12.14.2010

Carta número 2


O melhor das noites onde se perde o sono: ver o acúmulo lento, denso e inexorável de maus pensamentos, de rancores cheios de bile, de análises isentas de covardia que, nas horas luminosas, o espírito jamais conseguiria empreender.

12.11.2010

Maria Madalena


Recebi um postal belíssimo de uma amiga em estudos pelo Velho Mundo com uma reprodução da tela La Madeleine à la veilleuse (Madalena ao candelabro, ou luz de velas, em minha risível tradução). Ilustrando esse post, uma imagem da obra. O pintor é Georges de la Tour (1593-1652), um francês que, diferente do natural percurso dos artistas da época, não viajou para a Itália. Contudo, a influência de Caravaggio é notória nos efeitos de contraste claro/escuro.

Não entendo nada a respeito de artes plásticas e, ao lado do cinema, é um dos campos onde mais sinto falta de ter uma formação minimamente decente. Justamente por isso busco a sabedoria dos amigos que se dedicam ao estudo de tais artes. E o quadro de Georges de la Tour me chamou a atenção dias atrás, e qual não foi minha surpresa ao receber não só o postal com uma reprodução do quadro, como também com uma pequena "aula manuscrita" a respeito dele. Reproduzo abaixo o texto do postal:

Maria Madalena é normalmente reconhecida na arte católica por seus ícones: um pote de perfume (de quando lavou os pés de Cristo) e o seu longo cabelo. Interessante que somente o cabelo é o que vemos neste quadro e também não há nenhum indício de que se trata de uma santa (ausência de auréola), algo que foi usado por Caravaggio, os santos são mostrados como simples humanos para que os fiéis se sintam mais próximos do divino. Acredita-se que essa cena seria quando a santa parte ao exílio e se retira em uma gruta em St Baume, na França. 

Como vemos, pela presença de um chicote na sua mesa, ela é penitente. Ela se prepara para a morte. Os livros e a cruz de madeira são para nutrir sua alma. O crânio é um dos elementos tradicionais de uma natureza morta (vanité), também uma "invenção" de Caravaggio, que simboliza a temporalidade da vida. A vela também tem esse significado mas igualmente o de presença divina. 

No que diz respeito a luz, ele difere de Caravaggio por ter a luz que vem de dentro do quadro. Ela esculpe o corpo e põe em evidência as linhas simples (o que é muito moderno para a época) da composição. E não, ela não está grávida, é um código visual da época. Esta é a última das quatro Madalenas que George de la Tour fez, o que mostra a popularidade do tema na época. Também nos leva a pensar que esta seria a mais "bem feita" das quatro.

12.01.2010

Nos cumes do desespero



Uma das aquisições literárias mais agradáveis dos últimos tempos foi uma tradução espanhola de Pe culmile disperării, do Cioran.

Escrito quando o velho romeno tinha ainda vinte e dois anos, o livro é um murro após o outro. As sementes do projeto filosófico mais ignorado do século XX estão já todas ali, naqueles escritos plenos de impetuosidade e ódio do jovem insone que andava pelas ruelas de Sibil trocando confidências com prostitutas, bêbados e desgraçados de sorte ainda pior. Um pensamento que aposta na filosofia como sangue -e em tempos de homens covardes, de destruição de certezas, de esfacelamento de valores e da ressignificação de conceitos e papéis sociais o pensamento de Cioran serve como um convite à destruição e também apresenta uma ótica inovadora sobre os homens em geral.

Há muito o que ser dito sobre ele, mas pela hora que já vai adiantada, pelo cansaço que domina a mente e o corpo, dois trechos da leitura de hoje:

"Gosto do pensamento que conserva um sabor de sangue e carne, e à abstração vazia prefiro muito mais uma reflexão que se origine em um arrebatamento sensual ou em um desmoronamento nervoso."

"Que sucederia se o rosto humano expressasse com fidelidade o sofrimento interior, se todo o suplício interno se manifestasse na expressão? Poderíamos ainda conversar? Poderíamos trocar palavras sem ocultar o rosto com nossas mãos? A vida seria realmente impossível se a intensidade de nossos sentimentos pudesse ser lida em nossa cara."