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4.11.2020

Sonho-real, Real-sonho


Há certos rumores que o Covid-19 abriu estranhos portais, pois os sonhos de todos parecem estar inundados de imagens antes não comuns. Mesmo os meus sonhos têm sido lisérgicos a um extremo que antes não aconteciam, ou aconteciam raramente - de qualquer modo, as cores têm se tornado incrivelmente mais vibrantes, as situações mais complexas e inusitadas, o ambiente amplificadamente surreal. 

Há um conto do Lovecraft que fala sobre um homem que tem sonhos onde voa por paisagens impossíveis. Ele acorda e fica recordando daquele mundo infinito com o coração apertado por um saudosismo que não tem fim. No conto os sonhos se repetem até ele enfim começar a viver apenas no sonho, e constata que aquilo que era mundo sonhado tem tanta substância e realidade quanto o "mundo real". Aquele mundo dos sonhos, tão imenso, tão fantástico, é um nada perto da realidade prosaica, repetitiva, empobrecida de significado. Sufocante, a vida real não suportaria aquele tipo de singular beleza que existe no mundo dos sonhos. Nosso mundo é feio, extremamente feio. E nele temos muitas pessoas horríveis. Mesmo aqueles que são considerados bonitos têm em si uma feiura secreta. Um traço de personalidade que faz as belas formas tão somente o que são - o feliz acaso da Natureza em criar um corpo apetitoso ao Desejo, mas que o andar dos anos tratará de deteriorar e deteriorar até ser um amontoado de tecidos enrugados, de células que morrem, de carne putrefata. "Nenhuma Beleza me vencerá", disse o Tempo no começo do mundo, e desde então a Beleza, quando surge, é só para nos fazer lembrar que todos no longo prazo seremos muito feios.

No mundo dos sonhos, porém, é tudo ao contrário: a Beleza vence o Tempo a hora que ela quiser. Ela na verdade ri da cara do Tempo, que naquele mundo age de modo bastante confuso - às vezes ele corre muito rápido, às vezes parece que anda para trás, mas a maioria das vezes ele fica parecendo bêbado e agindo de modo inconsequente. Tanto é que parece que por lá acontecem muitas coisas juntas, e parece que estamos vivendo aquilo tudo por horas ou meros minutinhos, e de repente toca o despertador e acordamos um tanto quanto desorientados. Nem sempre os sonhos são bons, tem aqueles que tentamos acordar e nunca conseguimos, parece que por lá ficaremos presos eternamente, suspensos em uma situação amedrontadora, o Tempo caído de bêbado nos deixando esquecidos ali apavorados. Há certas temporadas na vida que todas as noites temos sonhos ruins, mas para nossa tranquilidade, na maioria das vezes, sonhos ruins são uma exceção. 

Nada parece racional no mundo dos sonhos. Tudo ali obedece a uma lógica que nos escapa. Nem sei se dá para utilizar a palavra lógica para explicar o que ali ocorre. Seria uma pretensão imensa querer atribuir significados para tudo que acontece por lá; e como somos uma raça de soberbos é claro que, desde a aurora dos tempos, o homem tem procurado entender aquele mundo, investigar seus segredos, captar sua essência rebelde e louca. O que seria da humanidade sem o mundo dos sonhos? Constantino não sonhou com a cruz e a frase "In Hoc Signo Vinces", e após isso se fez cristão? Nesse signo vencerás: Constantino acreditou no seu sonho e mandou grafar nos escudos de seus exércitos a cruz. Logo após isso, em uma reviravolta um tanto quanto inesperada, venceu uma batalha decisiva contra Magêncio, seu rival na luta pelo poder, e tornou-se o primeiro imperador cristão a comandar o Império Romano. Se hoje o Ocidente é predominantemente cristão, temos nesse sonho de Constantino o gatilho que disparou uma série de eventos, que vão desde a fundação de Constantinopla até os bispos televisivos expulsando demônios em nome de Jesus.

Mas embora ali no mundo dos sonhos as coisas aconteçam de uma forma na maior parte das vezes absurda, a sensação de que tudo ali está vivo é marcante. Todos já tiveram sonhos tão reais quando essa tela onde você está lendo esse texto agora. Sonhos que eram tão incrivelmente intensos e vívidos que nem pareciam na verdade sonhos: era como se fosse um outro tipo de vida, um universo que obedecia a regras especiais, com seres estranhos, cores lindas, diálogos e situações que lembravam situações da vida real mas em configurações totalmente novas. Os mais deliciosos são obviamente os sonhos envolvendo sexo: já tive esse prazer inenarrável, em sonhar de estar fodendo com aquela pessoa que nunca você conseguiria se aproximar porque é tudo tão diferente no mundo real, as situações tão impossíveis de levarem àquilo, e no sonho é você ali transando na rua mesmo, em um cantinho qualquer logo após trocarem meia dúzia de palavras sem importância; as sensações prazerosas são tão fortes que já ouvi relatos de pessoas que realmente chegaram ao orgasmo durante o sonho. Uma intensidade tal que se parece com a realidade mesmo, vida exaltada e incrivelmente bela, livre e audaciosa.

Seria, tal como no conto de Lovecraft, o mundo dos sonhos um mundo tão verdadeiro quanto o nosso? As situações ali experimentadas, tão incrivelmente vívidas, tão marcantes, capazes de fazer nosso emocional rodopiar ao ponto de acordarmos seja em êxtase, seja em pavor... Seria um desperdício aquilo tudo ser apenas uma traquinagem de nossa mente, essa poderosa caixinha de armadilhas. Vibrante até mesmo quando nos assusta, pensemos no mundo dos sonhos como um mundo tão concreto quanto o nosso; que aquilo que sonhamos não seja um sonho, mas a vida de um outro alguém, a nós ligados, que leva sua existência em um mundo onde a Beleza é a Rainha de tudo e o Tempo fica caindo bêbado pelos cantos, tropeçando; esse mundo tem cores que nunca existirão no nosso, velocidades impossíveis de imaginar, cidades que parecem com as nossas cidades mas que mesclam todas em uma só - ora é como se fosse uma rua do centro de São Paulo, depois você sobe e é como se fosse a Recoleta, mais adiante parece a Vila Mariana e olhando ao redor já estamos em um parque de Amsterdã. E mesmo essas referências todas são apenas aproximações bastante inexatas, pois o que temos sempre nos sonhos é uma reprodução de dados captados pelo nosso aparato racional misturados em uma coqueteleira com bastante DMT e devaneios surrealistas, que fazem de repente a Avenida Paulista terminar em um deserto e colocar você e seu melhor amigo em cima de um camelo, vestidos como mercadores de Stygia acompanhando uma distante caravana e fazendo planos para um ataque de pura carnificina contra ela, e com tudo isso ao fundo rolando um som que parecia uma espécie de cumbia setentista - um mundo tão maravilhoso quanto esse, pensemos que ele sim existe de fato, que nada desses sonhos são fugazes construções do cérebro que um cientista chato um dia vai explicar que são reações químicas do lóbulo central e zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz. Ignoremos a ciência, ela só vai nos atrapalhar aqui. Vamos seguir nessa estranha estrada lovecraftiana que nos leva a concluir que o mundo dos sonhos é, na verdade, uma vida tão real quanto a nossa, vivida por um outro ser que é como se fossemos nós só que naquele "lado de lá", esse não-lugar que é o Mundo Onírico onde tudo é possível, até mesmo transar depravadamente no meio da rua com aquela pessoa que você nem sabe como começar uma conversa a respeito de um simples jantar, quem dirá de uma foda bem feita. 

Mas se quando dormimos o nosso sonho é a vida de um outro alguém, não é exagerada a hipótese de que a nossa vida aqui também é um sonho para quem está em outro lugar. Exatamente: isso que você está fazendo agora, lendo esse texto que escrevi; o meu próprio ato de aqui estar sentado, escrevendo esse texto, no coração da Vila Buarque no centro da cidade de São Paulo em plena madrugada do dia 11 de abril de 2020 durante a quarentena do Covid-19, tudo isso é o sonho de alguém que dorme no mundo que é onde vou quando eu estou dormindo. Aquele mundo para nós absurdo, onde passamos por situações típicas das obras de Dali, é a realidade de um outro Eu que agora dorme e me sonha aqui escrevendo sobre o mundo dele. Um parafuso de piração: essa é uma expressão bastante feliz para nomear esse vácuo no espaço-tempo onde a consciência de que não sou como imaginava, mas sou sonhado por alguém que sou enquanto sonho. Objeto ou sujeito deixam de ser conceitos válidos para se tornarem um conjunto de letrinhas em ordem, uma depois da outra, vazias daquilo que chamamos de significado. 

Se isto que chamo de realidade é o sonho de um outro, e o que chamo de sonho é a realidade daquele que me sonha, seria para este desconhecido o seu sonho (a minha realidade) tão absurdo quanto o meu sonho (a realidade dele) é para mim? Da mesma forma como relembro com sensação de absurdo o sonho onde a avenida Paulista terminava em um enorme deserto onde eu e meu amigo perseguíamos uma caravana de camelos, esse que me sonha em algum lugar deve contar para seus amigos mais ou menos assim a minha vida aqui:

"Nossa, hoje eu sonhei de novo aquele sonho que havia falado para vocês ontem, quando estávamos voltando da Bolha de Éter pela estrada de açúcar mascavo em cima dos flamingos verdes que tinham patas de mastim russo [nota do editor: aqui considere o leitor como um exemplo apenas de uma realidade possível para aqueles que nos sonham, e que são descritas com tanta naturalidade quanto nós falamos uns aos outros sobre engarrafamentos, contas a pagar, etc]. Eu morava em uma casa onde todos os cômodos ficavam sempre nos mesmos lugares: todos os dias eu acordava e o banheiro ficava no banheiro, a cozinha na cozinha, etc. Nem a privada mudava de lugar, ou de cor. Os objetos eram sempre os mesmos, e sempre nos mesmos lugares. É até difícil descrever isso, mas as roupas que ficavam no guarda-roupa também eram as mesmas, mesmo que você abrisse e fechasse as portas inúmeras vezes; e depois que você as usava, elas tinham que passar por um processo chamado "lavar", que consistia em pegar água e um negócio que quando misturado com ela fazia espuma; você colocava as roupas usadas dentro de uma caixa grande e dura, com uma tampa, e lá dentro se enchia de água e do negócio que fazia espuma. Depois de um tempo, tirava a roupa de lá e deixava pendurada, em geral num lugar aberto onde o Sol podia iluminar. Ah, o Sol todo dia também aparecia do mesmo lado, e na mesma hora, e eles tinham no céu apenas uma Lua, que também sempre aparecia mais ou menos no mesmo horário todos os dias. E todos os dias também eu ia sempre pro mesmo lugar, no mesmo horário, fazer a  mesma coisa, e isso se chamava "trabalhar": não deu tempo de entender muito bem o que era exatamente isso, mas pelo que pude entender era tipo uma troca, onde você dava um pouco de sua vida e recebia por isso uns papéis. Não só eu, mas todos faziam isso. Não parecia ser uma troca muito justa. Você via as pessoas ficando muito fracas nessa troca, perdendo a força, mas elas continuavam fazendo isso porque sem os papéis não tinha como fazer quase nada. Não me recordo muito bem, mas esses papéis serviam para trocar por outras coisas, até mesmo por comida - bizarramente, comer era algo que tinha que fazer todo dia. E ao invés de simplesmente comer o que se queria, comia-se o que se podia trocar pelos papéis que haviam sido trocados pela vida. E como o ato de comer era algo necessário para se ter vida, eles precisavam sempre trabalhar para trocar por papéis e com isso comprar mais comida; assim eles ficavam perpetuamente em um ciclo de trocar vida por papéis e papéis por comida para então ter vida e assim trocar por novos papéis, e sempre perdendo algo nisso tudo. Não fazia nenhum sentido, mas todo mundo fazia igual. Até mesmo transar era estranho, tipo por mais que todos tivessem a possibilidade de transar com quantas pessoas pudessem, eles faziam isso em 99% dos casos em duplas, e quase sempre dentro das casas imutáveis onde moravam, ou em outros lugares, mas sempre meio que escondidos, mas não entendi por que tinham que fazer longe dos olhos dos outros. E fica ainda mais esquisito: era sempre a mesma dupla. Tinha gente que estava há anos transando sempre com a mesma pessoa, alguns você via claramente que era sem nenhuma vontade, mas por algo que eles chamavam de compromisso, que é o que ligava as pessoas em duplas por tanto, tanto tempo. Imagina isso, transar só com pessoas conhecidas e apenas com uma única pessoa, por anos sem fim. Enfim, era tudo muito diferente, tudo muito sempre igual e padronizado; e mesmo assim, com a repetição tendendo ao infinito, tinha uma coisa que fazia com que essa padronização fosse suportada; e embora fosse algo muito, muito raro de acontecer, tinha um poder imenso, e causava um alvoroço tão grande por onde passava que até fazia aquele mundo cinza e pragmático, carregado de repetição, se tornar um lugar tão mágico quanto a nossa realidade;  não era ao ponto de fazer os cômodos das casas mudarem de disposição como na vida real [nota do editor: aqui o leitor tem que lembrar de levar em consideração que a perspectiva é a do indivíduo que do seu mundo nos sonha aqui, mundo esse onde o absurdo é a norma], mas era algo que mudava as pessoas, fazendo-as até ficarem mais bonitas e com vontade de usar coisas que as deixavam mais cheirosas - olha que louco, elas tinham que passar coisas nelas para ficarem cheirando bem! Quando esse algo as acometia, era mais ou menos como um tipo de doença: sentiam calafrios pelo corpo, que inclusive chegava a ficar mais quente, os pensamentos se tornavam aéreos, e um intenso desejo de transar o tempo todo com uma pessoa específica, de ver essa pessoa toda hora, de tocá-la, de sair com ela para comer e de várias outras coisas estranhas que faziam lá naquele sonho; essa reviravolta que direcionava toda a atenção de uma pessoa para outra tinha chances de não ser recíproco, isto é, nem sempre a atenção dedicada vinha de volta, o que causava naquele que direcionava a atenção algo chamado de tristeza. Alguns até passavam a vida toda tristes, decorrentes dessa falta de reciprocidade - esses em geral compensavam trabalhando mais e trocando a vida por mais papeis até que não sobrasse mais vida nenhuma. Mas quando essa atenção ia e voltava, eles experimentavam um negócio chamado felicidade, que os fazia sorrir quase o tempo todo. Alguns sorriam tanto que até choravam de tanto sorrir. E quando a coisa chegava nesse nível, isto é, quando a felicidade era tamanha a ponto de você chorar ou quando ela era tão grande que transbordava como um beijo louco acompanhando uma foda intensamente suada como se não houvesse o amanhã, então aí tínhamos algo que eles chamavam de amor em sua forma mais primeva e maravilhosa, que era o sentimento de ter a pessoa por perto, de admirá-la como uma espécie de divindade e, ao mesmo tempo, de ter vontade de fodê-la e gozar juntos até não poder mais. Isso era algo raríssimo de acontecer, e não consigo pensar em nada parecido no nosso mundo que se assemelhe àquilo."

Penso que seria assim que nos descreveria aquele que nos sonha enquanto estamos aqui, no nosso mundo real. Espantado diante de nossas repetições e trivialidades, sem entender a lógica racional que permeia nossos atos, as limitações da geometria euclidiana e as incontornáveis leis da física, elementos que não existem em seu mundo sempre aberto ao Fantástico. Talvez apenas os destemperados atos dos apaixonados, seus erros e acertos, suas lágrimas e gozos, despertariam neles alguma nível de atenção e, quem sabe, uma pontinha de inveja. É um lugar comum absolutamente banal chegar na conclusão desse texto, onde explorei essa ideia amalucada do sonho como real e do real como sonho, que o amor seria a única coisa digna em nosso cotidiano acinzentado. Há muitas outras coisas dignas no nosso mundo, e que merecem todo nosso apreço e atenção - mas parece que sem a experiência de ter e ser amado, e vivenciar essa experiência da forma mais extrema possível, envolto em explosões de afeto e cuidado e prazer, sem isso seríamos vistos por aqueles que nos sonham como seres desinteressantes, trocando nossas vidas por papéis e morando em casas cujos cômodos imutáveis reproduzem a monotonia que molda nosso Destino.

6.11.2012

Interpretação de sonhos


Dormir no sofá = ter sonhos estranhos. No último que experimentei, eu estava em um hotel antigo, com suas portas pesadas e piso de madeira lustroso, espelhando o andar dos seus poucos hóspedes. Em um determinado momento, tenho que fugir de lá. Ignoro o motivo, apenas tenho a certeza que devo sair daquele hotel o mais rápido possível. Na fuga encontro uma caixa e, em seu interior, um livro: tem encadernação artesanal e muitas páginas marcadas pelo tempo. De repente, me vejo rodeado de muitíssimos outros livros, e tenho que carregar a todos; como são muitos, desisto da tarefa que atrapalharia minha fuga (pois precisava dali fugir, mesmo não ficando claro o motivo) e pego apenas o livro velho que encontrei dentro da caixa. Caminho apressado pelo largos corredores do hotel antigo, que vão ficando mais e mais labirínticos. E sem me recordar de detalhes percebo que carrego, além do livro, um pesado porrete de ferro, e que ao meu lado também corre agora uma pequena menina japonesa aleijada. Chego a uma sala apertada e vazia, aperto o botão de uma máquina estranha e uma quantidade absurda de balas de hortelã são despejadas no chão.Entro em um elevador carregando o livro, o porrete e algumas balas. Aperto o botão para subir para um andar superior, não me recordo qual. No canto do elevador, me observando, a Daniela Cicarelli.

Pergunta: se eu estava fugindo, por que então subi mais andares? 

5.12.2010

Kali


Essa noite sonhei com Kali e ela agitava seus muitos braços enquanto dizia coisas que eu não entendia. Talvez falasse em devanagari, talvez na estranha língua dos deuses, que não nos permitem conhecer aquilo que são. Só sei que acordei cuspindo sangue e penso em Kali o tempo todo.

9.23.2008

Da sutileza de certos desejos

Não sabia como tudo aquilo começara mas de repente viu-se metido dentro do bolso de uma calça. Acuava-lhe um muro feito de jeans escuro, o corpo levemente espremido em tão diminuto espaço, os desesperados bracinhos empurrando a parede-tecido, enquanto esperneava desajeitado para iniciar a escalada e descobrir do bolso de quem se tratava. Os dedinhos-grãos-de-arroz agarravam com firmeza a borda do bolso, fez força incrível, e a minúscula cabeça eleva-se lentamente daquela curiosa toca, mostrando ao mundo olhinhos medrosos que espantados miram a tudo maravilhados, aturdidos, quase lacrimando, pontinhos verdes aqueles olhos arregalados num rosto lívido-leitoso.
E via um mundo enorme de coisas enormes que se espalha sem fim para todos os lados. Carros do tamanho de caminhões, caminhões do tamanho de prédios, prédios que não cabem nas ínfimas medidas de M., que forçado por fortuitas forças passeava pela cidade naquele bolso anônimo tomado por um sentimento de confusão.
É como se agora cronópio fosse mas, disso tinha certeza, não era um personagem, e havia mil lembranças que o abasteciam com provas muitas. Era um homem, oras bolas, e não aquilo, curiosa micromutação cujas razões desconhecia. E enquanto a perplexidade perante seu novo estado atormentava-lhe o espírito, M. continuava com a cabecinha para fora do bolso, atento ao mundo enorme que com seus olhos-pontinhos via, tremendo de medo quando um novo transeunte passava perto de sua morada-prisão: desagradava-lhe a idéia de após uma desajeitada trombada, destas que na Paulista ocorrem aos montes, sucumbisse tal como inseto esmagado, a manchar com uma pasta de sangue e ossinhos partidos a calça que o carregava cativo. Era preciso sair dali, ir embora daquela cela-tecido. Curvou o pescocinho para baixo, óculopercorrendo o trajeto que no bolso começava e ia até a barra da calça. A uma altura daquelas, pular seria um suicídio. Mas ali permanecer também seria, e embora não tenhamos notícias de casos de encolhimentos súbitos como o de M., não é possível que alguém receba com simpatia um homem de cinco centímetros no bolso da calça. O previsível gesto de boas-vindas é um grito acompanhado de uma mão nervosa dando tapas naquela coisa sem nome que ali apareceu; talvez, controlando o medo inicial, o proprietário do bolso quisesse inspecionar a curiosa coisinha e ter certeza de que seus olhos não se tinham colocado em engano; traria para perto do rosto aquela criatura diminuta que se debate agitada, então capturada por dedos em pinça; ainda mais assustado o observador do que o observado, só minutos depois dessa tortura visual decidir-se-ia a fazer algo, por exemplo guardar o monstrinho em um pote para exibir aos amigos. Se fosse ainda mais vulgar, esqueceria as leituras de Debord e investiria no espetáculo, expondo o seu achado em noite bizarra no Gran Rex. Os donos da casa hábeis seriam em alimentar no público o interesse para ver a prova viva-vivíssima de que Cortázar falava sério, en esta noche el Gran Rex hará Corrientes brillar aún más con la primera presentación de catala nunca vista por ojos humanos, bailada por un auténtico cronopio Seria obrigado a sapatear e balançar o débil corpinho a noite toda, sob ameaças de um mata-moscas bem seguro nas mãos do dono do bolso, que seria seu algoz ou empresário, palavras sinônimas. Vendo por este lado, a trombada fatal com um transeunte mostra-se uma alternativa menos sofrida, bastaria um encontrão para a rápida morte, como um atropelamento de um cão por um ônibus cheio. Torna-se-ia a citada mancha de sangue e ossinhos partidos, uma meleca rubra, uma coisinha à-toa que não se sabe de onde veio, apenas está ali, sujando e sendo impertinente.
É importante o leitor saber que no momento em que olhou do alto de seu bolso-prisão, M. pode ver os pés de quem o levava clandestino consigo - pés que calçavam sapatos femininos, delicados sapatos femininos. Isso o deixou mais contente, afinal partilhar da intimidade de um bolso de mulher é mais agradável do que fazê-lo em qualquer outro bolso; ressalva apenas para a ingenuidade de M., já que o uso de sapatos femininos, nos tempos atuais, não é exatamente uma exclusividade das fêmeas. E a este pensamento estranho, o julgar-mais-agradável-um-bolso-de-mulher, deve ser creditado unicamente ao irreparável espírito conquistador de M., sempre pronto a arremessar-se em aventuras, mesmo as mais irresponsáveis, aquelas que exigem sacrifícios, longas esperas por longos invernos, cartas molhadas de lágrimas e todos os ridículos expedientes dos que insistem em amar, mesmo que abundem os exemplos a comprovar o quão ingrato tem sido o Amor com aqueles que o servem. A fuga do bolso-prisão, de repente, tornara-se um plano esquecido, antigo; a curiosidade, mãe do Progresso, mas também da Desgraça, em M. acendia um absurdo desejo; e se segundos antes queria ir embora dali, agora tencionava saber quem era aquela que o carregava consigo. E ainda apoiando-se na borda do bolso, virou o pescocinho para cima. Mas impossível definir desse modo o rosto dela: o leitor que, ao andar, mire o bolso da própria calça e imagine a visão que dali se tem. O que conseguiu apenas foi vislumbrar uns fios de cabelos dourados, um pedacinho do queixo, as sinuosas curvas dos seios que despertavam mais atenção do que qualquer cabelo ou queixo, previsíveis os homens e suas vontades, mesmo quando reduzidos a cinco centímetros. Seja como for, sentiu-se mais tranqüilo, e deixou-se ficar naquele bolso, com os olhos-pontinhos ainda mais atentos, sem temer os transeuntes, os barulhos sem fim, as portas das lojas, as árvores, o caos da cidade em suas horas luminosas. Quantas mil possibilidades de penetrar no universo secreto de uma mulher teria com aquela sua nova nano-estatura. No momento oportuno escaparia de seu cela-tecido, vasculharia as bolsas dela, aprenderia seus segredos, comeria as balas deixadas ali por precaução. Organizaria as moedas, preciosos discos de metal, e passaria muitas horas lustrando-as, magníficas seriam as moedas dela. A recompensa seria os passeios clandestinos em um bolso da calça, a comunhão secreta dos enigmas femininos, desvendados um a um por uma cautelosa invasão de privacidade, feita de artimanhas e jogos, sem tréguas. Deixaria bilhetinhos secretos, pequenos poemas de cronópio apaixonado, entre as cédulas da carteira dela. Cheia de surpresa ela sorriria, ainda sem saber o que pensar a respeito daqueles papeizinhos marotos que se multiplicavam, e ainda mais intrigada com as rosas vermelhas colocadas vez por outra nos bolsos de suas roupas preferidas.
**********
Assistiam a um filme na sala. Ela acabou dormindo sobre as coxas de M. Passeou as mãos sobre os lisos cabelos dourados dela. Com cuidado, a carregou adormecida para o quarto. Colocou-a na cama, sentando-se ao lado. Ela despertou, olhos confusos.
- O filme acabou?
- Sim. Você dormiu. Te trouxe pra cá.
Ela estendeu os braços, puxando-o lentamente para si. M. curvou-se. Ela falou baixinho:
- Por que não me acordou?
- Não quis, você dormia tão profundamente.
Beijou-lhe o rosto, bocejando sonolenta.
- Teve uma hora que você riu
- Ahn?
- Quando você dormia. Você riu. Lembra?
- Não muito bem... Sonhei com várias coisas, inclusive você.
- O que eu fazia?
- Não sei bem, mas tinha algo a ver com minha calça.
- Gosto delas, principalmente quando não estão em você.
Ela riu do gracejo cafajeste, dando-lhe um tapinha de reprovação no braço. Disse a M.:
- Se eu pudesse, te carregava sempre comigo, como um chaveiro.

1.03.2008

O sonho de uma mulher desesperada

Deitada sobre colchas amarrotadas ela dorme. O quarto é o de sempre, o quarto dos brinquedos de outrora, o quarto com as cores do aconchego familiar, o universal quarto que nos sempre vem à mente quando sentimos o cheiro de lençóis limpos. E tudo nele é feminino e delicado, permita o leitor que eu dê um palpite e chame aquele quarto de mimoso, o adjetivo cabe perfeitamente, basta percorrer com o olhar de uma parede até a outra para perceber isso: os móveis leves, de cores suaves, aqui um detalhe de rosa, ali um ursinho, logo embaixo a bonequinha preferida, agora deixada aos cuidados do pó e da Memória, uma caixinha para os brincos, ao lado pulseiras, uma negra e brilhante corrente de Swarovski, perfumes em frascos detalhados, uns livros descansando em uma prateleira pequena, no lado oposto o guarda-roupa, ali estão roupas de todas as fases, há até oculto os sapatinhos dela ainda um bebê de meses, bonita lembrança do passado, mais ainda se pensarmos o quão pequenos eram os pezinhos de S., não que hoje ainda não sejam, mas mesmo assim a comparação entre o ontem e o agora causa um certo espanto.

(“Saiba você pois que há mulheres que conseguem ser maravilhosas até mesmo quando um certo desleixo as afeta. Elas conseguem provocar suspiros de paixão não pelo salto alto ou pela ousadia de um decote, mas principalmente pela insolência de um cabelo despenteado, pelo olhar de nojo endereçado a tudo, pela petulância ao acender um cigarro e baforar a fumaça como quem diz ‘eu simplesmente não suporto nenhum de vocês’. Todo homem se depara com uma mulher dessas, e acredite, elas sabem como proporcionar muita diversão.”)

E delicado não é apenas o quarto, mas também a maneira sem cuidados dela ali deitar Olhando-a assim, enquanto ela dorme, com o corpo desajeitado e semicoberto por fino lençol, percebe-se o seu sono tranqüilo, a frieza de um sono que não se atormenta por nada – ou melhor, a aparência de um sono que não se atormenta por nada. Pois se possível fosse vasculhar os sonhos de outrem, a S. atribuiríamos um sono cheio de tormentos, um sono que não descansa o corpo mas o mutila por mil imagens que se repetem, por mil vibrações oníricas que o abalam.

(“A minha eu conheci faz alguns anos. Pois bem: tudo que ela me trouxe, no dia em que foi embora a desgraçada levou em dobro. Eu podia ter lá meus problemas, todo mundo tem, mas sério, eu ainda conseguia manter uma certa dignidade; sempre achei os românticos idiotas, sempre achei os que sofriam por amor dignos de pena, mas graças a ela eu me vi perdido. E eu acho que para sempre.”)

Ela suspira mais fundo, lentamente começa a se movimentar na cama, até que se vira por completo e deita de bruços, todo o movimento realizado como se cada músculo pesasse toneladas, e mesmo assim é inegável a harmonia toda deste balé de adormecida. Mas neste momento, onde o mexer-se na cama parece fruto da arte, não há nada de equilíbrio nos sonhos de S.: ela está correndo, parece ser em uma floresta, está nua, suja e apavorada, há pessoas acampadas em barracas próximas, com horrendas deformidades, ela grita por socorro mas ninguém a ajuda, apenas a observam e ficam a rir, e ela continua a correr. Qual o significado deste sonho, S. perguntou a si quando o teve pela primeira vez, não encontrou resposta e continuou sonhando. São quatro meses e as mesmas imagens se repetem, existe mensagens escondidas nele, uma amiga com tendências esotéricas sentenciou, mas isso não foi o bastante para que o oculto sentido se manifestasse e muito menos para que, na noite seguinte, o tormento de S. não se repetisse.

(“Sabe o que eu desejei então? Que a maldita jamais tivesse paz. Isso mesmo. Paz, você nunca terá, eu disse. Na cara dela, no dia que ela foi embora. Falei isso e ri, ri de satisfação, ri inebriado de vingança, entorpecido de vingança. Nunca mais a vi, desde então. Melhor assim.”)

Agora ela não se mexe, mas solta um gemido. Nas pessoas que dormem, um gemido significa desejo de despertar motivado pelo medo daquilo que se sonha. S. sente medo, mas não consegue acordar, e segue correndo desesperada em seu sonho, ainda na floresta, mas agora passando no meio das barracas, que se multiplicaram, e os aleijados mal-cheirosos riem ainda mais alto, e para onde quer que ela olhe só há floresta e aleijados que riem sem parar, e S. geme ainda mais alto, principalmente quando percebe que as centenas de aleijados que a cercam têm o mesmo rosto, rosto de um homem que ela não consegue distinguir bem, mas que lhe é familiar, no mundo dos sonhos não há limites precisos para nada, e podemos desconfiar de S. quanto a esta familiaridade, já que mesmo acordado cometemos equívocos e tomamos por x o que na verdade é y. De qualquer modo, a impressão dos rostos iguais é profunda o suficiente para que os gemidos fiquem longos, doloridos. Estranho que gemidos ocorram tanto em momentos de medo e dor quanto de prazer, isso faz supor que até mesmo as imagens horríveis que S. suporta sejam no fundo motivos de delícia, mesmo que inconfessáveis. A cabecinha se agita um pouco, como se quisesse enfim se levantar e despertar, mas isso ainda não ocorre e tudo que vemos é um novo movimento do que chamamos logo antes de balé, já não há nada da graça de outrora, mas um alvoroçado mudar de posição, neste ponto a delicadeza de S. diminui e fica presente a mulher-voraz, a mulher que no auge do clímax grita e se movimenta em espasmos, não que S. esteja tendo um orgasmo, mas as pernas se movimentando rápido sugerem o gozo.

(“Hoje eu acho que deveria ter ido além. Sabe, uns tapas bem dados pra ela saber o que deve e o que não deve fazer com um homem que a ama. Mas eu só a peguei pelo braço e dei uns belos chacoalhões, maldizendo cada segundo da vida dela. Talvez dar os tapas não mudasse nada, ela iria embora uma hora ou outra mesmo, mas eu ficaria muito mais satisfeito. Só sei que, quando a agarrei e gritei, eu pude ver o medo que ela tinha de mim. Só aí eu me dei conta que já não havia mais nenhum amor nela, que nenhum esforço de reconquista seria possível. O melhor era deixá-la ir, já que na verdade há muito tempo ela não estava mais perto de mim.”)

No sonho, ela continua correndo, e há milhares de aleijados sufocando-a, ela pula por cima deles, dos que se arrastam, mas há outros que sustentados por pernas ossificadas se esfregam nela, e riem sem parar, ela cai e levanta, mãos tentam segurá-la, nem as lágrimas comovem os atrevidos, na verdade é isso que os deve excitar. Um dos monstros a pega pelo braço, arrasta-a para perto do rosto contorcido e grita, S. então finalmente distingue a face tão familiar, ela não pode acreditar no que enfim vê, e seu choro é intenso e desesperado, as mãozinhas agarram os lençóis, puxam-no para si, já está com as costas empapadas de suor, e tão presente é o medo que de seus olhos vemos escorrer lágrimas, balbucia algumas palavras, mas não é possível entender nada, entrecortada que estava a fala pelo gemido e pelo sono. Logo em seguida ela desperta, repletos de lágrimas os olhos, o choro que ainda não terminou, a expressão de confusão e medo nada se assemelha ao delicado semblante de antes. Já sabia que sonharia aquilo tudo novamente, exatamente igual, no dia seguinte. E a surpresa de reconhecer o rosto dele naquelas faces e corpos abomináveis a tomava por completo e produzia uma sensação desagradável. Pois era estranho logo ele assim surgir, como parte deste pesadelo tão incomum, e ao mesmo tempo tão real, mesmo que absolutamente improvável. Não conseguiu voltar a dormir e chegou a temer que não voltasse nunca mais.