10.10.2016

Sobre a pedra que um dia foi homem


"O vaivém de um mosquito parece-me uma empresa apocalíptica. É um pecado sair de si mesmo... O vento, loucura do ar! A música, loucura do silêncio! Capitulando ante a vida, este mundo desfaleceu no nada.... Demito-me do movimento e dos meus sonhos. Ausência! Tu serás minha única glória... Que o desejo seja riscado para sempre dos dicionários e das almas! Recuo ante a farsa vertiginosa das manhãs que se sucedem. E se guardo ainda algumas esperanças, perdi para sempre a faculdade de esperar" ( Emile Cioran)

Houve um homem que corria desde que tinha nascido nesse mundo. Não importava se era dia ou noite, se chovia ou não - dedicava-se à corrida como sua única tarefa, e isso todos os momentos de sua vida.

Correndo vastas distâncias, o suor que escorria de seu corpo molhava a terra, fecundando-a com as sementes de seu esforço sem fim. Dessas sementes nasciam frutos diversos, muitos dos quais o homem nem prestava atenção. Esses frutos, porém, tinham em seu íntimo não uma essência de vida, mas de escravidão - da escravidão sem nome que prendia aquele homem na sua tarefa infinita de correr e correr, sem descanso, sobre a vastidão do mundo.

Um dia o sol estava muito forte e o homem corria com audácia redobrada. No turbilhão de seus pensamentos desajeitados (pois eles eram tão caóticos quanto a sua corrida absurda) perguntou a si mesmo (e foi difícil ouvir a si mesmo naquele turbilhão, mas de algum modo isso aconteceu e ficou registrado nos Livros das Proibições Destruídas, que é de onde colhemos essa história): "E se eu fosse mais devagar?". Ouvir a própria voz interior foi para ele de assombro terrível; não é possível determinar se foi algo refletido ou resultado do assombro que experimentou, mas passados alguns instantes ele, que até então só havia corrido, começou a andar. Seus olhos acompanhavam o movimento infinitamente mais lento com curiosidade. Sentia a terra sobre seus pés como nunca antes tinha sentido, como algo vivo e pulsante, e com a ponta dos dedos das mãos roçava a relva alta, e esse toque era como uma troca de carícias entre amantes silenciosos que se descobrem.

Após caminhar um pouco, resolveu aproximar-se de uma gigantesca e frondosa árvore que ficava no topo de uma colina, donde era possível perder a vista em imensidões de campos e montanhas, vastidões por onde aquele homem tinha corrido tantas e tantas vezes. Quando estava debaixo da imponente sombra da árvore, novamente aquele homem fez uma pergunta a si próprio: "E se eu parasse de andar?". Era um pensamento aterrador, mas movido por uma coragem inspirada não saberemos nunca por quais forças, ele parou - e aquele foi a primeira vez, em toda a sua vida, que parou de fazer algum movimento. Observava curioso o mundo ao redor, inebriando-se com os aromas naturais (quando corria todos eles passavam muito brevemente por suas narinas cansadas) e experimentando a quietude física quase próximo do êxtase.

Mas ficar parado não lhe parecia o bastante, e então o homem resolveu sentar no chão. Sentia o suor secando com a brisa, o cansaço desaparecendo (ele não sabia que era possível viver sem cansaço), a respiração deixando de ser ofegante como sempre fora e tornando-se calma, tranquila, normal. Fechou os olhos, pousando as mão calmamente sobre os joelhos, e ficou deslumbrado com o mundo que ali descobriu, naquela escuridão tão calma e agradável - mundo feito de sons que nunca percebera, de aromas que jamais sentira. 

Passados alguns momentos, o homem deitou-se no chão, estendendo bem os braços, deixando-se absorver totalmente pela sombra da árvore. Provou então um alívio infinito, e a experiência da corrida - a corrida que tinha sido toda a sua vida - foi relembrada não como vida, mas como um horrendo absurdo. Foi mergulhando mais naquele alívio; as sensações novas que sentira antes - o aroma do mato, a brisa suave na pele - foram se tornando mais e mais longínquas, dissipando-se suavemente, até desaparecerem. Da perspectiva do chão, aquele homem reconduziu-se a si mesmo, retirando-se do caos da borda da Roda de Samsara e alcançando o Centro, a quietude imóvel, e sentiu-se só, incrivelmente só; mas não havia nessa solidão nenhuma tristeza, e dela emergiu - titânica, deslumbrante - a consciência de que não havia para onde ir, que não havia movimento algum a ser feito, nem nada a esperar, mas também nada a temer: estava enfim livre do peso do Tempo (a maior de todas as ilusões), das debilidades do Amor, das arrogâncias do Ódio. Tinha se tornado algo a mais do que a ânsia absurda de corrida sem fim, deixando em ruínas os castelos das mentiras humanas  - e deitado ali, sob as sombras de uma árvore imemorial, deitado ali havia morrido, e essa morte o preparara para renascer não mais como homem, mas como uma pedra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário