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4.08.2017

Carta a Cioran


São Paulo, 8 de abril de 2017

Caro Cioran,

É raro escrever cartas hoje em dia, e ainda mais para os que estão mortos. Mas hoje é uma data especial, a noite já morreu (sic) e a madrugada está no seu ápice demoníaco, com o relógio a marcar exatas três horas da manhã. Deveria ser por volta dessa hora que você fazia seus passeios em Sibiu, caminhando por ruas vazias, comungando do silêncio que traz consigo paz apenas para os covardes – seres como tu e eu não vemos nada no silêncio, a não ser um convite irrecusável para pensamentos delirantes e inconsequentes. E quero aproveitar o silêncio dessa madrugada onde o sono não vem para a ti confessar algumas coisas. 

Hoje seria o seu aniversário de 106 anos. Sinceramente, eu nunca sequer te imaginei com uma vida tão longa. Acho que você também não gostaria de estar aqui hoje, nesse mundo de polêmicas virtuais que precisam estar ferrenhamente circunscritas a regras e fronteiras. Oscilando entre o sangue e a tolerância, como você uma vez disse (não com essas palavras, perdoe minha memória falha), a história dos homens só parece mesmo avançar no calor que emana do Caos: é na lista dos crimes dos Césares que vemos o motor que anima o Tempo girar com força redobrada. “Safe spaces” (perdoe o anglicismo, mas isso é normal atualmente, os idiomas todos foram estuprados pela língua inglesa) e polêmicas que não podem exceder seus limites são exatamente o contrário do que esse mundo precisa. É como se a História fosse um ator ridiculamente tímido, que precisa ser empurrado para o palco, que não consegue ficar face a face com suas verdades - como você disse, “o homem prefere apodrecer no medo do que enfrentar a angústia de ser ele mesmo” (isso eu cito de cabeça de um de seus livros, e agora tenho certeza que citei corretamente). Hoje eu não sei dizer se vivemos na calmaria, na febre ou nos instantes que antecedem a passagem para a epilepsia, mas estou convicto que, se você resolvesse escrever as coisas que escreveu em uma fan page do Facebook, bastante provável que sua aventura virtual não duraria nem cinco minutos, seja por tédio (você sempre me pareceu um ranzinza), seja por legiões de pessoas que iriam te xingar de todas as formas possívei e pedir a algum poder qualquer (privado ou público, não importa: o que vale é deixar disponível aos insetos alguma forma de denunciar os outros nessa era onde todos são panópticos de todos) para tirar você e suas infantilidades do ar.

Enfim, você não teria nada o que fazer aqui.

Não leve isso demasiado a sério: conheço muitos que gostam das coisas que você escreveu. Eu sei bem a opinião que você nutriu quando jovem sobre a avidez das pessoas em ler os “autores tristes”: as pessoas procuram esses textos pois estes as “poupam de sofrer ou lhes dão a ilusão do sofrimento” (e eu acho que muitos que o lêem o consideram um homem irremediavelmente triste, embora eu veja mais petulância do que tristeza, além de muitas doses de humor, nas suas obras: certamente alguns trechos foram escritos em meio a risadinhas de satisfação). Busca-se sangue e lágrimas nas palavras do outro para, medindo-o a partir de nossa própria mediocridade, encontrar um destino singular, que possa ser colocado em uma espécie de pedestal. “A admiração da plebe é plena de sadismo”, você disse, e eu não poderia concordar mais. Mesmo sabendo dessa sua opinião tão negativa sobre seus leitores, eu segui lendo tudo o que você escreveu, e isso foi ao mesmo tempo uma desgraça irremediável e uma fagulha fatal que deu início a uma crise libertadora que jamais cessou.

Digo desgraça pois – e você sabe disso, não negue – a inconsciência é sempre a mais virginal e benfazeja das dádivas que um homem pode ter. Seria outro eu vivendo agora se, naquele momento da primeira desilusão amorosa, aquela que você fala que precisa ser vivenciada na juventude para que possa se amar pela primeira e única vez na vida, se naquele momento eu não tivesse lido seus elogios ao isolamento e à insônia. Talvez eu tivesse me casado mais cedo, talvez eu tivesse acumulado menos livros, talvez até mesmo ficado rico? Questões todas absolutamente irrelevantes: o absurdo rege a vida e nela eu só posso me deliciar com as coisas que não sei. Enfim, com as leituras de seus livros eu fui mergulhando em um lodaçal de questionamentos e pensamentos horrorosos que foram experimentados no limite da exaustão física. Ao mesmo tempo fonte de admiração e de inspiração, seus textos passaram de faíscas para o elemento combustor que mantinha destruidoramente selvagens as chamas da transfiguração.

Imitando você, busquei refúgio na escrita. Derramava-se em textos sem fim como forma de fuga, mas também como um exercício de investigação dos meus estados internos, explorando todas as contradições em uma exasperante ebulição de ódio, desespero e caos. Foi inspirado em ti que neguei a todos os ideais, pisoteando-os como devem ser pisoteados. Minhas delícias estavam naqueles devaneios onde “ninguém mais necessitasse da ilusão dos ideais, em que toda satisfação imediata da vida e toda resignação ilusória se tornariam impossíveis, em que todos os limites da vida normal rebentariam definitivamente” – e olha aí, nisso até mesmo você tinha um sonho, um sonho! Tirânico e cheio de soberba, certamente, mas ainda sim um sonho de disseminar a desilusão dos ideais como uma praga por toda a humanidade. Não se tratava de agir como Prometeu (deus que você odiava e que me ensinaste também a odiar), levando aos ignorantes a Boa Nova da consciência – que, longe da felicidade, trouxe para os homens somente os horrores da História e as torturas do espírito – mas sim de restituí-los ao nosso estado primordial, ao que éramos antes de entrar na humilhação do Tempo. “Os homens escutavam, que necessidade tinham de compreender?”, você perguntou, e isso se esfrega na nossa cara até hoje, castigando sem piedade, e assim até o Fim dos Tempos.

Foi na sua fonte também que alimentei meu ódio ao Cristianismo, essa religião feita da vingança e da inveja dos escravos e dos sofredores. Também abdiquei de tratar de minhas dores quando li seu relato sobre a velha que encontraste no hospital, queixando-se de suas enfermidades como se delas dependessem o Universo, como se a nossa existência tivesse alguma espécie de dignidade fundamental. E igualmente ambicionei, nos mais altos cumes do desespero, a sonhar com uma Elêusis de corações desiludidos, com um Mistério claro, sem deuses e sem as veemências da ilusão. Iniciados nos ritos secretos do Nada através de seus livros, os domingos todos se tornaram expressões circulares do arquetípico Domingo da Vida, o símbolo do tédio que sufoca os homens saudáveis, isto é, os animais. Não tenho hoje, assim como você, nenhum gosto em existir em tempos tão irremediavelmente medíocres. Só posso viver no início ou no fim do mundo. No caos primordial ou nos momentos finais do Apocalipse. Contemporâneo dos primeiros meteoros ou então vendo o espetáculo da Criação resfriar até tornar-se um astro frio e solenemente silencioso. 

E dentre todos os aprendizados que tu me proporcionaste, o mais valioso foi transformar cada ideia em uma obsessão. Só quando o pensamento sangra, quando se debate como fera enlouquecida e deixa atrás de si um rastro de grandiosidade e devastação, só quando chega a esse nível começo a levar uma ideia a sério. O comedimento e o bom senso passaram a me causar ânsias de vômitos. Eu imagino que você, quando estava ali em Paris reescrevendo pela terceira vez o Breviário, também experimentou e muitas vezes esse mesmo nojo pelos parisienses arrumadinhos que encontrava em suas caminhadas. Chegou a maltratar algum deles? Isso jamais saberei.  Você morreu há quase 22 anos e certamente nem lerá essa carta. E hoje, 8 de abril, dia de seu nascimento, onde passei a madrugada em uma espécie de rito necromântico, confessando a ti minhas opiniões e experiências a respeito de sua obra, de longe uma das mais avassaladoras tempestades do pensamento que o século XX nos legou, hoje senti – com uma força antes não experimentada – a dor que você expressou nessas palavras:

“De que serve ser conhecido se outrora não nos conheceu tal sábio ou tal louco, um Marco Aurélio ou um Nero? Não teremos existido nunca para tantos de nossos ídolos, nosso nome não terá perturbado nenhum dos séculos anteriores; que importam os que vêm depois? Que importa o futuro, essa metade do tempo, para quem adora a Eternidade?” 

Respeitosamente,

L.


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Emil Cioran nasceu em 1911, na Romênia, formando-se em Filosofia pela Universidade de Bucareste. Em 1937, mudou-se para a França, onde escreveu seus principais livros. Morreu em 1995, em Paris. Sua perturbadora obra, cuja densidade é tão alta quanto os vôos poéticos que marcam seu estilo, é um convite para o universo do niilismo nas suas mais extremas contradições e limites. Mestre da concisão e do aforismo, esse trecho do Breviário de Decomposição - considerado seu magnus opus - sintetiza o coração de sua filosofia:

“Queria semear a Dúvida até nas entranhas do globo, impregnar com ela toda a matéria, fazê-la reinar onde o espírito jamais penetrou e, antes de alcançar a medula dos seres vivos, sacudir a quietude das pedras, introduzir nelas a insegurança e os defeitos do coração. Arquiteto, teria construído um templo à Ruína; predicador, revelado a farsa da oração; rei, hasteado a bandeira da rebelião. Eu teria estimulado em toda parte a infidelidade a si mesmo, impedindo multidões de corromperem-se no podredouro das certezas."

2.08.2012

O trabalhador, por Frithjof Schuon



"Como definir a posição ou a qualidade do trabalhador moderno? Responderemos em primeiro lugar que o "mundo do trabalhador" é uma criação totalmente artificial, devida à máquina e à vulgarização científica que a esta se liga; dito de outro modo, a máquina cria infalivelmente o tipo humano artificial que é o "proletário" ou, antes, ela cria um "proletariado", pois se trata, em tal caso, essencialmente de uma coletividade quantitativa e não de uma "casta" natural, ou seja, que tivesse seu fundamento em determinada natureza individual. Se se pudesse suprimir as máquinas e reintroduzir o antigo artesanato, com todos os seus aspectos de arte e de dignidade, o "problema do trabalhador" deixaria de existir; isto vale mesmo para as funções puramente servis ou para os ofícios mais ou menos quantitativos, pela simples razão de que a máquina é inumana e anti-espiritual em si. A máquina mata, não somente a alma do trabalhador, mas a alma enquanto tal, portanto também a do explorador: o par explorador-trabalhador é inseparável do maquinismo, pois o artesanato impede esta alternativa grosseira por sua própria qualidade humana e espiritual. O universo maquinista é acima de tudo o triunfo da ferragem pesada e dissimulada; é a vitória do metal sobre a madeira, da matéria sobre o homem, da astúcia sobre a inteligência; expressões tais como "massa", "bloco", "choque", tão frequentes no vocabulário do homem industrializado, são totalmente significativas para um mundo que está mais perto dos insetos do que dos humanos. Não há nada de surpreendente no fato de que o "mundo do trabalhador", com sua psicologia "maquinista-cientificista-materialista" seja particularmente impermeável às realidades espirituais, pois ele pressupõe uma "realidade ambiente" totalmente artificial: ele exige máquinas, portanto metal, ruídos, forças ocultas e pérfidas, uma ambiência de pesadelo, do vaivém ininteligível, numa palavra, uma vida de insetos na feiúra e na trivialidade; no interior de tal mundo, ou antes de tal "cenário", a realidade espiritual parecerá uma ilusão patente ou um luxo desprezível. E não importa qual ambiência tradicional, ao contrário, é a problemática do "trabalhador" — portanto maquinista — que não teria mais nenhuma força persuasiva; para torná-la verossímil é preciso portanto começar por criar um mundo de bastidores que lhe corresponda e cujas próprias formas sugerem a ausência de Deus; o Céu deve ser inverossímil; falar de Deus deve soar falso."

Trecho extraído do livro "O Sentido das Raças" de Frithjof Schuon (1907-1998), principal porta-voz da Escola Perenialista. Sua obra permanece como uma das mais profundas incursões no estudo comparativo entre as religiões ocidentais e orientais, em busca (não apenas intelectual) de uma "verdade essencial" presente em todas as formas reveladas.As partes grifadas são minhas e eu encontrei esse trecho publicado nesse site.

12.01.2010

Nos cumes do desespero



Uma das aquisições literárias mais agradáveis dos últimos tempos foi uma tradução espanhola de Pe culmile disperării, do Cioran.

Escrito quando o velho romeno tinha ainda vinte e dois anos, o livro é um murro após o outro. As sementes do projeto filosófico mais ignorado do século XX estão já todas ali, naqueles escritos plenos de impetuosidade e ódio do jovem insone que andava pelas ruelas de Sibil trocando confidências com prostitutas, bêbados e desgraçados de sorte ainda pior. Um pensamento que aposta na filosofia como sangue -e em tempos de homens covardes, de destruição de certezas, de esfacelamento de valores e da ressignificação de conceitos e papéis sociais o pensamento de Cioran serve como um convite à destruição e também apresenta uma ótica inovadora sobre os homens em geral.

Há muito o que ser dito sobre ele, mas pela hora que já vai adiantada, pelo cansaço que domina a mente e o corpo, dois trechos da leitura de hoje:

"Gosto do pensamento que conserva um sabor de sangue e carne, e à abstração vazia prefiro muito mais uma reflexão que se origine em um arrebatamento sensual ou em um desmoronamento nervoso."

"Que sucederia se o rosto humano expressasse com fidelidade o sofrimento interior, se todo o suplício interno se manifestasse na expressão? Poderíamos ainda conversar? Poderíamos trocar palavras sem ocultar o rosto com nossas mãos? A vida seria realmente impossível se a intensidade de nossos sentimentos pudesse ser lida em nossa cara."

3.26.2010

Cioran por Boué


Atualizamos o blog da UGRA com uma entrevista com Simone Boué, a mulher de Cioran.

Talvez a única pessoa no mundo que compartilhou da intimidade com o velho romeno, a leitura da entrevista, publicada na revista El Malpensante, de Bogotá, revela alguns aspectos cotidianos do pensador.

Vejam http://ugrapress.wordpress.com/2010/03/25/cioran-por-boue/

Algum dia volto a escrever aqui. Nunca escrevi muito e envergonha-me escrever qualquer coisa após contínuas noites lendo Gogol e Cioran. Na verdade, é preguiça, esgotamento e uma autocrítica que não perdoa vírgulas mal colocadas. Ao inferno tudo que respira.

8.17.2009

Emil Cioran fala sobre ateísmo



Eu já tinha assistido a este vídeo sem legendas (e obviamente compreendido um nada) mas ontem recebi o link para uma versão com legendas em inglês. Aos amantes do filósofo, um presentão. E aos que não o conhecem, pode ser um convite para se apaixonar pela obra deste nobre senhor. E para os que não gostam e acham Cioran uma porcaria pessimista e estúpida, dêem o fora daqui (neste momento, em pleno domingo, é que eu desejaria ser mais mais infantil e dizer para todos aqueles que nunca leram Cioran e insistem em criticá-lo -coisa que, aliás, ocorre amiúde e não apenas com ele- um sonoro e retumbante F.O.A.D.).





5.14.2008

Meio-dia

"Quem chegou, ainda que apenas em certa medida, à liberdade da razão, não pode sentir-se sobre a Terra senão como andarilho - embora não como viajante em direção a um alvo último: pois este não há. Mas bem que ele quer ver e ter os olhos abertos para tudo o que propriamente se passa no mundo; por isso não pode prender seu coração com demasiada firmeza a nada de singular; tem de haver nele próprio algo de errante, que encontra sua alegria na mudança e na transitoriedade. Sem dúvida sobrevêm a um tal homem noites más, em que ele está cansado e encontra fechada a porta da cidade que deveria oferecer-lhe pousada; talvez além disso, como no Oriente, o deserto chegue até a porta, os animais de presa uivem ora mais longe, ora mais perto, um vento mais forte se levante, ladrões lhe levem embora seus animais de tiro. É então que cai sobre ele a noite pavorosa, como um segundo deserto sobre o deserto, e seu coração se cansa de andança. Se então surge o sol da manhã, incandescente como uma divindade da ira, se a cidade se abre, ele vê, nos rostos dos que aqui moram, talvez ainda mais deserto, sujeira, engano, insegurança, do que fora das portas - e o dia é quase pior do que a noite. Bem pode ser que isso aconteça às vezes ao andarilho; mas então vêm, como recompensa, as manhãs deliciosas de outras regiões e dias, em que já ao alvorecer da luz ele vê, nas névoas da montanha, os enxames de musas passarem dançando perto de si, em que mais tarde, quando ele, tranqüilo, no equilíbrio da alma antes do meio-dia, passeia entre árvores, lhe são atiradas de suas frondes e dos recessos de folhagem somente coisas boas e claras, os presentes de todos aqueles espíritos livres, que iguais a ele, em sua maneira ora gaiata, ora meditativa, são andarilhos e filósofos. Nascidos dos segredos da manhã, meditam sobre como pode o dia, entre a décima e a décima segunda badalada, ter um rosto tão puro, translúcido, transfiguradamente sereno: - buscam a filosofia de antes do meio dia."
(F. Nietzsche - Humano, Demasiado Humano, parágrafo 638)

2.02.2008

Good Reads

Se você esquece de comer, tomar banho, fazer a barba e encontrar sua namorada quando está lendo, Goodreads é o seu site ideal. É mais um site de "relacionamento", sim, mas dedicado aos
livros: você faz uma lista dos livros preferidos, que leu ou está lendo, faz seus comentários e deixa o mundo saber disso.

Ainda estou no processo de aprendizagem dos recursos oferecidos pelo Goodreads. Mas aproveita e vá lá no meu perfil ler a resenha que fiz sobre "Identidade", do Zygmunt Bauman. Abaixo, trecho do livro para despertar seu interesse, especialmente escolhido por tratar de Internet e, ironicamente, da onda de sites de "relacionamento" (sim, sempre com aspas):

Hoje em dia, nada nos faz falar de modo mais solene ou prazeroso do que as "redes" de "conexão" ou "relacionamentos", só porque a "coisa concreta" - as redes firmemente entretecidas, as conexões firmes e seguras, os relacionamentos plenamente maduros - praticamente caiu por terra.

Agora chega. Vá ler minha resenha e conhecer mais sobre este interessante escritor polonês.




1.20.2008

Literatura e Filosofia


Inspirado pelo post anterior sobre Deleuze, andei a pensar nestes dias a respeito das relações existentes entre literatura e filosofia, ou melhor dizendo, da literatura e seus "personagens filosóficos".

Aqui, obviamente, é impossível não lembrarmos de alguns nomes. E em minha lista, Raskholnikov ocupa o topo, pela sua fúria destruidora de mundos, cujos questionamentos não pouparam sequer a si mesmo. Mas apenas ele não basta, e também podemos colocar aqui Herman Hesse, Álvaro de Campos, Saramago, Kundera... (se alguém estranhar que comecei com um personagem e continuei a lista apenas com autores, aviso que para mim Raskholnikov é tão real quanto eles, e até mais vivo que muita gente que anda por aí, cheia de saúde).

Eu tinha 17 anos quando li Crime e Castigo. Hoje, 12 anos e muitos outros romances depois, posso dizer que os que mais gostei foram aqueles que mais filosofia me trouxeram. É por isso que "Seara Vermelha" me causa tédio: ali há enredo, há personagens, há situações, há cenários, mas me falta o choque de idéias e questionamentos que encontro ao ler "Crônica da Casa Assassinada". O que os separa não é apenas a opção política, Jorge Amado o comunista, Lúcio Cardoso o católico liberal, mas a amplitude das questões que afetam as personagens e o próprio narrador. Tampouco isso se determina pelo comunismo chato de Jorge Amado, já que Saramago é um vermelho de carteirinha e me fez chorar e destruir uns dois conceitos antiquados sobre a vida com "O Ano da Morte de Ricardo Reis".

Imagino que romances Cioran escreveria, se tivesse estômago para criar um mundo e nele colocar personagens. Aspirante que era a ser um eterno objeto, certamente consideraria a tarefa desonesta demais. Este texto ainda não acabou e certamente escreverei mais a respeito do diálogo sempre fecundo entre literatura e filosofia.

1.10.2008

O ABCD de Deleuze

Um amigo que adora estragar shows musicais me forneceu este interessante link com uma longa entrevista com Gilles Deleuze. Para cada letra do alfabeto, um tema é proposto para discussão (A de animal, B de beber, etc), ponto de partida para que o filósofo do desejo nos presenteie com saborosíssimos pontos de vista, plenos de espirituosidade.

Ainda não terminei de ler. Fui até a letra D. Mas foi o suficiente para me apaixonar e, se você ler, vai entender por que eu disse isso.

Por hora eu me calo. Agora, vá até a página e comece sua leitura.

11.27.2007

Escrever é Exorcizar


Concordo e assino embaixo, e com letra bonita:


"Só tenho vontade de escrever num estado explosivo, na excitação ou na crispação, num estupor transformado em frenesi, num clima de ajuste de contas em que as invectivas substituem as bofetadas e os golpes. (...) Escrevo para não passar ao ato, para evitar uma crise. A expressão é alívio, desforra indireta daquele que não consegue digerir uma vergonha e que se revolta em palavras contra os seus semelhantes e contra si mesmo. A indignação é menos um gesto moral que literário, é mesmo a mola da inspiração. E a sabedoria? É justamente o oposto. O sábio em nós arruina todos os nossos élans, é o sabotador que nos enfraquece e nos paralisa, que espreita em nós o louco para dominá-lo e comprometê-lo, para desonrá-lo. A inspiração? Um desequilíbrio súbito, volúpia inominável de se afirmar ou de se destruir. Não escrevi uma única linha na minha temperatura normal. (...) Escrever é uma provocação, uma visão infelizmente falsa da realidade, que nos coloca acima do que existe e do que nos parece existir. Competir com Deus, ultrapassá-lo mesmo apenas pela força da linguagem, esta é a proeza do escritor, espécime ambíguo, dilacerado e enfatuado que, livre da sua condição natural, se entregou a uma vertigem magnífica, sempre desconcertante, algumas vezes odiosa. Nada mais miserável do que a palavra, e no entanto, é através dela que atingimos sensações de felicidade, uma dilatação última em que estamos completamente sós, sem o menor sentimento de opressão. O supremo alcançado pelo vocábulo, pelo próprio símbolo da fragilidade! Pode-se alcançá-lo também, curiosamente, através da ironia, com a condição de que esta, levando ao extremo sua obra de demolição, cause arrepios de um deus às avessas. As palavras como agente de um êxtase invertido... Tudo o que é realmente intenso participa do paraíso e do inferno, com a diferença de que o primeiro só podemos entrevê-lo, enquanto o segundo temos a sorte de percebê-lo e, mais ainda, de senti-lo. Existe uma vantagem ainda mais notável de que o escritor tem o monopólio: a de se livrar de seus perigos. Sem a faculdade de encher as páginas me pergunto o que eu viria a ser. Escrever é desfazer-se de seus remorsos e rancores, vomitar seus segredos. O escritor é um desequilibrado que utiliza essas ficções que são as palavras para se curar. Quantas angústias, quantas crises sinistras venci graças a esses remédios insubstanciais!"

[Confissão Resumida, páginas 123 e 124;
"Exercícios de Admiração", de E. M. Cioran]

5.14.2007

E ao reler o Breviário, encontrei:


"... Até que tu vieste, Insônia, para sacudir minha carne e meu orgulho; tu que transformas o bruto juvenil, matizas teus instintos, avivas teus sonhos; tu que, em uma só noite, concedes mais saber que os dias consumados no repouso e, nas pálpebras doloridas, descobres um acontecimentos mais importante que as enfermidades sem nome ou os desastres do tempo! Tu me permitiste escutar o ronco da saúde, os humanos mergulhados no esquecimento sonoro, enquanto que minha solidão englobava a escuridão circumdante e tornava-se mais vasta do que ela. Tudo dormia, tudo dormia para sempre. Nenhuma aurora mais: velarei assim até o fim das eras: me esperarão então para pedir-me contas do espaço em branco dos meus sonhos... Cada noite era igual às outras, cada noite era eterna. E sentia-me solidário de todos os que não conseguem dormir, de todos esses irmãos desconhecidos. Como os viciosos e os fanáticos, eu tinha um segredo; como eles, havia constituído um clã, a quem tudo desculpar, tudo dar, tudo sacrificar: o clã dos insones. Atribuía gênio ao primeiro que chegasse com as pálpebras pesadas de fadiga, e não admirava nenhum espírito que conseguisse dormir, fosse ele glória do Estado, da Arte ou das Letras. Havia consagrado culto a um tirano que - para vingar-se de suas noites - proibira o repouso, castigara o esquecimento, decretara a desgraça e a febre. E foi então que apelei para a filosofia: mas não há idéia que console na obscuridade, não há sistema que resista às vigília. As análises da insônia desfazem as certezas. Cansado de tal destruição, chegava a dizer-me: nenhuma hesitação mais: dormir ou morrer... reconquistar o sono ou desaparecer... Mas tal reconquista não é fácil: quando nos aproximamos dela, percebemos o quanto estamos marcados pelas noites. Se amas, teu ímpeto estará corrompido para sempre; sairás de cada ´êxtase´ como de um pavor de delícias; aos olhares de tua vizinha excessivamente próxima mostrarás um rosto de criminoso; a seus arroubos sinceros responderás com as irritações da uma voluptuosidade envenenada; à sua inocência, com uma poesia de culpado, pois tudo se tornará para ti poesia, mas uma poesia da culpa... Idéias cristalinas, encadeamento feliz de pensamentos? Não pensarás mais: será uma irrupção, uma lava de conceitos vomitados, agressivos, saídos das entranhas castigos que a carne se inflige a si mesma, pois o espírito permanece vítima dos humores e fora de questão... Sofrerás por tudo, e desmesuradamente: as brisas te parecerão borrascas; as carícias, punhais; os sorrisos, bofetadas; as bagatelas, cataclismos. É que as vigílias podem cessar; mas sua luz perdura em ti: não se vê impunemente nas trevas, não se extrai delas ensinamento sem perigo; há olhos que nunca mais poderão aprender nada do sol, e almas doentes de noites das quais jamais se curarão...".

CIORAN, Emile. Breviário da Decomposição. Tradução de José Tomas Brun. Editora Rocco, São Paulo, 2000.