasiosas quase-conquistas tão logo elas se transformem no que sempre foram - isto é, nada. Salvam-se assim de tristezas e desilusões por todas as mulheres perdidas ao longo da vida, mulheres que são apenas frações de pensamentos subconscientes e das quais não guardam a menor porção de lembrança (o necessitado é, antes de tudo, um inescrupuloso).


Chegou ao Parque Trianon, lugar onde sempre encontramos casais sentados nos bancos trocando carinhos, beijando-se ao lado de árvores centenárias, testemunhas mudas de afagos libidinosos, de confissões dolorosas, de promessas de amor eterno que o tempo tratou de provar que eram falsas. Talvez pelas condições cruelmente impostas a S. (um mês, doze dias, blá blá blá) a ele parecia que os casais ali se beijando estavam especialmente atrevidos naquela noite; vítimas dos calores tropicais, seus beijos pareciam arder de tanta volúpia; e eram tantos casais ali se beijando que na imaginação de S. o Parque Trianon estava prestes a ser palco de uma orgia onde a qualquer momento centenas de Cupidos gorduchos lançariam suas flechas naqueles amantes indecentes. Inflamadas até os ossos com os mitológicos dardos as mulheres empurrariam seus homens para a grama; já completamente loucas de desejo arrancariam as próprias roupas, despindo-se com a sensualidade das feras; fariam o mesmo com seus machos, distribuindo calorosos beijos ao longo dos másculos corpos com generosidade; e no gramado do Parque Trianon veríamos mulheres nuas movimentando-se ritmicamente sobre corpos de homens deitados; mãos hábeis e deslizantes percorreriam depravadamente cada contorno de seio, cada pedaço daquelas bundas macias que, movimentando-se com delícia, pareciam implorar por novos tapas; e os gemidos seriam muitos, de todos os tipos, seriam ofegantes e maravilhosos, compondo uma libidinosa orquestra de sons sexuais, orquestra que faria os Cupidos gargalharem de satisfação e lançarem mais e mais flechas em todas as direções até que aquelas bacantes modernas, suadas e cansadas, saciassem a sede de suas bocas secas com os sucos revigorantes de seus machos agradecidos.

S. continuou seu caminho deixando lá nos bancos do Parque Trianon os enamorados, sem saber se haveria orgia ou não. Andou um pouco mais e chegou ao edifício Kanavikós. Na suntuosa fachada desse prédio, que abriga o principal jornal da cidade, há uma escadaria que muitos usufruem para descansar. Era exatamente esse o ponto da avenida que S. mais gostava. Sempre era possível observar dali a movimentação dos muitos bares, livrarias e cafés das redondezas, como também acompanhar discretamente as mulheres que por ali passavam. Sentou lá pela altura do décimo degrau da larga escadaria, acendeu um cigarro e começou o exercício mental que sempre fazia quando estava por ali: escolher aleatoriamente uma garota que passava e descobrir de que forma ela mais gostava de foder. Morena alta de saia curta e blusa branca, de quatro; loira de cabelo curto e cara de sono, de lado; ninfetinha de calça apertada e regata do Ramones, topa tudo; cabeluda com shorts azul e salto alto, por cima; gordelícia de cabelo curto e bunda grande, dá o cú na primeira – era mais ou menos assim que a lista funcionava. Terminou o cigarro, fez uma rápida retrospectiva da lista recém elaborada e continuou o caminho pensando que, entre todas as garotas da lista, a gordelícia merecia o topo com louvor, não tanto pelo fato de dar o cú de primeira, vantagem competitiva que quase todas as gordelícias oferecem segundo as sofisticadas teorias sexuais de S., mas pelas formas a la Botticelli com suculentas e mordiscáveis curvas, aparato perfeito para que as mãos se encaixassem, para que a boca se demorasse em chupadas doloridas e para outras finalidades que não elencaremos aqui, posto que a lista de S. já é demasiado explícita (o necessitado é, antes de tudo, um inconveniente).

Cruzou a esquina com a avenida Desperado, ponto onde começava a parte mais bonita da avenida Paulista: ali estavam as cervejarias Taavesh e Rio Grande, as livrarias Martins Fontes e La Hermosa, as lojas onde S. preferia comprar suas roupas, o teatro Cia do Absurdo, a Casa das Rosas, a Praça Lins, os antiquários, etc. Era nessa região que em geral S. fazia o desjejum aos domingos, gozando da calma tranqüilidade dos cafés e das muitas árvores que ofereciam àquele ponto da avenida uma serenidade que dificilmente se encontrava na Grande Cidade.

Mas naquele momento não havia nada da calma tranqüilidade das manhãs dominicais: ainda era sexta-feira, uma quente e abafadamente lasciva noite de sexta-feira (um mês, doze dias, deixemos-o-diabo-em-paz). Taavesh e Rio Grande com todas as mesas lotadas de fiéis trabalhadores buscando o relaxamento merecido após cinco dias de escravidão assalariada. Bebendo, gesticulando e rindo em uma confusa melodia de happy hour, homens e mulheres formavam grupos de configurações bem variadas e nem é preciso dizer que S. prestava muito mais atenção nas mesas onde só havia mulheres: estavam rindo e certamente falando indecências, certamente contando para as amigas como que foi com fulano, e todas se deliciando naquela espécie de irmandade que o ato de beber oferece quando feito em conjunto. Quais não serão os segredos das conversas entre as fêmeas, das conversas depravadas das fêmeas que em nada devem aos homens em matéria de obscenidades e safadezas. Mas da calçada S. só consegue ver as bocas se mexendo, uma pena não ouvir o que aquelas mulheres dizem (loira de decote, por cima; amiga de cabelo tingido, de quatro; morena magrinha, de quatro também). No fundo é melhor que S. e todos nós sejamos privados destes segredos, que nem são tão segredos assim, mas como gostamos de jogos e ilusões é divertido assim imaginá-los, indizíveis e para sempre ocultos.


S. estava chegando em casa. Passou pela larga ponte que cruzava pelo alto a avenida XXIII e, lá de cima, viu ao longe o Obelisco. A Mãe Terra salpicada de falos que apontam para o céu. Andou um pouco mais e chegou ao entroncamento da Paulista com a rua Vittoria, onde S. morava. Parado no farol, esperando o sinal verde, S. viu do outro lado da rua, perto da entrada do metrô Paraíso, uma obra da prefeitura fazendo um enorme buraco na calçada. Um trabalhador segurava uma britadeira que castigava o solo, em um sobe e desce rápido que não deixou de produzir em S. uma outra analogia, uma outra seqüência de flashes pornográficos que mesclavam fodas de outrora, Buttman e a gordelícia de Botticelli, a ereção veio como um foguete, impossível evitá-la e afinal evitá-la para quê, olhasse para baixo e encontrasse seu pau duro mal encoberto pela calça quem quisesse. O farol ficou verde, atravessou a rua e desta vez não houve trocas de olhares, só um velho vindo no sentido contrário. Olhou de novo o buraco na calçada e cantarolou em pensamentos trechos de uma música (when I dig a hole in the ground, I got erection), e realmente sentiu que estava entrando em apuros, que a aridez do Nordeste estava matando gente às pencas e que a sua seca poderia matá-lo também, no limite transformá-lo em um maníaco (um mês, doze dias, muitas-horas-para-o-diabo-contar), que talvez melhor do que voltar para casa seria voltar para as mesas do Taavesh ou do Rio Grande, sentar em uma mesa, pedir uma Eisenbahn Pale Ale e sorvê-la como se deve, buscar os olhares das fêmeas, torcer para o Cupido ser um gordinho legal e alvejar algumas com suas flechas, e elas então corresponderiam aos olhares de S., motivadas pelas flechas míticas; o sinal do acasalamento estaria dado, o álcool levaria as pernas de S. até a mesa daquela que tivesse o decote mais indecente, mais Eisenbahn Pale Ale, a sexta-feira fervilha o sangue nas mesas do Taavesh e Rio Grande, o pau dele pulsando ao ritmo da horrível música que tocava, entre conversas vazias já estariam próximos o suficiente para S. sentir o perfume dela e fazer os mesmos batidos elogios que sempre funcionam, mais Eisenbahn Pale Ale, mais elogios, mais palavras maliciosas, risadas já altas e tudo seria uma questão de paciência para que os tempos áridos que S. vivia chegassem ao fim.

4.25.2010

Narrativa Mitológica de Curitiba - Canto I


Canto I

Chegaram à cidade de Curitiba em uma fria manhã sem nuvens de Sexta-feira Santa. Lembraram-se com emoção do Nazareno que morreu na Cruz logo que deixaram o ônibus, mas essa emoção passou rápido pois foram surpreendidos por uma visão: campos sem fim com centenas de Cristos crucificados, um Cristo para cada pecado cometido pelos homens. A visão ocorreu de forma simultânea para os três: não foi preciso que comentassem um com o outro o que tinha ocorrido. Isso secretamente os alegrou pois mostrava, de forma a não deixar dúvidas, que a decisão de comemorar os Mistérios da Páscoa em Curitiba tinha sido acertada, marcando o início de dias preenchidos com cânticos selvagens, orgias lúdicas e fruição estética de objetos sem beleza.

Foram recepcionados calorosamente na rodoviária por um judeu casado com uma italiana. Moravam na cidade há algum tempo, sendo amigos do Peregrinos desde “há inúmeras gerações”, como gostavam de falar, se entendermos gerações em um sentido não vulgar e sim relacionado com a idéia de samsara. O judeu e a italiana viviam afastados do centro de Curitiba, em uma filial do Templo da Juventude Psíquica. No Templo havia 7 gatos, 23 serpentes e infinitos quartos: em cada um deles habitava um vício e uma mentira. Os Três Peregrinos resolveram acomodar-se no mesmo dormitório, que ficava defronte ao que o judeu e a italiana utilizavam. Um dos sete gatos gostava de arranhar a porta do quarto dos Peregrinos quando estava fechada; conta-se que aquele gato habitava ali desde muito antes dos Tempos Históricos, e que a presença do Templo consistia para ele uma espécie de profanação. Não se sabe que deuses eram profanados, e nem mesmo quem conseguiu descobrir isso; eram deidades para sempre esquecidas, cujos nomes permanecem codificados nos miados dos felinos.

Os Peregrinos, cansados da viagem, não resistiram ao conforto do quarto e adormeceram por algumas horas logo após o almoço. Enquanto dormiam, o judeu e a italiana desenharam um detalhado plano para a noite de Sexta-feira Santa. Estavam entusiasmados: fizeram uma enorme lista de ritos, compromissos e lugares para visitar, e sua empolgação foi tamanha que estabeleceram atividades para os outros dois dias também, tudo para que as horas fossem preenchidas, ricamente preenchidas. O próprio ato de escrever a lista lhes causou imensa satisfação. Sorridentes, foram despertar os Peregrinos de sua sesta preguiçosa, encorajando-os a se preparem para os compromissos noturnos. Sabiam: seriam dias vividos não vulgarmente como um feriado, como uma desesperada tentativa de diversão, mas sim como uma experiência de criação intensa de realidades complexas, de novos limites cognitivos, de sensibilidade paradoxais. Mesmo que tudo isso, no fundo, não signifique nada – tanto os Peregrinos como o judeu e a italiana sabem e sentem que a Vida é nulidade, engano, ilusão e traquinagens do intelecto tentando justificar que no fundo não é nada disso.

Já começava a noite quando deixaram o Templo entregue aos caprichos dos 7 gatos e das 23 serpentes. O destino dos nossos falidos heróis era o centro de Curitiba, especificamente o Largo da Desordem: espécie de último resquício do passado da cidade, cristalizado nas construções antigas, o Largo da Desordem é repleto de bares que invariavelmente estão cheios. O vulgo em peso povoa as mesas e, como não poderia deixar de ser, bebe incontrolavelmente. Contudo, a embriaguez dele esgota-se em si mesma; quando muito alguém se torna agressivo ou melancólico ou ridículo; a agressividade tem ao menos o mérito de colocar o indivíduo em uma situação de perigo, fator que o tira da normalidade sufocante que é uma verdadeira ruína para o espírito. Mesmo assim, é uma ferocidade sem brilho algum, assemelhando-se a cães que disputam um osso encontrado ao acaso. Mas de qualquer modo havia mesas e lugares para os Peregrinos e seus anfitriões se sentarem, o que fizeram sem demora nas mesas pouca iluminadas do Schwarzwald, endereço presente na lista de lugares-para-ir feita pelo judeu e pela italiana enquanto os Peregrinos dormiam e sonhavam. Escolheram o lugar por dois motivos complementares: por se tratar de Sexta-feira Santa e por ali se servir carne de onça e carne de javali. Em uma estúpida encenação ritualística (e conscientes da estupidez) pediram bebidas e os dois pesados pratos. Da carne de onça era possível ver o sangue escorrendo, já que era servida crua, e a do javali o aroma da gordura cozida chegava a ser nauseante. Mas os limites do corpo existem justamente para serem estendidos ao máximo, na busca pelo ponto onde a configuração saudável dos órgãos se encontra comprometida; os resultados não físicos do esforço se justificam, como por exemplo a visão mais ampla da realidade obtida após uma semana sem dormir, ou a sensação de superioridade espiritual fruto da escalada de vertiginosa montanha em trajes menores. Para os Peregrinos, o abuso de carnes na data em que o Nazareno morreu serviu como um ato simbólico de negação; ao mesmo tempo, comportava uma ânsia por intoxicar o sangue com substâncias mortas. Tal intoxicação ocorreu: sentiram-se pesados, gordos e incapazes de pensamentos ou ações sublimes, e preparados para uma noite sem descanso. Pouco depois do Ritual de Intoxicação, chegaram ao Schwarzwald as Amigas do judeu e da italiana: uma delas era a Loira e a outra a Morena. Trajavam provocantes vestidos negros e imediatamente despertaram a atenção dos intoxicados Peregrinos (uma delas desempenhará um importante papel nessa Narrativa Mitológica, ainda no desenvolvimento do Canto I). Suscetíveis estavam a qualquer menção de feminilidade, e a das Amigas era de uma espécie que levantava paus apenas com uma breve insinuação.


Para que uma noite de Sexta-feira Santa seja realmente comemorada em Curitiba, os Peregrinos instituíram que era necessário render homenagens a um ídolo presente nas extremidades do Largo da Desordem: a estátua do Cavalo Babão. Rodeado por jovens almas completamente imersas em um niilismo passivo que faria Nietzsche arrancar os fios do próprio bigode, nas redondezas da estátua do Cavalo Babão vagam aqueles comerciantes que vendem brincadeiras mais divertidas já vistas – ou seja, traficantes. Os Três Peregrinos os reconheceram pelas suas características universais: sempre quietos, parados nos lugares semi-escuros e pouco movimentados, sérios, compenetrados como monges. Em um determinado momento da noite foram até lá para munirem-se de ácidos, acompanhados por uma das amigas da Loira e da Morena. Essa amiga chamava-se G. e tinha se juntado ao grupo fazia apenas alguns minutos; levou os Peregrinos para falar com um tal de Traficante do Capuz, cujas pílulas eram famosas entre os curitibanos. A negociação foi breve: saíram de lá com o suficiente para uma noite. G. ofereceu as pílulas aos Peregrinos colocando-as em sua boca e beijando-os, molhada e libidinosamente. Dizia-se que ela era uma bruxa e que aprendeu a arte de beijar em cerimônias de osculum obscenum praticadas amiúde nas terras do sul. Talvez daí se explique por que os Peregrinos tenham ficado com uma sensação muito viva de que o beijo de G. continha algo fecal e demoníaco, especialmente para o peregrino mais alto e que nunca dormia, que foi favorecido com beijos de ácido mais calorosos.


Desse ponto em diante a noite dos Peregrinos entrou em seu momento de ascensão, delírio e aventura. Sempre acompanhados do judeu e da italiana, seus anfitriões, e também das Amigas, nossos heróis percorreram as ruas centrais de Curitiba. Perdidos, alheios, gozando da influência dos beijos de ácido de G., entoaram os cânticos tradicionais da Sexta-feira Santa, celebrando o assassinato ritual do Nazareno segundo a exegética da Morte do Passado, ou seja, como um momento feliz; e dentre os muitos significados de tal morte, trataram de deixar claro que, como Jesus estava morto, tornava-se ilógico falar de pecado; devido a isso, pelo menos até a Páscoa, os pecados estavam suspensos e todas as ações não poderiam ser julgadas como boas ou más, justas ou injustas, já que deus estava ausente das coisas do mundo.

O clima de licensiosidade iniciado com a Intoxicação por Carne e hipertrofiado com os Beijos de Ácido de G. levou-os ao Blood, um lugar qualquer de Curitiba que não vale a pena explicar. Ali, os fatos que merecem ser enumerados se resumem a três: a Longa Conversa sob a Árvore do Vício, que fica na região exterior do Blood, cercada por areias impuras; nessa conversa tudo o que existe no mundo foi discutido e analisado sob inúmeros pontos de vista, todos estúpidos; a irritação de alguns machos locais, que odiaram a presença dos Peregrinos no Blood, talvez por os considerarem estrangeiros em sua cidade, típico bairrismo curitibano que os próprios Peregrinos consideram correto e desprezível ao mesmo tempo; e por último o ataque sexual sofrido pelo Peregrino de aspecto vampírico, que sucumbiu aos encantos da Morena. O intercurso entre os dois foi selvagem, bêbado e indecente, sendo que a Morena, uma sucubus em estado ideal, tratou de sorver praticamente todo o vril do peregrino de aspecto vampírico, chupando-o no pescoço. A ferida daí resultante permanece lá até hoje – o que nos deixa espaço para imaginar qual seria o resultado se a ela fosse dada a oportunidade de sugar o seu pau.

Há determinadas noites que deveriam ser eternas; entre o ocaso e o resplandecer do sol há mais vida do que em qualquer outro momento do dia. Os Peregrinos sabiam disso, e na volta do Blood para o Templo, onde moravam os 7 gatos e as 23 serpentes, seus espíritos rememoravam os acontecimentos de há pouco, assim como, sem nada dizer, amarguravam o final da noite, da primeira noite em Curitiba.


p.s.: Narrativa Mitológica de Curitiba é um relato dividido em partes. Esse é o Canto I. A Introdução e o Exórdio podem ser lidos aqui.

4.16.2010

Narrativa Mitológica de Curitiba

Nota introdutória
O que aqui segue é a parte inicial do esforço que denominei Narrativa Mitológica de Curitiba, após minha visita a essa cidade na última Páscoa. Foi a forma que encontrei para registrar, da forma que me parece a mais apropriada, os 3 dias entre a morte de Nosso Senhor e sua vitoriosa ressureição entre ovos de chocolate.

Haverá ainda três partes, que serão devidamente publicadas assim que eu me sentir satisfeito. Boa parte da Narrativa Mitológica de Curitiba foi escrita por apontamentos, coletados anarquicamente durante os dias do feriado. O trabalho maior está em dar um conjunto para tudo o que está espalhado em mais de vinte páginas de anotações, rabiscos, desenhos, fotos e cheiro de vômito.

Fatos, memória e fantasia estão completamente entrelaçados não apenas no resultado final da Narrativa, mas inclusive nas anotações. Todavia, tudo o que está escrito -absolutamente tudo- aconteceu de verdade
. Deliciem-se.


Exórdio

Os Três Peregrinos decidiram que a Páscoa daquele ano seria comemorada na cidade de Curitiba. Como em geral as coisas acontecem para eles, a viagem foi decidida aos solavancos, quase de improviso, o que não quer dizer que tudo o que aconteceu já não estava determinado em algum plano além-da-matéria que não explicaremos aqui. O fato é que arrumaram suas bagagens com satisfação, colocando nelas roupas, mentiras musicais, ilusões literárias e alguns sortilégios filosóficos. Combinaram de se encontrar na Estação Paraíso logo após o Sonnenuntergang; naquele horário a cidade agitava-se na a efervescência do movimento frenético de milhões de destinos vivendo o seu limbo-nada, desesperadamente querendo voltar para casa, caos que era a delícia-pesadelo de um Demiurgo vaidoso que com certeza ri e engasga com o próprio riso ao ver os Três Peregrinos se cumprimentando, abraços e tapinhas nas costas e sorrisos estúpidos, ansiosos pelo que estava por vir, por aquela Grande Viagem de Páscoa em que desceriam para o Sul, para o frio Sul, lar da dissolução de todos os Grandes Sonhos e Projetos.

Após se cumprimentarem, desceram as escadas e entraram no metrô que liga os extremos Norte, Sul, Leste e Oeste da cidade (o simbolismo da Cruz, escancaradamente presente na vida cotidiana ). Foram até a Estação Tietê. Ali fica uma rodoviária, arquétipo do Porto em uma versão modernosa ou empobrecida, adjetivos que parecem não ter nada de semelhante entre si, embora no fundo sejam semanticamente equivalentes e cabalisticamente irmanados. O Porto sempre foi o ponto de contato entre mundos diferentes, o grande misturador dos weltanschauung, a testemunha das despedidas fatais, a conexão mística das culturas em ascensão com aquelas que também desejam os altos vôos apolíneos antes do Esquecimento; lembremos que Fernando Pessoa, esse semideus feito não um mais muitos, escreveu uma ode ao Mar e ao Porto eterno que nos habita lusitanamente, que marca nossa alma com uma herança mediterrânea de Agitação e Perda. Mas se não há mais peixes nem marinheiros no arremedo de porto que a nós resta, nas rodoviárias há porém toda a sujeira e confusão de odores que caracterizam os redutos das embarcações. Malas são arrastadas, pessoas se esbarram sem parar, avisos sonoros alertando aos atrasados que é melhor se apressar, filas monumentais para compras de passagem, choro de crianças, resmungos de velhos, últimas recomendações para os que se vão: a rodoviária Tietê é uma coleção de tudo isso acontecendo sempre e sempre, um universo incansável de Tristeza, Perspectivas, Separações e Reencontros.

Os Três Peregrinos, que embarcariam no último ônibus da Viação Itapemirim, estavam alheios a toda essa movimentação da rodoviária: sua excitação com a viagem impedia reflexões mais profundas e senso de observação apurado. A saída do ônibus sofreu um atraso de quase uma hora, cortesia do engarrafamento da cidade, que ainda é tratado como um acontecimento excepcional quando na verdade transformou-se em fato corriqueiro, isso desde há anos. Mas assim se forma a Realidade, por um ato de Vontade, que muito deve ao uso da Palavra, esse instrumento de Poder que o Demiurgo vaidoso nos deixou para, em vão, tentar explicar o Universo.

Vencido o trânsito (exercício de contrapoder em nível lingüístico: vencida a condição natural de engarrafamento da cidade) o ônibus pegou a Autopista do Sul e em velocidade crescente seguiu para a cidade de Curitiba. Os Três Peregrinos então adotaram seus comportamentos padrões. O mais velho logo adormeceu: seus sonhos eram todos sexuais e invariavelmente envolviam lambidas no de mulheres depiladas. O outro peregrino, o mais alto, não dormia nunca: passava as noites desenhando histórias em quadrinhos de continuidade infinita onde a Derrota, essa deusa incansável, era venerada em diversas formas. O peregrino mais novo também não dormia, contudo permanecendo em um estado sonambúlico: tal estado lhe conferia uma aparência vampírica, acentuada por sua predileção por roupas negras e leituras em línguas estranhíssimas. Terminamos o exórdio dessa Narrativa Mitológica vendo nosso Três Peregrinos sentados em suas poltronas no ônibus e entregues cada um às suas manias prediletas.

1.13.2010

Paris sob água

2010 começou com chuvas torrenciais em São Paulo, deixando a cidade submersa em dezenas de lugares - tal como a Paris de 1910.

Isso mesmo, Paris. As enchentes que devastaram a Cidade Luz inspiraram uma exposição. As fotos deste post são de lá.

As enchentes paulistanas de hoje serão as obras de arte de amanhã? Duvido muito que o mundo dure mais cem anos, e eu pensei em aplicar o ditado "quem viver verá" mas acredito que neste caso não cabe. A vida em geral está muito a curto prazo, nestes tempos de Kali-yuga.



1.08.2010

Arquitetura, patrimônio histórico e preservação das cidades

Casa das Flores, na Paulista, sufocada por prédios

Este post é a tradução de uma matéria publicada em 04/01/2010 no jornal portenho Página 12 que aborda com excelente propriedade a questão da preservação da arquitetura das cidades.

Vai além de uma argumentação puramente histórica, bem alinhada com José Luiz Romero em La Ciudad Occidental, e mostra as vantagens econômicas advindas da preservação do patrimônio arquitetônico. E não esquece de elencar as vantagens espirituais desta preservação, que oferece aos indivíduos uma sensação estética que nós, pobres paulistanos, sentimos apenas como um reflexo apagado, um reflexo desgraçadamente apagado por décadas de maus tratos, descaso e ausência de planejamento dedicados aos espaço urbano. O centro velho de São Paulo, que poderia ser um lugar cheio de beleza e história, que o diga.

É possível que o espaço urbano paulistano seja alvo de uma revitalização? Ou os pouquíssimos exemplos de prédios e construções antigas serão todos arremessados ao solo, esmagados e triturados para a construção de novas e monótonas caixas de doze andares? A segunda opção, infelizmente, parece ser o destino desta cidade. O empobrecimento estético do espaço urbano, a mercantilização de cada centímetro de concreto sob uma perspectiva imediatista de lucro fácil e o descaso do poder público se juntam e o resultado é o que está aí para quem quiser ver.

Agora, a tradução. Agradecimentos mais do que sinceros para minha namorada que fez a revisão.


Patrimônio e geração de valor

O valor do patrimônio arquitetônico geralmente se associa com a sua dimensão simbólica. Nós o descrevemos como um pedaço da história congelada no tempo, que representa as tendências estéticas do tempo em que ele foi feito, as técnicas de construção, materiais, design e outros elementos que fazem a obra em si. Também como um reflexo da vida cotidiana, relações sociais e costumes e histórias dos nossos antepassados. Sua preservação é a salvaguarda de um recurso cultural e educativo essencial.

Mas o patrimônio construído também tem um valor econômico, muitas vezes ofuscado pela possibilidade do proprietário obter lucros com sua demolição imediata. Isso impede reconhecer a verdadeira fonte de recursos que a arquitetura pode oferecer aos seus proprietários e à comunidade como um todo. Um estudo realizado por Andrés Bello e a Corporação do Centro Histórico de Cartagena das Índias sobre o impacto econômico do patrimônio construído identificou as diferentes formas em que este recurso se torna um instrumento gerador de valor.

Em primeiro lugar , os autores reconhecem o valor de uso direto de consumo, que se refere à geração de uma construção histórica de seus proprietários ou usuários diretos. Por exemplo, no caso do turismo por seu uso residencial não permanente (aluguel temporário ou hotel "boutique") ou como escritórios, lojas ou mesmo casas, gerando uma receita superior a outras propriedades que não tem capital ou não estão localizados em zonas históricas.

Outra variante é o valor de uso direto de não consumo, relacionado com o valor gerado com a visita de um imóvel patrimonial. No caso do turismo, ele é dado pelo seu uso como uma atração para os turistas locais e estrangeiros, e os produtos e serviços prestados, tais como visitas guiadas, venda de guias, fotos e vídeos, etc. Isto também se aplica aos imóveis destinados ao comércio – restaurantes, lojas, livrarias –, cujo valor patrimonial é uma atração extra para os clientes.

Imóveis patrimoniais também geram valor de uso indireto, que devem ser tidos em conta quando se pensa na compensação aos proprietários de edifícios protegidos ou na implementação de mecanismos que criam sustentabilidade econômica: é o que ocorre quando a proximidade de um edifício histórico ou patrimonial gera um valor extra para os bens ou serviços que estão próximos. Isto se expressa por um custo mais alto da hotelaria, gastronomia, locação temporária de imóveis, escritórios ou outros bens ou serviços perto de zonas históricas ou imóveis patrimoniais de destaque.

Finalmente, o documento reconhece o valor de existência, e esta é a capacidade de capturar os benefícios gerados por uma construção ou área da propriedade pelo simples fato dela existir, para além do qual não necessariamente ser usada diretamente ou indiretamente. Por exemplo, quando empresas multinacionais analizam a qualidade de vida na cidade onde instalarão suas sedes, consideram a beleza e qualidade arquitetônica do destino. O mesmo se aplica aos novos edifícios que são construídos, muitas vezes fazendo referência aos imóveis patrimoniais ou às zonas históricas que se encontram em suas imediações. Esta variável também tem um grande impacto para o setor do turismo de feiras, simpósios e conferências, já que os organizadores procuram um apelo especial no momento de escolha do local de realização de um evento.
O patrimônio arquitetônico também gera valores não econômicos, mas que tem uma enome importância indireta, especialmente no caso do turismo. Nós nos referimos a valores estéticos (a satisfação com a presença de objetos bonitos, considerada essencial para a geração de turismo cultural e turismo de alto nível, como ocorre com o Teatro Colón), espirituais ( devido à sua ligação com a religião ou a memória de antepassados , sendo especialmente associados ao turismo religioso ou de busca de raízes da família, tais como igrejas ou arquitetura feita por imigrantes) e históricos e sociais (por sua relação com eventos passados de grande importância, como a Praça de Maio e o túmulo de Evita).

É claro, portanto, que a preservação do patrimônio arquitetônico tem um elevado impacto social para além do proprietário, e sua destruição é simplesmente uma descapitalização que ameaça não apenas a história, mas também a economia.

4.24.2009

Como ter um dia ruim

A perna latejava no ônibus. A dor não era tanta, mas a sensação do sangue pulsando incomodava. Incomodava também o gosto de estômago vazio na boca. Acordei mais cedo e fui à busca de um banco 24 horas para sacar a grana do aluguel. Consegui num caixa vagabundo do Compre Bem da avenida Liberdade. Corri para casa, corri para a imobiliária, corri para o metrô. O primeiro trem parou sem que pessoa alguma descesse naquela estação. Próximo, então. Algumas pessoas desceram, o espaço deixado por elas lá dentro foi imediatamente preenchido por outros passageiros. Ameacei entrar, alguém se apertou um pouco mais e me chamou. À medida que a outra estação se aproximava, os animais se agitavam e empurravam mais. Estação Vergueiro. A porta se abriu e eu fui espirrada para fora. Ao tentar voltar ao vagão, errei a distância entre o trem e a plataforma. "Cuidado com o vão entre o trem e a plataforma. Evite acidentes." Três pessoas me puxavam em meio ao estouro da manada. Nem estávamos no Paraíso...c alma, né, gente? Resgatada, não pude deixar de imaginar: e se minha perna tivesse ficado presa? e se ninguém tivesse me visto e o trem seguisse seu rumo? Acidentes assim acontecem no metrô, CPTM, no ônibus. Mortes acontecem assim. E a culpa é sua, meu amigo, minha senhora. Você com sua vidinha de merda que precisa correr pois senão perde a outra condução, e dá licença que eu preciso passar, eu preciso empurrar, eu preciso chegar. Estação Ana Rosa, acesso à linha 2, verde. Fila. 677A. Com o corpo aquecido não sentia a dor. Mas a perna latejava. O gosto ruim na boca. Thom berrava em meu ouvido. Take the money and run, take the money and run, take the money and run. Sentia nojo das pessoas. Me esforçava para não encostar na menina que dormia ao meu lado. Em vão. Ao dormir, ela tinha espasmos que faziam seus braços pularem, a cabeça repuxar para o lado. A curva era violenta e o motorista, estúpido. Nojo do cheiro de tempero às 9 da manhã ao passar por algum restaurante. Nojo dos pombos encardidos e seu andar coreografado sobre a grama. Da cor mostarda do livro que tinha nas mãos. Os olhos passeavam pelas letras que, naquela hora, hora errada. Se pudesse, me teletransportava para um bom hospital para, só um pouco, ser o centro das atenções, dos cuidados. Seria tudo pra mim. Eu não teria que resolver nada. Fique deitada aí, descanse um pouco. Tome seu soro. Cubra-se pois está frio. Estão trazendo o cobertor para você. Para mim. Só hoje queria que alguém me perguntasse "precisa de ajuda aí?". Porque o dia começou mal. E tende a terminar mal. E a espera pelo fim é cruel, ingrata. A perna começou a doer.

Esta crônica foi escrita por Gabriela Mori como resposta a um acidentado dia neste enormíssimo acidente que é São Paulo. Seja pelo tema abordado, seja pela forma alucinada da narrativa, a escrita da Gabi encaixa-se perfeitamente à proposta deste blog. Se você quiser comentar o texto diretamente com ela, o e-mail é

4.21.2009

"Epifania" em versão impressa no Jornal Hoje


Uma versão impressa do meu texto "Epifania" saiu no Jornal Hoje, que circula diariamente no Grande ABC.

Para moradores do ABC (ou que estejam passando por lá) o Jornal Hoje é distribuído gratuitamente em pontos comerciais da região.

Aos que ainda não leram o post, aproveitem e leiam aqui.

Agradecimentos ao senhor Bruno Cardoso Wolf pelo interesse em publicá-lo.

4.09.2009

Epifania

Epifania vem do grego Eπιφάνεια, que significa “aparição”. A palavra latinizou-se e entrou para o calendário católico designando o momento da adoração de Jesus pelos Três Reis Magos, vindos do Oriente para contemplar a “aparição” de Deus na terra. Epifania também tem uma acepção secular e significa a apreensão do sentido profundo de uma realidade por meio de algo simples, inesperado ou banal.

Epifania pode ser um bilhete oculto, mas que o descuido de um amante deixou escapar e justamente aqueles olhos que não o deveriam ler o fazem, tomados de espanto (adorei a noite de ontem, espero ansiosa o dia em que poderei enfim tê-lo só para mim, apenas meu e de mais ninguém, assim como eu já sou toda sua). Epifania no formato de um simples pedaço de papel cuja leitura é como um sonho ruim, leitura acompanhada de uma incredulidade amarga, mas que explica as conversas semimudas, os carinhos sem calor, o sexo sem a entrega.

Epifania é também um diagnóstico tardio (O câncer no pulmão já está em metástase por via hematogênica, Explique melhor doutor, Metástase é o processo que espalha as células cancerígenas de um órgão para outros órgãos, por via hematogênica quer dizer que é pelo sangue, o que é o mesmo que dizer que o câncer já se alastrou pelo corpo inteiro, Não há mais nada a fazer então, Não, sinto muito, só nos resta esperar). Diagnóstico que faz lembrar das dores absurdas, do cansaço para coisas que antes não nos cobravam nenhum esforço, dos primeiros sintomas que nunca percebemos mas que o veredicto do médico torna uma realidade pungente, levando cada célula cerebral a trabalhar no limite, vasculhando o passado na busca do impossível que é saber quando se deveria ter ido fazer um check-up, quando se poderia ter descoberto aquele pequeno amontoado de células mortas que crescia silencioso, alimentando a doença em pequenas doses, expandindo lentamente sua massa negra e sem forma que faz apodrecer até os ossos.

Epifania tanto pode ser a respeito do indivíduo (a traição do amante, a doença incurável) como também abranger realidades maiores. Há epifanias que nos revelam aspectos do mundo, da vida em geral. Podem ser experimentadas na solidão de um quarto ou nos bancos de um metrô às dezoito. A janela de um ônibus, por exemplo, ao passear indiferentemente pelas avenidas de uma grande cidade, pode ser canalizadora de epifanias. Como a moldura de um quadro, a janela de um ônibus (algo simples, inesperado ou banal) mostra a cidade como uma paisagem; o efeito em geral é entediante, mas há momentos em que a janela testemunha algo maravilhoso e convida os olhos próximos a compartilhar desta visão. O que daí resulta é problema de cada par de olhos que aceitou o convite.

Uma janela convidou os meus em um fim de tarde, quando o ônibus chegava ao final da avenida P. Olhei para uma praça que ali fica, onde existe um chafariz desativado já há anos; sem água, o chafariz é triste e apenas acentua a decadência daquela pequenina praça circular de bancos sujos e árvores feias. No centro do chafariz há uma estátua de um homem agachado olhando para baixo com a mão direita ameaçadoramente levantada, como que prestes a golpear algo que está no chão. Passavam muitas pessoas por ali naquele final de tarde, como sempre, mas detive os olhos em um casal de namorados: sentados em um dos bancos da praça, em frente ao chafariz desativado e triste, eles se olhavam trocando sorrisos, ela com os braços sobre o pescoço dele, ele com as mãos na cintura dela. Pareciam contentes, talvez apaixonados e, se quisermos exagerar, até mesmo felizes. O fato é que estavam sentados em uma praça e trocavam carinhos, da mesma forma que milhões de outros casais já fizeram, em incontáveis praças pelo mundo. A praça pública, símbolo de recreação e bem-estar, arremedo de natureza entre prédios que só crescem, a praça pública ou, mais precisamente, o namoro em praça pública nos parece, nós filhos dos tempos modernos, um acontecimento remotíssimo e que só pode ter lugar na memória dos velhos e nas páginas de uma literatura que pouco nos interessa. Mas nada disso importava para aquele casal. Era necessário um lugar para sentar e trocar carinhos e ali, naquele banco, eles encontraram esse lugar.

A moldura-janela movia-se (tanto a contemplação do casal como o que aqui segue não durou mais do que segundos) permitindo que o olhar alcançasse um outro ponto do chafariz desativado. Isso revelou que havia algo dentro do chafariz; a princípio não pude definir muito bem, mas então percebi (o bilhete oculto, o diagnóstico tardio) que se tratava de uma mulher: de cócoras, semi-oculta pela borda do chafariz, ela defecava desavergonhadamente, espalhando suas fezes aos pés da estátua central (enorme ironia aquela mão levantada, como prestes a golpear um animal rastejante, um verme). Eram pastosos pedaços de fezes que nasciam para o mundo no chafariz daquela praça suja de árvores feias; e logo ali em frente, sorridentes e estúpidos, um casal de namorados sentado em um banco, gozando da decadente hospitalidade de uma praça pública. Nenhum deles parava de fazer o que estava fazendo pela presença do outro: ela continuava defecando; eles, sentados logo ali em frente, permaneciam com os mesmos gestos e olhares apaixonados. A praça pública atuava como um neutralizador de presenças incômodas, de odores fétidos, de olhares curiosos, abrigando uma cena que já demasiada vulgar, repetida cotidianamente e até mesmo com graus de escatologia ainda maiores. E assim como os amantes que traem e os diagnósticos tardios, a cena que vi pela janela do ônibus (algo simples, inesperado ou banal) já é parte do cotidiano, e mescla-se à paisagem urbana como um item a mais, a necessária peça do quebra-cabeça sem a qual o jogo jamais estará completo. Aquele quadro absolutamente banal –a praça abandonada, a indiferença do casal de namorados, a ausência de pudor da mulher que defecava– funciona como um microcosmo da Cidade, reflexo de suas manias e trejeitos, espelho onde o seu sentido mais profundo se apresenta ofegante, impiedoso, terrível como uma epifania do divino cheia de brutalidade e selvageria, mostrando a mim, nos poucos segundos em que contemplei aquela cena, o sentido profundo de uma cidade enlouquecida e que permite tudo que viole suas próprias regras, infiel até mesmo para as próprias mentiras que conta, regozijante de seu vão glamour subdesenvolvido, sufocada pela hipertrofia desenfreada das banalidades mais chãs e constantemente espancando a todos com o peso hercúleo das avenidas congestionadas, da insegurança supervalorizada pelos jornais que vivem de sangue, da falência de tudo o que é público. E com feridas do tamanho de nossas desilusões –enormes, profundas, antigas– a miséria cotidiana é engolida como um gole de café e mesmo com tantos pontapés nenhuma nova dor parece ser possível.

1.21.2008

O Mercado e a Alma

Um dia de dezembro, quente e abafado. Nem bem tinha levantado da cama e o corpo completamente suado já estava. Calor maldito, disse ao por os pés no chão e sentir o contraste do piso frio com o bafo quente do quarto, mormaço que deixava os músculos preguiçosos, as pernas cheias de manha, o corpo como que surrado. Mas era preciso enfim levantar-se, depois água ao rosto para despertar, mais um pouco para a boca sedenta, então trocar de roupa e sair. Combinara com uns amigos uma ida ao Mercado Municipal para as compras da ceia de Ano Novo. Não iriam viajar, não tinham o dinheiro, e os dias de folga no trabalho eram tão exíguos quanto as suas economias. Resolveram então se reunir, comprariam tudo que as ceias em família têm, passariam uma tarde a preparar os pratos e à noite se fartariam e estourariam espumantes.

Ainda sentado na cama M. brigava com a sedutora preguiça quando o telefone tocou. Vem logo, o Mercadão hoje deve fechar cedo, era A. alertando o amigo, afinal já passava das dez da manhã e possivelmente ao meio-dia todo o comércio fecharia as portas. A necessidade fez M. vestir qualquer coisa e esquecer de qualquer higiene, foda-se, é o último dia do ano, pra quê se arrumar. Chegando ao prédio de A. tomou o elevador e olhou no espelho, a qualquer desejo de vaidade não haveria mais lugar, se estivesse ridiculamente vestido teria que suportar, e na totalidade dos desastres do mundo o que é uma desastrosa escolha de roupas, suportamos todo dia a ofensa de um relógio no pulso para lembrar que somos escravos do tempo, perto disso o olhar de gargalhadas da garota linda que passou não é nada. M. já estava papeando com A. na cozinha, ontem eu e a D. compramos algumas coisas no mercado aqui do lado, dá uma olhada nestas azeitonas chilenas, estavam baratas.
- Chama logo a D., cara. Não quero demorar muito lá.
- Vamos.

Da casa de A. até o Mercado Municipal era um caminho de uns trinta minutos em zigue-zague pelas ruas do centro da Cidade. O centro é o lugar onde se encontra a alma de qualquer cidade, a sua essência e a realização mais plena de sua forma. Isso nada mais é que um acúmulo de obviedades, certamente alguém poderá reclamar, mas o que importa é ver nisso tudo apenas o preâmbulo para vislumbrar o que, enterrado, vai no coração de M.; pois para ele o centro da Cidade encarnava também as excrescências, as deteriorações de um modelo ideal, a memória estilhaçada de um tempo que se perdeu mas presente sempre está, ao leitor atento isso certamente parecerá um equívoco, como afinal algo que se perde pode permanecer?, a pergunta é inevitável, para solucionar a questão basta que lembremos de alguém querido que morreu. M. olhava o Teatro Municipal, a Igreja da S., o Grande Viaduto, a Praça da Coisa Pública, e entre estes pontos os cortejos sem fim das gentes de todos os tipos e de todos os lugares, escadarias antes santas são agora poleiros de miseráveis pedindo esmolas, mas caçadas não se anda sem esbarrar em vendedores ambulantes e suas mercadorias eternamente suspeitas, fanáticos profetizando o fim do mundo com olhos demoníacos, putas que cheiram a perfume de oito reais sorrindo para qualquer um, senhores de caminhar lento que não se encaixam na paisagem de pura velocidade, como reminiscências de um tempo onde só se tinha pressa de vez em quando. Tudo isso, os mendigos, os ambulantes, os fanáticos, as putas e os velhos emaranhados entre indescritíveis outros tipos, são milhares, aqui só lembramos aqueles pelos quais M. mais interesse nutre. Ainda é preciso falar do cheiro que igual não há em nenhum outro lugar. Como isto era possível, claro era apenas o cheiro incomparável daquelas ruas sebentas, imaginava-se cego e de todos os cheiros do mundo os únicos que distinguiria sem sombra de dúvida era o de café, merda e o do centro. Talvez justamente o cheiro tão característico fosse a prova maior que aquela Cidade tinha uma alma, não se podem ver as almas, mas dizem que elas existem e é possível senti-las, o mesmo se dá com os cheiros, que não podem ser vistos, apenas sentidos.

E no Mercado o cheiro-alma da Cidade ficava ainda mais forte e misturava-se ao odor das frutas da estação,das verduras, das carnes, das pessoas que amassavam na quase orgia dos corredores estreitos. Prove uma uvinha, mais doce aqui não há, disse o vendedor orgulhoso de tão gordo, e entre os dedinhos espertos deixa escapulir um punhado de róseas uvas para as mãos de A. Quantos dias eu conseguiria viver apenas comendo as frutas dadas como amostra, M. perguntou a si mesmo. Viver naquela cidade era caro demais, fizera planos de gastar menos no ano que chegava, quem sabe as economias ajudassem a comprar um carro, mas um empecilho de ferro a piorar o trânsito da cidade.

Começou a ver todas aquelas pessoas se fartando de frutas cristalizadas, de ameixas, de tremoços, de queijos, eram famílias inteiras a compartilhar risos e sacolas. Todos pareciam felizes, e isto fez M. colocar em cheque sua felicidade, sua satisfação para com o mundo, com sua vida. Pois era um ano pesado o que embora ia, estranho atribuir uma massa física ao ano, mas é como se 2007 lhe pesasse nos ombros. Enquanto isso o vendedor gordo generosamente distribuía suas uvas, e era tão satisfeito que enojava. A. e D. logo adiante inspecionavam uns provolones, e mais gente chegava suada de tão apressada. Sei lá por que diabos uma ternura brotou no coração de M. enquanto ali parado estava, atrapalhando com seu imobilismo o livre trânsito das pessoas e suas sacolas, de-tudo-expectador, a pensar nos quitutes que comeria naquela noite e em quais novas paixões e desastres se envolveria no ano que nascia.