Mostrando postagens com marcador literatura brasileira. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador literatura brasileira. Mostrar todas as postagens

11.15.2010

Glauco Mattoso

Passei o dia preparando as resenhas para o anuário de fanzines da UGRA e uma das leituras mais interessantes que encontrei foi o zine Spell Work. Especialmente, uma entrevista com o Glauco Mattoso, esse degenerado poeta amante de pés. Reproduzo a seguir um dos trechos da entrevista e deixo o convite para que vocês conheçam esse zine.

3.10.2010

Trecho de um diário de Lúcio Cardoso


Desde a leitura que fiz de Crônica da casa assassinada -talvez o livro mais injustiçado da literatura brasileira- o nome de Lúcio Cardoso figura na minha lista dos escritores que conseguiram fazer de seus textos uma espécie de organismo vivo, um texto que vibra e pulsa em cada novo período.

Relendo anotações velhas antes de ir para a cama, encontrei esse trecho que transcrevi de seu diário, obra lançada em 1970 pela José Olympio. Os diários são sempre fabulosos: isentos dos caprichos estilísticos que muitas vezes afogam as explosões do sentimento, suavemente transmitem uma autenticidade que o romancista se esforça para obter. As personae são abolidas, e o escritor não tem motivos para esconder os recalques, as taras e as imprecisões que os editores observariam com severidade. Fluem os ódios e os abismos, a intimidade é devassada, o desejo voyerista do leitor farta-se aos montes. E no trecho que compartilho com vocês, vemos um Lúcio algo profético, que vê na Tijuca dos anos 1960 um pesadelo hedonista que estava apenas começando, sintomas da Kali-yuga que hoje vivenciamos em estado hipertrofiado:

"Vou com Fregolente à Barra da Tijuca, onde durante algum tempo, infeliz e sem repouso, viajo através de uma multidão feia, triste e sem nenhuma dúvida profundamente desgraçada. Só a desgraça alimenta uma tal sede de divertimento. Aliás, é sempre este o aspecto de um aglomerado que se reúne à procura de esquecimento: os limites humanos surgem com avassaladora nitidez e o rebanho festivo adquire um aspecto confrangedor, de coisa abandonada e amaldiçoada. Não é precisamente nesses minutos, nesses e não em outros, que ousamos desejar para toda essa gente uma catástrofe comum, uma guerra, uma inundação ou até mesmo um ataque coletivo de insânia ou de crueldade - qualquer coisa enfim que agite essas carnes moles que se estendem ao sol, domesticadas pela preguiça, pelo álcool e por uma sensualidade grosseira e sem profundidade?

Talvez o amanhã pertença a gente dessa espécie - talvez sejam eles os coordenadores do mundo em que começamos a viver. Mas são tão melancólicos e tão estritamente confinados à sua miséria, que possivelmente estão muito longe de perceber o que se passa. O Deus antigo, o Deus do terror e das hecatombes, bem poderia agora esparzir esse sangue bruto ao longo das areias mornas - bem poderia brandir um raio ou soprar uma rajada morna de demência - qualquer coisa finalmente que fizesse sangrar essas almas cativas, tornando-as acordadas e viris. Há uma determinada sonolência da alma, que só o castigo e o medo conseguem afastar. Os ferros do tempo dos escravos ou as tenazes ardentes da Inquisição, tudo serviria para fazer vir à tona das faces uma sombra de sentimento ou de espírito. Mas é inútil sonhar, eles apenas vivem uma agonia sem sentido, enquanto aconchegam ao sol brando, sem amor e sem piedade, as velhas carnes mal-tratadas.

(Inútil conter, é muito forte o sopro de impiedade que me atravessa. Ó carnes abastadas e domingueiras! Custa a crer que tenha havido um mistério da Encarnação, e que um Deus autêntico tenha descido a este mundo para redimir tal rebotalho... Sim, as revoluções, que são exteriores, podem lidar com isto - mas a religião, que fará desta vontade assassinada?) "

Em tempo: Lúcio Cardoso era um católico. Por católico não entenda a "religião" de Padres Marcelos ou outros alucinados quaisquer. Muito menos busque pontos de contato com a degeneração evangélica, que nada mais que é que um culto do desespero e da moral de rebanho em uma configuração ideal. O catolicismo de Lúcio se explica por um forte sentimento de antimodernidade, por uma rejeição do materialismo filosófico e por uma atitude trágica perante a vida. Sobre esse assunto, qualquer coisa que eu diga seria desnecessária, já que nesse artigo tudo está dito com muito mais propriedade: http://www.filologia.org.br/soletras/8/02.htm

1.22.2010

Mutarelli volta a desenhar no Estadão

Imagem retirada de "Transubstanciação"

Amanhã, sexta-feira dia 22 de janeiro de 2010, é data onde as preces de muitos fãs de Lourenço Mutarelli serão atendidas: estreiará amanhã, no Caderno 2 do Estado de São Paulo, a série Ensaio Sobre a Bobeira, "uma experiência gráfica cheia de nonsense e estranhamento, um tipo de comentário visual sobre a natureza humana".

Desde 2005 Mutarelli não lançava nenhum trabalho gráfico e a expectativa em torno da volta aos traços é grande. Eu também compartilho da expectativa, mas com uma leve prudência. Apesar dos últimos romances mutarellescos (e em especial "A arte de produzir efeito sem causa") não deverem nada aos quadrinhos no que concerne ao conteúdo, sem concessões e facilidades para o leitor, um retorno aos desenhos comporta riscos. Na entrevista concedida ao Estadão, Mutarelli enfatiza que os desenhos serão mais experimentais e com "muito acrílico": saber disso é importante, principalmente para as velhas viúvas dos anos 90, que conheceram o velho Muta nas páginas do Transubstanciação.

Abaixo segue a entrevista que está hoje no Estadão. Se você quiser ler o original, é só clicar.

Há quanto tempo você não fazia quadrinhos?
Faz tempo, não me lembro ao certo. Vamos ver... Tá aqui... 2005. Foi o último que desenhei, Caixa de Areia, saiu pela Devir Editora. Eu tentei parar de desenhar para reformatar o cérebro, para ver se mudava alguma coisa.

Mas nessa época você já escrevia prosa, não?
Tava escrevendo, já tinha publicado algumas coisas. Aí eu quis tentar parar de desenhar. Parei um ano e alguma coisa, nenhum rabisco, nada. Aí comecei a fazer os gráficos para o livro A Arte de Produzir Um Efeito Sem Causa. Acho que não estava mais aguentando ficar sem desenhar e comecei a criar uns gráficos. Em 2007, fiz uma viagem e comecei a usar uns cadernos de esboços Moleskine.

Quantos cadernos você já desenhou?
Tenho uns 22 cadernos. São estudos, começou com uma mistura de texto e imagem e agora passou à coisa somente visual. Tem uns estudos da nova história que estou começando, e umas coisas que estou fazendo para o Estado. Batizei de Ensaio Sobre a Bobeira, e a série chama Moças com Bifes Sobre o Rosto. São coisas assim, pin-ups, coisas nonsense. Tenho usado muito acrílico agora. E é meio nessa linha o que estou fazendo para o Estado, coisas mais experimentais.

Você consegue definir precisamente, nesses cadernos, onde há um trabalho que não tem intenção de ser prosa e outro que é só gráfico?
Aqui eu consigo uma coisa que é um meio-termo. Às vezes faço um desenho e, a partir do desenho, crio algum diálogo, algum texto, que é um processo inverso de você fazer um roteiro de quadrinhos. Você cria uma imagem e vê o que essa imagem quer dizer, complementa ela com alguma frase. A minha ideia com esses cadernos é uma experimentação total, tentar chegar a alguma coisa antes de filtrar, tanto técnica - usando material que limite um pouco o meu domínio técnico - quanto na parte criativa. E faço e viro a página e vou indo, e depois de um tempo vou olhar o que eu gerei.

O esboço tem alguma vantagem sobre a produção em série, para um álbum em quadrinhos, por exemplo?
Eu acho que é um exercício. O problema é que acabo gostando. No estágio em que estou, que é o estágio natural de qualquer pessoa que trabalha muito com desenho durante muito tempo, é você querer voltar ao espontâneo, à liberdade. E quando é um estudo, consigo chegar a isso bem, mas se eu diagramar uma página para tentar fazer essa coisa espontânea, ela não vem. Só de diagramar, só de saber que tem um propósito, isso já começa a endurecer o traço e bloquear essa liberdade criativa. Por isso que fazendo assim. A ideia do Ensaio Sobre a Bobeira justifica o que vier, sem muita elaboração, e tendo esse prazer de... nem sei o que quer dizer, não é pensado, não tem uma mensagem.

Você faz alguma leitura psicanalítica daquilo?
Com o tempo eu acho que algumas coisas se encaixam. Quando faço, acho que é tudo fábula, tudo ficcional, mas às vezes passam meses, um ano, e cai a ficha de alguma coisa interna.

Você foi dos quadrinhos para o cinema e para o teatro. Quando você viu O Natimorto materializado no teatro, ficou satisfeito?
O Natimorto foi um dos meus trabalhos muito febris, tinha uma ideia conceitual e fui em frente. Eu tinha um estudo sobre o tarô, que era para casar com as imagens, mas a estrutura da história foi se formando. A coisa de ver isso adaptado para o teatro, o grande prazer disso é que você tem um retorno imediato do que você fez. Mario Bortolotto (diretor da montagem) foi muito fiel ao original, não deixava os atores colocarem nem um caco, mudarem nem uma vírgula. O que estava escrito era o que era dito. Eu vi muitas vezes a peça e estar ali, misturado com a plateia, tinha uma resposta imediata a alguns diálogos, algumas brincadeiras. Esse retorno é muito interessante de se sentir.

A sua experiência como ator no cinema, em O Natimorto, parece que você não gostou muito...
Eu gostei muito de participar do projeto, de acompanhar o processo de filmagem, ver o filme pronto. Mas minha mulher tinha falado: na hora que o filme sair, você não vai estar pronto para isso. E a hora que o filme passa, de fato, você fica muito exposto, você ouve muita coisa. Não foi agradável estar ali perto quando o filme foi passado... Adoro o trabalho do Paulo Machline, que adaptou para o cinema, e que é completamente diferente do trabalho do Mario Bortolotto, são visões muito distintas de um mesmo texto, mas é muito difícil você se ver sem o olhar crítico.

O quadrinho é uma atividade muito solitária. E você fez isso durante décadas...
Durante décadas. Algumas pessoas dizem isso, e parece brincadeira, mas ou você faz quadrinhos ou você vive. Quando eu fiz O Cheiro do Ralo, e ele acabou sendo adaptado, passei a viver e a escrever de forma compulsiva. Eu tinha poucas horas e passei a viver muito. Só fazer besteira, mas esse é o lado bom. E agora voltando aos quadrinhos, voltando a desenhar. Tem de ter uma disciplina, tem de baixar a cabeça e desenhar, não tem jeito.

É muita pesquisa, não? Mas a literatura também envolve bastante pesquisa, não?
É diferente. Se bem que a literatura, seus jogos de palavras, suas associações de ideias vão se limitando, você precisa se reciclar, pesquisar alguma coisa que é diferente para me contaminar daquele universo.

Por que você resolveu desenhar justamente para o meio jornal?
Vou te responder sinceramente: quando comecei a desenhar, eu tentei publicar em jornal e não consegui. Não conseguia desenvolver, meu trabalho tem uma estranheza que não cabia muito. Desisti e nunca mais quis, nunca mais tive vontade. Mas o convite do Estado pesou muito, é um jornal que eu respeito e admiro. Hoje em dia eu tenho uma liberdade, construí um nome que me permite isso. E o fato de ter essa liberdade num lugar que eu respeito, e a possibilidade de trazer gente nova. O que me incomoda às vezes nas tiras, e hoje até que está mudando isso, é que havia um monopólio de alguns, e não se abre espaço para o pessoal novo. E acho que tem de haver um lugar onde os novos possam mostrar seu trabalho. Tem de vir a molecada, esse pessoal tem de vir. Quando comecei, era difícil e havia um monte de revistas em bancas. Hoje em dia não tem revista em banca, e se não houver espaço não tem como desenvolver.

E como você definiria sua tira 'Ensaio Sobre a Bobeira'?
Tem um personagem, que é o Bob, uma brincadeira com o bobo. São figuras de máscaras, e ele geralmente responde a perguntas estranhas que me ocorrem. É uma piada que está sendo contada para mim naquele momento que estou fazendo. Quando ando pela rua e me ocorre alguma eu anoto. E tem esse ensaio, uma homenagem ao Zéfiro, essas mulheres com bifes sobre o rosto, que é só para eu ser perseguido pelas feministas (risos).

11.04.2009

"Miguel e os demônios", do Mutarelli

Este mês faz um ano que li "A arte de produzir efeito sem causa", o primeiro romance de Mutarelli lançado pela Companhia das Letras. Lembro que ganhei o livro na sexta-feira à noite, durante minha festa de aniversário; a festa acabou, todos foram embora; antes de ir para a cama, lá por volta das 2h00 da manhã, peguei o livro e só o larguei pela manhã, varando a madrugada na leitura, até chegar ao final. Foi um de meus melhores aniversários.

Na última sexta-feira comprei o novo romance do Mutarelli, "Miguel e os demônios, ou Nas delícias da desgraça". E da mesma forma que em seu último romance, as 115 páginas foram lidas em apenas algumas horas. Tem tudo: tortura, sexo sujo, pedofilia, satanismo (a constante presença das moscas ao longo do romance me parece ser uma alusão a Belzebu, demônio cujo nome significa "senhor das moscas") e coisas ainda mais bizarras. O estilo do velho Muta está, neste novo trabalho, mais direto, mais seco. Tentei ver arestas e sobras relendo algumas páginas antes de começar a escrever este post - mas nada encontrei. A precisão e a secura de seu estilo, burilados desde os tempos do insuperável "Transubstanciação" (e será sempre uma pena que ele não desenhe mais), parecem ter alcançado em "Miguel e os demônios" um patamar superior, com recursos narrativos que flertam com a linguagem do cinema, como no trecho:

- Pelo cheiro, o presunto está aí há uns três dias - diz Pedro,
Miguel concorda, com a cabeça. Examina o cadáver. Parece em transe. Pedro vai para a viatura e aciona a central pelo rádio.

Sépia.
Terreno baldio. Imagem borrada, luz difusa. Lembrança.
Um menino solitário brinca com um graveto. Miguel, menino. Detalhe da mão do menino erguendo o graveto para o céu. O graveto acompanha o percurso de aviões que passam. Esquadrilha da Fumaça. O menino tropeça em algo e cai. Percebe um cão vira-latas morto a seus pés. O menino se levanta e com o graveto cutuca, levemente, o cão.

- Miguel!
Miguel retorna do transe e percebe que faz o mesmo com a carcaça do homem. O plástico derretido encapa as mãos e a cabeça. (...)


Se isso é experimentalismo do Muta ou o romance foi composto pensando na telona pouco importa: o resultado é um texto que joga responsabilidades para o leitor. Forçosamente, o leitor recria as imagens sugeridas pelo texto, baseado em seu repertório imagético.

Daí é possível entender por que a Companhia das Letras chamou o novo livro de "antirromance" na contracapa. Confesso que ao ler "Neste antirromance policial do autor de O cheiro do ralo..." eu desconfiei de imediato do tom marqueteiro. Mas de certa forma pode-se dar o mérito ao texto do Muta pela mescla radical com a linguagem cinematográfica. Afinal hoje, apesar da decadência cultural como um todo, lê-se muito mais do que antes; e apesar disso, é inegável que vivemos em tempos intensamente visuais (a maioria esmagadora de meus amigos são designers ou de alguma forma ganham a vida trabalhando com imagens). Frente a isso, uma pergunta que eu ainda não respondi: um romance como "Miguel e os demônios", cuja leitura é também um exercício prático de criação de imagens (de imagens cinematográficas, vale lembrar) pode ser considerado um precursor da renovação da linguagem romanesca?

Ainda não tenho a resposta. Se você achar alguma, me conta. Enquanto isso, vá ler "Miguel e os demônios" e deixa de perder tempo com este blog. Fade.