11.23.2011

"Axe is the name of mine", de Alexander Dugin - parte 2


Como prometido, a segunda parte da tradução do ensaio "Axe is the name of mine", do pensador russo Alexander Dugin.


Como é um ensaio longo, esse post se divide em três partes: 

Parte 1: 

Parte 2: 

Parte 3: 


Nessa segunda parte prevalece uma discussão sobre conceitos religiosos. É a  necessária ambientação para o final do ensaio, onde Dugin mostra claramente a sua visão apocalíptica sobre o romance máximo da literatura russa, encerrando com um verdadeiro chamado às armas .


Meu nome é machado: Dostoiévski e as metafísicas de São Petersburgo - (2a. parte)


Não “Não matar”
Entre os meados do século 19 e o início do 20, a consciência russa foi possuída por uma estranha compreensão de um dos dez mandamentos - "Não matar". Discutiu-se esse mandamento como se fosse a essência do cristianismo. Teólogos, revolucionários e terroristas constantemente o repetiram (Savinkov foi um obcecado por esse mandamento), assim como humanitários, progressistas e conservadores. Tanto o tema como a argumentação em torno dele eram tão importantes que afetou, em grande medida, toda a consciência moderna russa. Embora o significado desse debate tenha desaparecido com o advento da bolcheviques, ele ressurgiu no final do período soviético e começou a assombrar os cérebros intelectuais com uma força renovada.

"Não matar" não é exatamente um mandamento cristão e do Novo Testamento, mas sim  judaico e do Velho Testamento. Esta é uma parte da Lei, a Torá, que regula, como um todo, o exotérico, normas exterior, social e ética da vida popular israelense. Esse mandamento não tem nenhum significado especial. Você pode encontrar algo análogo na maioria das tradições, nos seus códigos sociais. No hinduísmo o equivalente chama-se "ahimsa", "não-violência". Este "não matar", assim como o resto dos parágrafos da lei, regulamenta a liberdade humana, dirigindo-a para o fluxo que, de acordo com o espírito da Tradição, pertence à melhor parte, ao Caminho da Mão Direita. Além disso, é significativo que "não matar" não tem qualquer sentido absoluto metafísico. Bem como todas as estátuas exotéricas, este mandamento só serve para que seja mantida a existência coletiva em ordem e para preservar a comunidade de cair no caos ("A Lei nada faz", segundo São Paulo Apóstolo). Em princípio, se compararmos a realidade do Velho Testamento com o Novo, a fórmula para "não matar" corresponde a aproximadamente a inscrição "é proibido fumar", apresentada em uma parede de um teatro. Fumar em um teatro não é permitido, não é bom. Quando alguns espectadores tensos começam a fumar, os funcionários do local ficam em uma situação problemática. Essas pessoas são condenadas pela opinião pública e sujeita à repressão pelos servos da justiça.

Dugin ou Engels?
É muito significativo que o Antigo Testamento esteja cheio de desafio não-observância desse mandamento: assassinatos estão em todas as suas páginas. É cometido não apenas por pecadores, mas também por homens justos, reis, soberanos ungido, até mesmo profetas. Aluno favorito de Elias, o profeta Eliseu foi especialmente severo: não tinha misericórdia nem mesmo de crianças. Eles mataram durante as guerras, mataram nativos e estrangeiros, mataram criminosos e também mataram mulheres. Eles não tinham misericórdia com crianças, idosos, goyim, profetas, idólatras, feiticeiros, nem mesmo parentes.  
No Livro de Jó, Jeová - sem qualquer razão especial, exceto uma controvérsia bastante superficial com Lúcifer - trata de uma forma sádica seu próprio homem escolhido e virtuoso. Quando Jó, coberto com lepra, fica indignado com isso, Jeová o intimida com dois monstros: a terra chamada Behemoth e o mar chamado Leviathan. Jeová o mortifica no sentido moral também. A investigação bíblica moderna prova de modo convincente que o texto original do Livro de Jó chega a seu fim no auge da tragédia, e que o final ingenuamente moralista foi adicionado muito tempo depois pelos levitas, que ficaram aterrorizados com a natureza rígida dos fragmentos mais arcaicos do Antigo Testamento.

Em outras palavras: o mandamento de "não matar", originado no contexto judaico, não tem qualquer caráter absoluto nem qualquer significado especial.

Não houve controvérsia sobre esse tema e, aparentemente, nenhuma reflexão foi dada com qualquer propósito expresso. Isso não quer dizer que o mandamento nunca foi tido em conta. Tentaram que não fosse derramado sangue sem nenhum propósito. Eles também tinham o tribunal rabínico. Se alguém fosse assassinado em vão, uma punição seguramente acontecia: a lei do costume, o mandamento comum. Nada de especial, tão somente o padrão geral de conduta humana.

No cristianismo tudo é diferente. Cristo é o cumprimento da lei. A Lei é ele. A missão do Direito é realizada. Em certo sentido, ela é removida da agenda - mas não revogada. Os problemas espirituais passam para um plano radicalmente diferente. A partir de agora a Pós-Lei, a era da Graça, começa. Estritamente falando, o advento dessa nova era significa uma era onde os Mandamentos perdem a importância.

Mesmo o primeiro mandamento de adorar o único Senhor é superado pelo Novo Testamento, pelo preceito do amor para Ele. Através da Encarnação, o Logos-Deus traz para as relações entre o Criador e toda a criação algo absolutamente novo. A partir de então tudo acontece sob o signo de Emmanuel, pela fórmula benéfica, "Deus está conosco". Deus não está em algum lugar longe, Ele realiza não apenas o papel de Juiz e Legislador, mas também o papel do Bem-Amado e Único Amor. O Novo Mandamento não rejeita os dez anteriores, mas os torna desnecessários.

A humanidade do Novo Testamento é diferente daquela do Antigo, que é judaica (ou pagã). Ela ostenta o sinal do Amor transcendente. É por isso que a dicotomia da Lei – adorar/não adorar, roubar/não roubar, seduzir/não seduzir e, finalmente, matar/não matar – não faz mais sentido.

O novo homem não precisa de regras, ele vive por uma única coisa - o sereno, eterno e indivisível Amor, permanecendo em oração e contemplação. Aqui, não há apenas "não matar". Os santos cristãos ririam dessa cautela porque neles a dualidade já está abolida, a barreira entre o eu e o não-eu é esmagada. Além disso, eles querem ser mortos, eles aspiram a sofrer, eles almejam o martírio. Uma vida cristã valiosa não tem qualquer relação com os velhos Dez Mandamentos. Eles foram de uma vez e para sempre superados com o batismo sagrado. Além disso, há apenas a realização na Graça.  

Mas vamos considerar um cristão não em santidade, não em uma vida monástica, não em ascetismo e na vida eremítica. Será que a idéia definida pela ordem do Antigo Testamento é válida para ele? Não. Ele é batizado, o que significa ter renascido e, conseqüentemente, Deus está com ele também. Dentro dele, não fora. Portanto, mesmo sendo um pecador, um indigno da vida segundo o Velho Testamento, esse novo homem está abendoçoado pelo fluxo de luz da Graça. Observar ou não observar a legislação do Antigo Testamento não tem nada a ver com a essência íntima da existência cristã.

Claro, é mais conveniente para uma sociedade ter indivíduos que são obedientes e observam regras. Para uma sociedade cristã também. Mas tudo isso não tem qualquer medida comum com o sacramento da Igreja, com a vida mística de um crente. Aqui, o elemento mais interessante começa: um cristão, quando desobedece algum dos Mandamentos do Antigo Testamento, na verdade demonstra que nele não foi concluída a natureza misteriosa do Novo Homem, a personalidade potencial dada pelo Espírito Santo na fonte do batismo.

Mas quem pode gabar-se de ter atingido a completa deificação? Quanto mais se é santo, mais parece pecador e terrível para si mesmo quando colocado face à Trindade Luminosa. Conseqüentemente, como no caso do yurodivy ("loucos de Deus") que depreciavam o caráter humano, a Queda pode ser, de um modo paradoxalmente cristão, um sacramento.

Observar os Dez Mandamentos não é um fator decisivo para um cristão ortodoxo. Só uma coisa é importante para ele: Amor, o Novo – absolutamente novo – Testamento, o Testamento do Amor. Os Dez Mandamentos sem amor é o caminho para o inferno. E se o amor existe, então esses mandamentos não têm nenhum significado mais: isso tudo foi claro para os intelectuais radicais russos. No livro de Boris Savinkov, "The Pale Horse ", um terrorista chamado Vanya (um personagem literário, inspirado em Ivan Kalyayev ) diz que antes de cometer um assassinato: 

- Olha, se você ama muito, se realmente ama, então você pode matar, não pode?.

E mais:

"... é necessário passar por um tormento na cruz, é necessário se empenhar a fazer tudo isso por amor e para o amor. Mas absolutamente por amor e para o amor... Se estou vivo, é para quê? Talvez eu viva para a hora da minha morte. Peço então: Senhor, dai-me a morte em nome do amor. Você não pode orar por assassinato, pode?"

Savinkov viveu, pensou, escreveu e matou depois de Dostoiévski. Mas nada é relacionado a Raskolnikov. Raskolnikov mata não apenas por causa da humanidade (embora para isso também), ele mata por causa do Amor. A fim de passar por sofrimento, ele tem que morrer, para matar a morte em si mesmo e nos outros. Ivan Kalyayev, bem como o próprio Savinkov, são profundamente russos, profundamente cristãos ortodoxos, profundamente “pessoas dostoiveskianas”: assim como toda a nação, têm um evidente caráter divino, e estão repletos de uma visão de mundo cristã ortodoxa elevada e paradoxal, algo que faz o mais refinado e profundo sistema filosófico ocidental parecer uma bobagem. Os russos não formularam uma teologia: eles a sofrem e a vivem por toda a sua vida. Esta é a teologia, que vem através dos poros, através da respiração, através de lágrimas, através do sono e que faz uma horrenda expressão de ira através do tormento e da tortura – através do úmido e sangrento elemento carnal e espiritualizado da Nova Vida.

Com amor e por amor ao Amor pode-se fazer tudo. Isso não significa que se deva fazer tudo e que todos os mandamentos devem ser revogados, rejeitados. Em nenhuma circunstância. Deve-se apenas demonstrar com a vida e com gestos que existe - e isso é o principal - outra medida de ser, uma nova luz, a luz do Amor.

O local do assassinato da velha agiota é São Petersburgo. Esse é o lugar do amor na Rússia, locus amoris.

Rodion levanta as duas mãos, dois sinais angulares, dois tendões do plexo, duas runas sobre o gelado e apodrecido crânio do Capital. Em sua mão há um grosseiro e bruto artefato. Com esse artefato, o ritual central da história russa e do mistério russo está comprometido. O fantasma se materializa, o momento se projeta para fora do tempo terrestre (Goethe teria ficado imediatamente louco se tivesse visto esse momento em que o tempo parou...). Duas teologias, dois testamentos, duas revelações se encontram em um ponto mágico. Esse ponto é absoluto – e “machado” é o seu nome.
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