10.21.2009

O Livro Vermelho de Jung



"Os anos onde eu capturei as imagens interiores foi o mais importante período da minha vida. Todo o restante [da minha obra] derivou daquilo. Começou naquele período, e os detalhes posteriores são quase sem importância. Minha vida inteira consistiu em elaborar o que irrompeu do inconsciente e inundou-me como um fluxo enigmático que ameaçou me quebrar. Aquilo foi o tema [para minha obra] e material para mais de uma vida. Todo o restante foi apenas a classificação objetiva, a elaboração científica e a integração na vida. Mas o início numinoso, que continha tudo, foi naquele então. "

Estas foram as palavras de Jung a respeito de Liber Novus, o livro onde o autor registrou o assim chamado "confronto com o inconsciente". Mergulhando em um processo de isolamento e semi-ascetismo, Jung iniciou uma auto-exploração dos limites de sua psique, cristalizadas nas páginas desta obra inédita, escrita durante os anos 1914 e 1930.

Não é, nem de longe, um livro comum: trata-se de uma obra de arte. Jung não apenas escreveu sobre como também nos legou um registro pictórico do "confronto", com belíssimas e perturbadoras ilustrações onde motivos nórdicos, hindus e de diversas outras culturas misturam-se em uma atmosfera alucinante. Cada página é um convite para a investigação lenta e deliciosa dos detalhes da obra - ou pelo menos é isso o que posso adivinhar ao contemplar alguns excertos em PDF que a Philemon Foundation deixou disponível em seu site.

O "Livro Vermelho" foi lançado no último 9 de outubro pela editora americana W.W. Norton & Company, em uma edição fac-similada que reproduz fielmente o mais importante livro de Jung. Tudo foi preservado: cores, tamanho do livro, acabamento em couro vermelho na capa. São 404 páginas de primor editorial que custam US$ 195.

O inconsciente coletivo, os arquétipos, o processo de individuação e outros conceitos junguianos estão esboçados nas impressionantes páginas deste livro que, mesmo sem nunca ter sido publicado, já pode ser considerado um dos mais influentes do século XX.

E como no blog O Livreiro, fica no ar a questão: no Brasil, teremos uma edição digna deste livro? Pois para mim parece claro que o projeto editorial de uma obra é também parte da obra. Publicar os textos do Liber Novus sem suas ilustrações (ou com ilustrações em tamanho reduzido, ou em p&b) seria o mesmo que publicar quadrinhos do Crumb apenas com os diálogos.

Pelo valor que a edição americana tem, dificilmente veremos este livro editado por aqui.  [NOTA DO EDITOR: o livro foi lançado no Brasil pela Editora Vozes em uma edição caprichadíssima, que não  deixa nada a desejar comparando com a original. O preço gira em torno de R$ 480,00 e isso está longe de ser barato, todavia o primor editorial é tão alto que até é possível justiificá-lo. O restante do post segue tal e qual publiquei em 21/10/2009, porque acho que ainda permanece válido]

Os custos de produção de edições fac-similadas são muito altos, ainda mais para tiragens reduzidas - e para um livro como este, preciso dizer que a tiragem seria reduzidíssima? Segundo um amigo que trabalha no ramo editorial, a Editora Record, uma das maiores do Brasil, chega a ter tiragens de 300 cópias em alguns lançamentos. Tiragens maiores são obviamente mais caras, mas com custo individual menor. Porém, a chance de encalhar muitos livros aumenta. Assim, as editoras optam por tiragens reduzidas, que representam menos chance de encalhe, mas com preço por unidade mais alto. Resultado: em um país que lê pouco, quem quer ler paga caro.

O post começou feliz pelo lançamento do Jung e terminou amargo. Não consigo concluir nada: apenas releio o que escrevi e vejo um emaranhado de problemas. E de tudo isso, fica uma nota mental: arranjar 195 dólares e um amigo legal que vá de férias para Nova York. economizar para comprar a  primorosa edição nacional lançada pela Vozes.

(uma imagem do Livro Vermelho, e com certeza a única imagem em cores deste blog, em respeito ao projeto editorial da obra.)

10.18.2009

Caim, novo livro do Saramago

Ví ontem na Fnac o novo livro do escritor português Saramago. Ainda não o comprei, mas farei isso durante os próximos dias. É um livro pequeno e, provavelmente, daqueles que se lê em uma tacada só.

Para atiçar a vontade, coloco abaixo um trecho do livro que roubei do site "O Globo". Não sei dizer se exatamente gostei do que li neste trecho. Mas ninguém pediu minha opinião e, por isso, vou ficar é quieto e deixá-los ler:

(...) Sucedeu então algo até hoje inexplicado. O fumo da carne oferecida por abel subiu a direito até desaparecer no espaço infinito, sinal de que o senhor aceitava o sacrifício e nele se comprazia, mas o fumo dos vegetais de caim, cultivados com um amor pelo menos igual, não foi longe, dispersou-se logo ali, a pouca altura do solo, o que significava que o senhor o rejeitava sem qualquer contemplação. Inquieto, perplexo, caim propôs a abel que trocassem de lugar, podia ser que houvesse ali uma corrente de ar que fosse a causa do distúrbio, e assim fizeram, mas o resultado foi o mesmo. Estava claro, o senhor desdenhava caim. Foi então que o verdadeiro carácter de abel veio ao de cima. Em lugar de se compadecer do desgosto do irmão e consolá-lo, escarneceu dele, e, como se isto ainda fosse pouco, desatou a enaltecer a sua própria pessoa, proclamando-se, perante o atónito e desconcertado caim, como um favorito do senhor, como um eleito de deus. (...) A cena repetiu-se, invariável, durante uma semana, sempre um fumo que subia, sempre um fumo que podia tocar-se com a mal e logo se desfazia no ar. E sempre a falta de piedade de abel, os dichotes de abel, o desprezo de abel. Um dia caim pediu ao irmão que o acompanhasse a um vale próximo onde era voz corrente que se acoitava uma raposa e ali, com as suas próprias mãos, o matou a golpes de uma queixada de jumento que havia escondido antes num silvado, portanto com aleivosa premeditação. Foi nesse exacto momento, isto é, atrasada em relação aos acontecimentos, que a voz do senhor soou, e não só soou ela como apareceu ele. (...) Que fizeste com o teu irmão, perguntou, e caim respondeu com outra pergunta, Era eu o guarda-costas de meu irmão, Mataste-o, Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha, Quis pôr-te à prova, E tu quem és para pores à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono soberano de todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade, Liberdade para matar, Como tu foste livre para deixar que eu matasse a abel quando estava na tua mão evitá-lo, bastaria que por um momento abandonasses a soberba da infalibilidade que partilhas com todos os outros deuses, bastaria que por um momento fosses realmente misericordioso, que aceitasses a minha oferenda com humildade, só porque não deverias atrever-te a recusá-la, os deuses, e tu como todos os outros, têm deveres para com aqueles a quem dizem ter criado, Esse discurso é sedicioso, É possível que o seja, mas garanto-te que, se eu fosse deus, todos os dias diria Abençoados sejam os que escolheram a sedição porque deles será o reino da terra, Sacrilégio, Será, mas em todo o caso nunca maior que o teu, que permitiste que abel morresse, Tu é que o mataste, Sim, é verdade, eu fui o braço executor, mas a sentença foi dada por ti, O sangue que aí está não o fiz verter eu, caim podia ter escolhido entre o mal e o bem, se escolheu o mal pagará por isso, Tão ladrão é o que vai à vinha como aquele que fica a vigiar o guarda, disse caim, E esse sangue reclama vingança, insistiu deus, Se é assim, vingar-te-ás ao mesmo tempo de uma morte real e de outra que não chegou a haver, Explica-te, Não gostarás do que vais ouvir, Que isso não te importe, fala, É simples, matei abel porque não podia matar-te a ti, pela intenção estás morto, Compreendo o que queres dizer, mas a morte está vedada aos deuses, Sim, embora devessem carregar com todos os crimes cometidos em seu nome ou por sua causa (...)

10.16.2009

O Velho Safado disse

“Peguei minha garrafa e fui pro meu quarto. Fiquei só de cueca e deitei na cama. Nada estava em sintonia, nunca. As pessoas vão se agarrando às cegas a tudo que existe: comunismo, comida natural, zen, surf, balé, hipnotismo, encontros grupais, orgias, ciclismo, ervas, catolicismo, halterofilismo, viagens, retiros, vegetarianismo, Índia, pintura, literatura, escultura, música, carros, mochila, ioga, cópula, jogo, bebida, andar por aí, iogurte, congelados, Beethoven, Bach, Buda, Cristo, heroína, suco de cenoura, suicídio, roupas feitas a mão, vôos a jato, Nova Iorque, e aí tudo se evapora, se rompe em pedaços. As pessoas têm de achar o que fazer enquanto esperam a morte. Acho legal ter uma escolha.

Eu tinha feito a minha. Ergui a garrada de vodca e dei um vasto gole.”

(trecho do livro Mulheres, do Charles Bukowski, um dos homens mais sábios do mundo)